Depois da tentativa de criar uma armadilha para Lula com o projeto de lei que pretendia criminalizar o aborto mas acabou viralizando como o PL dos Estupradores e elevando o #ForaLira a trend topic, o consórcio Faria Lima/Grande Mídia/Bolsonarismo decidiu investir no outro lado do movimento em pinça que segue – e seguirá – tentando asfixiar o governo Lula.
A derrocada inesperada – até mesmo para a esquerda oficialista – do que parecia uma babada na pauta dos costumes deixou claro para a grande mídia e o big money (conceda-se, para efeitos analíticos, que sejam coisas distintas) que o furo foi pior do que na água: foi no pé.
Cabia portanto mudar o flanco do ataque. E nada melhor do que aproveitar uma momentânea subida do dólar no mercado internacional para retomar a ladainha de que toda vez que Lula insiste em dizer que pretende governar para a população e não para a Faria Lima, um tsunami de desastres se abaterá sobre o país.
E desta vez o ataque pelo flanco direito foi articulado em várias frentes combinadas.
Na arena central, o confronto personificado em Lula e Campos Neto teve como tema explícito o malefício da “opinião” naif de Lula contra o rigor “técnico” de Neto e utilizou como argumento a mudança de voto de Galípolo, mas não conseguiu disfarçar que o objetivo de fundo é inviabilizar a indicação deste para substituir aquele.
Gesto preventivo de quem não está seguro que a PEC em gestação no Senado garanta a tal da “autonomia plena” do Banco Central a tempo de evitar que Lula indique o novo presidente. Nenhuma palavra na grande mídia quanto à flagrante ilegalidade das contas offshore do presidente do Banco Central.
O que faz lembrar que quando foi descoberto que Guedes também tinha suas poupanças em dólar resguardadas em offshore e, portanto, se beneficiava diretamente de suas próprias decisões, bastou o velho argumento de que ele não participava mais da direção das empresas para que tudo se esquecesse.
Mas como Campos Neto é evidentemente mais limpinho e cheiroso que Guedes, desta vez nem isso foi necessário. Deu-se de barato que esse é um tema privado e que as decisões do presidente são “técnicas.” Nem a recente recuperação dos vídeos em que Conceição Tavares esbraveja que “o nome da disciplina, desde Adam Smith, é economia política” (com negrito e caixa alta naquela oralidade moldada pelo cigarro) teve qualquer efeito sobre a unanimidade esperta dos experts.
A ser justo, haveria que registrar a exceção de Marcelo Lins, na GloboNews, que, quase em tom de desculpas, lembrava a seus colegas que afinal “não ficava bem” que o detentor de um cargo tão importante fosse votar com “camiseta que identifica o voto” ou tivesse conversas que “pudessem ser entendidas como apoio a um determinado candidato”. Elegância e sutileza destacadas pelo contraste com a sofisticação analítica de Lili Cantanhede a reclamar que “Lula falou besteira outra vez”.
Mas ninguém se arrisca a apostar que a elegância e o sorriso irônico de Campos Neto sejam suficientes para o embate com o ogro Lula. Por isso veio a calhar a efeméride dos 30 anos de Plano Real, com seminários, entrevistas e debates devidamente expurgados do calote cambial e da compra de votos para a emenda da reeleição de FHC.
Efeméride expurgada também de qualquer avaliação crítica. Ou alguém encontrou destaque parecido de André Lara Resende a seus colegas na festança dos 30 anos? Aliás, este nem ao menos foi convidado para o Seminário promovido pela Fundação FHC, curiosamente realizado enquanto o próprio recebia visita de cortesia do presidente.
Mas a GloboNews parece um convescote da socialdemocracia quando comparada aos editoriais ou às colunas de opinião do jornal de Luiz Frias, que passou a explorar, num estilo do velho Notícias Populares, o deprimente estado demonstrado por Biden para mais um exercício de perversa simetria com a idade de Lula.
Aquele que um conhecido cientista social chama de “filósofo liberal residente” vai além da comparação com Biden e alerta que se Lula “não atenta à saúde pública”; como Bolsonaro, ele exercita um “negacionismo econômico que também faz vítimas”.
Elegante ainda, se medido pela escala de William Waack, o decaído, que diante da impossibilidade de comparar a senilidade física e pessoal de Biden ao vigor da indignação de Lula, cravou que à primeira corresponde a “senilidade das ideias” de Lula.
E por falar em efeméride, a recente manchete da Folha afirmando que o novo salário mínimo vai custar 100 bilhões, relegando à linha fina a explicação de que o cálculo se refere aos próximos cinco anos, trouxe à memória a antológica entrevista de Armínio Fraga, ainda durante o governo Dilma, em que afirmava que “o Brasil não suporta esse mínimo”.
Talvez ele tenha razão. Talvez os donos do Brasil não suportem mesmo esse mínimo tão mínimo ou a escandalosa ideia de que alguém tenha direito a três refeições ao dia sem antes comprovar seu pedigree meritocrático.
Preocupante é a sensação de que Lula, que ficou em confortável segundo plano na derrubada do PL dos estupradores, agora parece sozinho nesse combate.
(*) Carlos A. Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos