Com ou sem adesão oficial ao projeto, é fato que Brasil e Peru estão envolvidos na Iniciativa Cinturão e Rota da Seda, promovida pela China. O Brasil, ao ritmo do Samba, acrescenta cadência à sua relação com esse projeto, enquanto o Peru, ao ritmo do huayno, e a partir do avanço das obras do porto de Chancay, galopa na rede global de vias comerciais que os chineses estão consolidando. Não será este o momento oportuno para harmonizar estes ritmos, buscando a introdução de ambos os países à “comunidade de futuro partilhado” e à estratégia das “sinergias”?
Pareceria razoável que Brasil e Peru unam forças, para além das suas assimetrias, numa altura em que sua relação com a China ganhe cada vez mais preponderância geopolítica, para não mencionar o evidente crescimento explosivo do comércio e dos investimentos chineses em ambos os países.
Como demonstrado na cúpula do Foro de Cooperação Ásia Pacífico (APEC, por sua sigla em inglês), realizada em Lima, e na cúpula do G20, no Rio de Janeiro, ambas em novembro passado, os interesses e objetivos de desenvolvimento do Brasil e do Peru são cada vez mais complementares e concorrentes no tempo e no espaço, especialmente quando se fala de comércio e finanças internacionais. A entrada em operação do porto de Chancay, projetado para ser o maior da América Latina, não é coincidência, e nem é coincidência que Brasil e Peru tenham se tornado os principais fornecedores de matérias-primas para a China.
Algumas narrativas estabeleceram que o Peru e o Brasil sempre estiveram “de costas um para o outro” devido à sua geografia fronteiriça, inóspita e selvagem até recentemente, onde florestas e montanhas foram erguidas como muros de contenção intransponíveis. Mas, à luz do desenvolvimento da tecnologia e das comunicações, estes obstáculos deixaram de existir. Hoje, as relações fronteiriças fluem nos campos comercial, cultural e político.
A nível bilateral, o comércio e o investimento cresceram exponencialmente, multiplicou-se por sete nas últimas duas décadas, o que realça a necessidade de melhorar a articulação física e de comunicação entre os dois países. As exportações do Peru para o Brasil em 2023 atingiram o valor recorde de US$ 1,7 bilhão. Enquanto isso, o Brasil exportou para o Peru um total de US$ 3,7 bilhões, ocupando o terceiro lugar entre os países fornecedores do Peru. Por alguma razão, ambos trocam petróleo bruto. Por enquanto, o Brasil está em décimo lugar no ranking das exportações peruanas, porém ficou em terceiro lugar entre os fornecedores de bens importados pelo Peru.
Por outro lado, o Brasil é o terceiro país da América Latina com maior investimento no Peru desde 2003. Nesse período, investiu US$ 3,9 bilhões em 50 projetos, gerando 7,9 mil empregos diretos.
Esta crescente relação bilateral coloca os dois países diante da China em condições que poderiam ser capitalizadas a seu favor, especialmente na melhoria das infraestruturas e da logística que os ligam à Ásia e, em particular, à China. Nesta linha de conduta, o Peru deu como certa a conveniência de “partilhar” o seu futuro com a China, permitindo que o porto de Chancay opere sob a direção exclusiva daquele país. Como o Brasil é um dos principais fornecedores de matéria-prima para a China, não demorará muito para necessitar dos serviços do porto de Chancay.
Comércio e investimento do Brasil e do Peru com a China
Desde 2009, o comércio entre Brasil e China cresceu exponencialmente. Em 2023, atingiu o recorde histórico de US 157,5 bilhões, enquanto em 2006 mal registrou 6,9 bilhões. Enquanto o Brasil exporta soja e ferro (commodities), a China é o seu principal fornecedor de produtos industriais e tecnológicos. Caso semelhante ocorre com o comércio entre Peru e China desde o tratado de livre comércio entre ambos, sacramentado em 2010 e atualizado em 2024. Os principais produtos que o Peru exporta para a China também são principalmente commodities, enquanto importa equipamentos de transmissão, computadores e automóveis (bens manufaturados). É evidente que se estabelecem termos de comércio desfavoráveis para ambos os países e, no entanto, têm a China como principal parceiro comercial.
Ao mesmo tempo, a China tornou-se uma das principais fontes de financiamento internacional para ambos os países. No Brasil, investiu em infraestrutura, energia e tecnologia, enquanto no Peru, colocou recursos na exploração de recursos naturais e na gestão de energia elétrica. Nesta lógica, a China não guarda segredos quanto ao seu interesse em controlar a produção e transformação de lítio no Peru e nos seus vizinhos Bolívia, Chile e Argentina. O insumo é fundamental para a produção de carros elétricos.
Ao final de 2023, o investimento chinês no Brasil totalizou US$ 78,3 bilhões (3,6% do seu PIB), enquanto no Peru foi de US$ 38,5 bilhões (15,1% do seu PIB). Em ambos os casos, essas verbas foram entregues pelo Estado chinês para a construção de estradas, ferrovias, barragens e portos, sempre no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota. Nos últimos anos, é possível notar a presença de empresas chinesas como protagonistas de um processo de diversificação de investimentos na América Latina.
Essa diversificação inclui: 1) a extração de recursos naturais e, em particular, de petróleo (China National Offshore Oil Corporation-CNOOC; Sinopec: Companhia Petroquímica da China; e CNPC: China Nacional Petroleum Corporation), que garantiu o acesso aos recursos energéticos do Brasil, o que mais tarde levaria à participação de empresas como State Grid e China Three Gorges, que investiram na infraestrutura energética do Brasil até transformar o país em um de seus principais mercados fora da China; 2) manufatura, especialmente a produção de carros elétricos, eletrodomésticos e máquinas pesadas, sob a liderança das empresas BYD, TCL e XCMG, gigantes chinesas do ramo; 3) bancário, com o Banco da China, o Banco Industrial e Comercial da China e o Banco de Construção da China, que foram os principais financiadores de projetos de infraestrutura e expansão industrial. Este é, obviamente, em menor escala, o mesmo caminho que o investimento chinês segue no Peru.
Se esta tendência continuar, ambas as economias poderão acabar dependendo dos investimentos chineses em detrimento da sua soberania e autodeterminação.
Nessa perspectiva, o perfil dos investimentos chineses no Brasil e no Peru estão alinhados às tendências globais de sustentabilidade e tecnologia avançada, atacando com força os setores de energia renovável como solar e eólica, projetos de hidrogênio verde e biocombustíveis para a aviação e transporte marítimo.
Iniciativa Cinturão e Rota
Também conhecido como Nova Rota da Seda, o projeto é visto pelos Estados Unidos e seus aliados, como uma estratégia chinesa a nível global que visa consolidar uma posição vantajosa na sua disputa pela hegemonia mundial. Porém, Lula e Xi Jinping disseram, no encontro entre ambos realizado há poucas semanas em Brasília, que os próximos 50 anos consolidarão, entre outros projetos, a Iniciativa Cinturão e Rota. Para o Peru, que aderiu oficialmente ao projeto em 2019, é uma oportunidade que, com a entrada em operação do megaporto de Chancay, considerado peça-chave da Iniciativa, abre um leque de possibilidades para o desenvolvimento do país.
A Iniciativa Cinturão e Rota, anunciada em 2013, é um projeto global chinês que visa desenvolver infraestruturas e comunicações em vários continentes, facilitando uma maior cooperação económica e conectividade entre os países participantes. Inclui rotas terrestres e marítimas cujos percursos e obras em desenvolvimento podem ser vistos através de plataformas como o Google Maps.
Até à data, a China assinou mais de 200 acordos de cooperação, com mais de 150 países e 30 organizações internacionais, segundo dados do Fórum Econômico Mundial. Os objetivos estão centrados na realização de obras e investimentos para expandir mercados para a China e consolidar a sua presença em toda a sua área de atuação. influência. É, por outro lado, um projeto profundamente geopolítico.
Por que o Brasil não adere? Só Lula e seu principal assessor para assuntos internacionais, Celso Amorim, sabem essa resposta. Mas vamos tentar decifrar o que ambos disseram. Lula alega que não se trata de “fechar os olhos” para a Iniciativa Cinturão e Rota, mas de “ver o que é melhor para o nosso país”. Amorim, numa linguagem cada vez mais carregada de mistério, disse que “o Brasil deve seguir de perto” a política chinesa. Além disso, disse o assessor fala em “aproveitar as sinergias” dos projetos que o Brasil promove com os oferecidos pela Iniciativa chinesa. Não importa se, com essas evasões, perdemos contribuições importantes de investimento chinês em obras que o Brasil necessita, embora pareça que é muito mais valioso manter a equidistância entre as potências globais que a China e os Estados Unidos representam.
A atitude brasileira reflete que não se trata apenas de uma questão de dinheiro, mas de uma questão geopolítica, que inclui os objetivos de permanecer como protagonista ativo do mundo multipolar em formação. Mas será que se recusar em fazer parte da Iniciativa será suficiente para garantir esse objetivo?
Talvez a explicação mais plausível para a recusa do Brasil seja a combinação de fatores que incluem uma tradição diplomática complexa, um cenário internacional de incertezas e a percepção egoísta de que não há muito a ganhar com a adesão ao projeto. Esta última poderia ter sido apoiada pela recomendação de Katherine Tai, representante comercial dos Estados Unidos, de que o Brasil deveria ser “cauteloso” quanto à possibilidade de aderir ao Cinturão e Rota.
Quando quase toda a América do Sul já aderiu ao projeto, a recusa do Brasil parece responder à necessidade de “manter as formas” na disputa pela hegemonia mundial entre a China e os Estados Unidos. Nessa perspectiva, nenhuma ação que possa ser interpretada como “alinhamento” a uma ou a outra potência seria conveniente para o Brasil. Daí a sua recusa.