“Quando a casa do teu vizinho está a arder, a tua também corre perigo.”
– Provérbio popular português
A vitória de uma revolução social, ou de uma revolução política que derruba um regime político, foi incontáveis vezes o gatilho de uma onda revolucionária regional que invertia a relação social de forças favoravelmente e estendia às nações vizinhas um imenso sopro de entusiasmo na mobilização popular.
A América Latina conheceu quatro destas ondas, mas somente a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Na primeira metade do século XX, a classe trabalhadora não foi a principal protagonista das lutas populares e anti-imperialistas.
Foi a partir da faísca da revolução boliviana, e da radicalização na Guatemala, que a primeira revolução anticapitalista venceu em Cuba, e aconteceu a primeira onda, bloqueada pelos golpes militares no Brasil em 1964 e na Argentina em 1966.
A segunda onda veio pelo impacto da experiência da revolução chilena, interrompida pela contrarrevolução liderada por Pinochet à frente das Forças Armadas.
A terceira onda se inicia com a derrubada de Somoza na Nicarágua e avança, entre 1979 e 1985, pela derrota das ditaduras militares no Brasil, Argentina e Uruguai, interrompida pela estabilização, pela primeira vez na história do continente, de regimes democrático-liberais, dispensando os métodos de repressão à “chilena”.
A quarta onda começou na virada do século, entre 1999/2005, como reação a uma década de ajustes recolonizadores neoliberais, e passou pela derrubada por métodos revolucionários dos governos no Equador, Argentina, Bolívia e pela derrota, pela primeira vez, de um golpe de Estado contra Chávez na Venezuela.
Não há no “radar da história” uma iminente quinta onda no horizonte. Ao contrário, o que se vislumbra é o perigo de uma derrota histórica pela ascensão de uma extrema-direita com influência de massas que abraça um projeto de recolonização contrarrevolucionário. Porque o que não avança, recua. O destino da derrota do peronismo na Argentina em 2023 diante de Milei pesa sobre os nossos ombros enquanto nos preparamos para as eleições de 2026. Foi um sinal vermelho para o futuro do lulismo.
A quarta onda consolidou a estabilidade de regimes democrático-eleitorais. Governos de partidos de esquerda moderados e estratégias reformistas de regulação do capitalismo, ou partidos dissidentes de frações mais poderosas e alinhadas com os interesses dos EUA, até com a participação de lideranças populares venceram eleições. No Brasil o PT e Lula, na Argentina os Kirchners, na Bolívia o MAS e Evo Morales, e na Venezuela, o PSUV e Chávez.
Durante mais de dez ou até quinze anos, esta experiência, até então inusitada, foi colocada à prova no “laboratório da história”. Enquanto o contexto internacional foi positivo, pelo impacto do crescimento econômico, e o contexto de relações de troca que permitiam condições, excepcionalmente, favoráveis, os governos “reformistas” conseguiram reeleições. Mas quando tudo se inverteu, após o choque da crise mundial que abriu quinze anos de estagnação mundial do capitalismo, pela primeira vez desde o final da guerra, tudo mudou. Golpes de Estado dissimulados por rupturas “institucionais” se sucederam em Honduras, Paraguai, e Brasil. Uma fração das burguesias latino-americanas girou para a extrema-direita. A relação social de forças mudou, qualitativamente, abrindo situações defensivas e até reacionárias.
A revolução mexicana
Quis a ironia da história que, na América Latina, o século XX tenha começado com a revolução mexicana, deflagrada contra a oitava reeleição de Porfírio Diaz, e tenha se encerrado com a integração do México ao NAFTA, a Área de Livre Comércio que diminuiu a pátria de Zapata à condição de uma semicolônia norte-americana ainda mais vulnerável do que era antes, justamente quando uma onda de revoluções democráticas anti-imperialistas derrubava presidentes alinhados com Washington na Argentina, Bolívia e Equador, derrotava um golpe na Venezuela e enterrava o projeto do ALCA (Acordo de livre comércio das Américas).
As reeleições presidenciais, um mecanismo de tipo autoritário (na verdade, de inspiração monárquica) em regimes republicanos – porque, historicamente, favoreceram o bonapartismo –, foi um dos recursos clássicos de estabilização da dominação político-social no continente no século passado. Boa parte das sociedades latino-americanas aceitou governos bonapartistas (alguns mais nacional-desenvolvimentistas semidemocráticos, como Cárdenas no México nos anos trinta, outros mais autoritários, como Vargas no Brasil, de tipo semifascista entre 1937 e 1945), quando se viram diante da tarefa histórica da superação de economias agrário-exportadoras para realizar a urbanização e, em alguns países, a industrialização.
Os regimes bonapartistas, muitas vezes mal compreendidos pela sociologia histórica de inspiração liberal como governos populistas – porque se enfatizava ou satanizava, unilateralmente, o papel caudilhesco dos líderes que buscavam encarnar um projeto de nação como destino ou missão pessoal –, corresponderam às necessidades de relocalização dos países latino-americanos no mercado mundial. Nacionalismo burguês ou pequeno-burguês e bonapartismo, nos países na periferia do capitalismo, portanto, dependentes, estiveram quase sempre indissociáveis. Esse processo de urbanização, formação de mercado interno, industrialização, enfim, modernização, assumiu formas e ritmos muito diversos nas diferentes nações latino-americanas, mas não foi realizado sem conflitos com as potências dirigentes no sistema internacional de Estados. Portanto, também, sem resistências internas, exigindo um nível mais elevado de participação política de massas – o que exigiu combinações variadas de algumas concessões de direitos e alguma retórica nacionalista – ainda que controlada pelo Estado. Essa necessidade desperta a hostilidade da historiografia liberal.
A revolução mexicana foi uma das maiores revoluções democrático-agrárias da história. Porfírio Diaz chegou à presidência do México em 1876 e governou até 1880. Entre 1880 e 1884 exerceu de fato o poder sem ocupar a presidência. Mas, a partir de 1884, foi reeleito presidente por seis vezes consecutivas até 1911, tendo sido derrubado pela revolução dirigida por Francisco Madero, apoiado pelas colunas militares dirigidas por Pancho Villa e Emiliano Zapata. A revolução politicamente democrática e socialmente camponesa no México, entre 1910 e 1917, foi consequência da radicalização social contra Porfírio Dias, e seu sistema monolítico de reeleições fraudadas.
Poucos anos depois, a vaga revolucionária aberta pelo triunfo da revolução russa de 1917 despertou imensa esperança em uma pequena vanguarda operária e popular urbana inspirada em ideais igualitaristas, porém, majoritariamente anarquista ou sindicalista, pelo atraso da influência das ideias marxistas, animando greves. Poderia ser dito que o impacto do Outubro russo chegou tarde demais para inspirar revoluções democráticas, como as transformações impulsionadas pelo Partido Radical na Argentina, e cedo demais em um continente ainda arcaico, clerical, e agrário, em que o peso social do proletariado era diminuto.
Mesmo se o crescimento das economias capitalistas latino-americanas na virada do século XIX para o XX não foi suficiente para sequer diminuir as desigualdades sociais, não se abriram situações revolucionárias no continente, enquanto a Europa Central tremia com a ameaça de outras Repúblicas de Sovietes. Até o tenentismo no Brasil, um movimento armado que expressava dentro das Forças Armadas o descontentamento dos setores médios da sociedade com a oligarquia da República velha, ficou sem bases sociais nas incipientes cidades, e se transformou em uma coluna militar errática em dissidência.
Na sequência da crise de 1929, em alguns países do continente como o Brasil e o México, as burguesias nacionais se aproveitaram da crise de liderança imperialista no sistema internacional de Estados herdada pela Primeira Guerra Mundial para conquistar um posicionamento econômico mais favorável. Cárdenas e Vargas suspenderam o pagamento das dívidas externas por mais de dez anos, e exigiram a anulação de uma parte significativa dos juros pendentes para voltar a pagar.
Sociedades ainda majoritariamente agrárias, passaram incólumes pela Primeira Guerra Mundial e, mesmo se atingidas pela depressão dos anos trinta, não foram sacudidas pelas duas primeiras ondas revolucionárias internacionais que fizeram tremer o capitalismo, e tiveram como cenário o continente europeu. Os bonapartismos sui generis foram a forma predominante dos regimes que favoreceram a industrialização tardia, como o de Perón na Argentina e Getúlio no Brasil.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, em países como o Brasil, o Chile, o Uruguai, e, em menor medida, o Peru, a Bolívia e a Colômbia, partidos comunistas vinculados a Moscou cresceram em organização e influência, em grande medida como parte do prestígio da União Soviética na luta contra o nazifascismo. Mas não se abriram situações revolucionárias.
Em resumo: o proletariado não entrou em cena como principal sujeito social da luta de classes na primeira metade do século. O projeto anticapitalista não encontrou bases sociais de massas: era minoritária sua influência nas cidades, e quase nula sua audiência nos interiores. A América Latina ainda era um continente agrário e, esmagadoramente, analfabeto. As massas populares urbanas assalariadas ou semiproletárias seguiam politicamente órfãs de uma organização livre e independente.
O proletariado latino-americano entra na cena da História
Foi outra ironia da história que o proletariado latino americano tenha começado a travar grandes combates com relativa independência de classe, justamente quando a classe trabalhadora europeia, a grande protagonista dos combates anti-capitalistas na primeira metade do século, se retirava de cena.
A primeira revolução operária do continente sacudiu a Bolívia no início dos anos cinqüenta e, depois de uma extraordinária luta proletária, foi derrotada, mas o marxismo passou a ser, pela primeira vez na América Latina, o vocabulário da maioria da classe operária boliviana. Ela foi a primeira centelha da primeira onda da revolução latino-americana.
Na primeira metade dessa década, no auge da guerra fria, movimentos policlassistas de inspiração nacionalista como o peronismo e o varguismo recorreram a controladas mobilizações das massas trabalhadoras recém urbanizadas, procurando proteger os mercados internos da Argentina e do Brasil de forma que a incipiente industrialização pudesse sobreviver. Comprimidos entre as avassaladoras pressões dos EUA de um lado, e das aspirações populares das classes médias por outro, em sociedades em que a burguesia era uma classe ainda muito frágil, surgiu um movimento nacional-desenvolvimentista burguês, mesmo quando as suas expressões intelectuais fossem oriundas das classes médias, apoiado em um movimento operário e sindical, burocraticamente controlado pelo Estado.
Cunhou para a história a expressão “populismo”: um fenômeno político que unia o caudilhismo de líderes no poder que, a partir do controle do Estado e para evitar a mobilização independente das massas populares, elevavam a instituição da Presidência sobre as outras instituições, como os Parlamentos e a Justiça, flertando com um bonapartismo defensivo de país periférico, e arbitravam uma inserção mais independente no sistema mundial de Estados.
O continente latino-americano escreveu sua primeira página de glória na história da revolução socialista com o triunfo da revolução cubana em 1959. Uma onda de entusiasmo e radicalização política se estendeu do México ao Chile, mas a hora dos combates decisivos seria decidida no Rio de Janeiro, em 1964. O perigo de novas “Cubas” levou Washington a fomentar um cerco comercial, político e militar a Cuba. A surpresa da vitória do movimento 26 de Julho em Havana, um movimento nacional-democrático revolucionário que foi até a expropriação da propriedade privada das companhias norte-americanas, levou os EUA a uma contra-ofensiva que explica o golpe contra-revolucionário no Brasil em 1964 e na Argentina em 1966.
O medo de que a revolução se alastrasse de Cuba para todo o continente explica, para o essencial, a história política da América Latina nos vinte anos que vão de 1960 a 1980. Em 1968, a situação mundial, de relativa estabilidade nos países centrais, se inverteu com a greve geral francesa que chegou a obrigar De Gaulle, no seu momento mais agudo, a procurar refúgio em uma base militar na Alemanha. A rebelião do Quartier Latin contagiou a classe operária francesa, e o exemplo de Paris incendiou a juventude europeia e norte-americana, que se lançaram a grandes manifestações de massas pela causa do Vietnã invadido.
A onda revolucionária inspirada pela vitória em Cuba foi derrotada
Não obstante, enquanto a quarta vaga da revolução mundial se alastrava para a Itália e Lisboa, e seus ecos instigavam a juventude mexicana a ocupar a Praça do Zócalo, na terceira maior cidade do mundo, e 100 mil saiam às ruas do Rio de Janeiro para gritar “abaixo a ditadura”, a situação na América Latina evoluía, desfavoravelmente, para a esquerda.
O Cone Sul permaneceu coberto de ditaduras militares, e a revolução chilena, dramaticamente isolada, sucumbiu. Cuba ficou sozinha. Um “golpe dentro do golpe” precipitou uma situação contra-revolucionária no Brasil. A explosão do proletariado argentino no Cordobazo permitiu o retorno de Péron do exílio e a realização de eleições presidenciais, mas a burguesia de Buenos Aires não admitia qualquer sobressalto à sua dominação, e não hesitou em seguir o exemplo de Pinochet, impondo uma das ditaduras mais sangrentas do século XX em 1976.
A vaga revolucionária latino-americana foi, finalmente, derrotada, e a esquerda inspirada no exemplo cubano de inspiração guevarista foi dizimada. No início dos anos oitenta as ditaduras latino-americanas foram caindo, umas após as outras, mas as classes dominantes lograram estabilizar os regimes democrático-liberais com a promessa da alternância eleitoral. A geração mais velha e experiente do movimento operário e da esquerda latino-americana tinha medido forças com a contra-revolução, e tinha sido esmagada. Um fio de continuidade histórica na esquerda tinha sido interrompido, sem que as ilusões reformistas na possibilidade de um capitalismo desenvolvimentista e, presumidamente, regulador da distribuição da riqueza tivessem sido superadas.
A experiência do lulismo e do peronismo nos últimos vinte e cinco anos confirmam que estas ilusões, mesmo depois de cinquenta anos de luta, ainda estão presentes.
(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.