Ataque dos EUA ao Irã: a guerra para manter a tutela do mundo
Em 2008, o sistema fraquejou; em 2025, responde com bombas. Do colapso de Wall Street ao ataque ao Irã, a violência se aprofunda
Ontem à noite, Trump anunciou e exaltou o ataque às instalações do projeto nuclear iraniano. Ainda é cedo — até pelo silêncio em Teerã — para saber o quanto há de propaganda, o quanto há de realidade e qual é a jogada dos EUA. Deprime e amedronta ver a possibilidade de uma guerra nuclear se naturalizando. Passado o susto inicial, o que nos resta é cavar e procurar buracos, distâncias, aproximações e conexões na história. A chance de errar é paquidérmica. Porém, o erro é consequência da agência. Vamos tentar.
Em 2008, o mundo assistiu a duas cenas em extremos distintos do sistema: uma em Wall Street, outra na Faixa de Gaza. De um lado, a quebra do Lehman Brothers anunciava o colapso de uma arquitetura financeira baseada em promessas infladas e dívidas empacotadas como mercadoria de luxo. Do outro, Israel lançava a Operação Chumbo Fundido, um bombardeio contínuo contra um dos territórios mais densamente povoados e empobrecidos do planeta, resultando em mais de mil mortos, muitos deles civis e crianças. Em um polo, o colapso financeiro expunha o fracasso do capital sem lastro; no outro, a violência pura era o lastro do poder sem mediação. Uma crise econômica no centro e uma guerra nos limites: dois sintomas de um mesmo sistema. A violência como reorganizadora da ordem. O extermínio como método de governo.
Mas a engrenagem já girava desde antes. Em 2003, os EUA invadiram o Iraque com base em mentiras fabricadas. O Estado iraquiano foi destroçado, seu exército dissolvido, e, no lugar da ditadura laica de Saddam Hussein, emergiu o vácuo: milícias, ocupação, contratos bilionários, divisão sectária. Uma vez mais, o caos servia à governança. A destruição não era um erro — era o próprio objetivo. Israel, atento, leu o cenário: a desorganização dos vizinhos era uma janela de oportunidade.
Em 2011, a Primavera Árabe emergiu como explosão de esperanças acumuladas. Praças cheias, jovens, trabalhadores, mulheres exigindo pão e dignidade. Mas a janela foi rapidamente atravessada por outra lógica: interferências externas, manipulações informacionais, rebeldia infiltrada. A Líbia virou entulho humanitário; a Síria, um cemitério em disputa por potências; o Iêmen, um desastre invisível. Onde poderia emergir soberania, semeou-se ruína. O nacionalismo popular foi desidratado. As forças sociais, cooptadas ou esmagadas.
Crise migratória: cinismo europeu
Em 2015, a fatura dessas guerras bateu nas fronteiras europeias em forma de fluxo humano. Os mares devolviam corpos. As cercas voltavam a crescer. A extrema-direita cavalgava esse medo com discurso pronto: ameaças externas, terrorismo, crise migratória. A União Europeia, cínica, fingia surpresa. A crise migratória, convertida em ameaça simbólica, ocultava sua origem material: a expropriação global e o deslocamento forçado das classes subalternas. O neoliberalismo já não precisava parecer liberal. Bastava manter a concentração de renda e alguma ordem conveniente.
Em 2018, a ofensiva se aprofundou. Trump desfez o acordo nuclear com o Irã, empoderou Netanyahu, acelerou os Acordos de Abraão e consolidou um eixo regional de autoritarismo pró-ocidental. O direito internacional foi transformado em acessório cerimonial. Bombardeios seletivos, assassinatos direcionados, bloqueios em nome da segurança: a exceção se institucionalizava. A Palestina, já apartada, virou margem de nada — o apagamento total.
Em 2023, o ataque do Hamas rompeu a imagem de invencibilidade israelense. O contra-ataque foi brutal: Gaza varrida, corpos acumulados, imagens chocantes repetidas sem causar escândalo. Crianças, mulheres, idosos. O Ocidente declarou apoio irrestrito. A guerra deixou de ser resposta: passou a ser espetáculo. A pedagogia do massacre foi transmitida em tempo real, como aviso. Os que resistem serão arrasados.

No Irã, uma família ferida pelos ataques israelenses nesta semana. Foto: Hasan Shirvani/Irna Image
Desde então, um novo estágio se preparava. Com o retorno de Trump e o avanço direto sobre o Irã, 2025 inaugura sua consolidação. O massacre contínuo em Gaza legitima “ações preventivas”. Israel amplia a mira. O Irã — já alvo de sanções, sabotagens, assassinatos de cientistas e bombardeios pontuais — passa a ser frontalmente atacado. Em junho de 2025, as primeiras bombas caem sobre solo iraniano. A guerra deixa de ser delegada. Volta ao centro. Não se sabe ao certo quem é Israel nesse tabuleiro.
Irã: a guerra para manter a tutela
Essa virada não distoa da estratégia; no máximo, se adianta. O Irã, com todas suas contradições, representa algo que o eixo EUA-Israel-Arábia não tolera: autonomia relativa, alianças regionais, capacidade de resposta. Por isso é isolado, atacado, difamado. A retórica da “ameaça existencial” esconde outra realidade: a ameaça de não se submeter.
A guerra opera como instrumento direto para impedir a reorganização regional fora da tutela imperial. Nesse arranjo, as burguesias árabes cumprem papel ativo: Arábia Saudita, Emirados e Qatar funcionam como satélites locais da hegemonia ocidental. A repressão interna e a aliança externa andam juntas. O cerco não vem só de fora: é arquitetado com cumplicidade doméstica.
A China, que propunha mediação entre Irã e Arábia Saudita, vê seus avanços sabotados. O acordo de 2023 rapidamente sofre pressão. Pequim é tratada como intrusa no jogo que sempre foi ocidental. A multipolaridade, onde se insinuava, vira alvo. A Rússia, por sua vez, avança onde pode: fornece drones ao Irã, protege e abandona Assad; Putin se mostra dúbio — ora firme, ora omisso. O Oriente Médio volta a ser, como no século XX, um campo de guerra entre blocos. Mas os cadáveres continuam sendo árabes, curdos, persas.
Fim do consenso capitalista
Falar de Israel contra o Irã ou Israel contra Gaza é não ver o tabuleiro inteiro. Desde 2008, o capitalismo em crise trocou o consenso pela coerção. A guerra tornou-se linha de montagem: controle territorial, disciplinamento das massas, teste de armas, vigilância de populações. As classes dominadas, em todos os mapas, são as que mais sofrem. As burguesias locais se alinham. Os povos são sitiados por dentro e por fora.
A guerra é também resposta à tentativa de redistribuição real de poder no mundo — não apenas entre países, mas entre classes. A financeirização colapsou, o crescimento desacelerou, o mundo real resistiu às promessas do digital. Sobrou o velho expediente: a força. Gaza é laboratório. O Irã, o próximo alvo. A China, contenção global. A Palestina, a ferida aberta. Extermínio calculado, diplomacia seletiva e silêncio cúmplice: é disso que o sistema se alimenta.
As guerras que atravessamos desde 2008 são organizadas para impedir alternativas. Não há erro de cálculo. A luta de classes, internacionalizada, se joga também nos céus bombardeados do Oriente Médio. Quem pode recusar a ordem é destruído antes que contagie outros. O mapa de 1916 não acabou. Apenas se digitalizou em preto e branco. E continua sendo traçado contra os que ousam viver fora das regras de concentração de riqueza e domínio territorial.