Em 1995, ao participar do Programa Roda Viva, a economista Maria da Conceição Tavares, que recentemente faleceu, aos 94 anos, no Rio de Janeiro, respondeu ao então repórter da Folha de S. Paulo, Carlos Alberto Sardenberg, sobre o que achava da independência do Banco Central, proferindo, sem titubear: “independente de quem, meu companheiro?”. Ela conclui seu pensamento afirmando que que o Banco Central deve responder politicamente ao Congresso e publicamente através do Conselho Monetário. Cerca de dez anos depois, em uma entrevista ao Brasil Econômico, novamente mostrou sua rejeição pela suposta “independência” do Banco Central: “Ai, isso é outra patetada… Eu me cansei. Não há nenhum Banco Central independente, meu bem! O dos Estados Unidos, que devia ser o paradigma, não é independente, como é que o nosso seria? Independente quer dizer o que, hein? Não quer dizer nada. Independente do governo? Do mercado? Das metas da política econômica? Independente não quer dizer porcaria nenhuma! O BC tem é que tentar agir de uma maneira coerente. Agora, quando ele tem metas contraditórias, como conter inflação e fazer uma política cambial mais ativa, fica difícil culpar o BC.”
No último dia 10, o governador de São Paulo Tarcisio de Freitas (Republicanos) promoveu um jantar em homenagem ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na mesma noite em que Campos Neto recebeu o “colar de honra ao mérito legislativo” na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) por sua suposta boa atuação à frente da instituição monetária. O evento, ocorrido no Palácio dos Bandeirantes, contou com cerca de 70 pessoas, entre banqueiros, empresários e políticos. Dentre os membros do mercado, estiveram no jantar o presidente do BTG Pactual, Roberto Sallouti, e o presidente do conselho administrativo do banco, André Esteves, além de Luiz Carlos Trabuco, presidente do conselho de administração do Bradesco, Luís Stuhlberger, do Fundo Verde, e Rafael Furlanetti, diretor da XP.
Apesar de Tarcísio e outros participantes do jantar afirmarem que não se tratou de um evento político, voltemos a mais um discurso da professora Maria Conceição, desta vez em uma das suas aulas na Unicamp: “Só faz de conta que a política não interessa quem manda, meu bem. E Deus sabe que a política lhe interessa muito. O problema é que ele disfarça seu interesse político. Ele faz em câmaras secretas. Ele faz, aí sim, em chás, em almoços”. O deputado estadual Tomé Abduch (Republicanos), responsável pela homenagem a Campos Neto na Alesp, afirmou que “a coragem do presidente do Banco Central em manter sua postura sem se deixar influenciar por ideologias merece a medalha”. Crítico da política econômica do governo federal , que, segundo ele, contraria o equilíbrio fiscal e a segurança jurídica, o deputado defende seu aliado: “Não podemos pressionar o presidente do Banco Central a reduzir a taxa de juros arbitrariamente”. Abduch, que também esteve presente no jantar, afirmou que o evento foi institucional e que “de forma alguma queremos transformá-lo em um evento politizado ou polarizado”.
Desde 2015, vivemos sob a narrativa de que o dinheiro do governo está acabando e de que a única saída é a austeridade fiscal, o que levou à implementação do Teto de Gastos, da reforma trabalhista e da reforma previdenciária, resultando em maior desemprego e precarização. Junta-se a isso a busca incessante pelo superávit primário, que é o saldo positivo de todas as receitas e despesas do governo, excetuando os gastos com pagamento de juros. Também pertence a esse cenário a criação de uma necessidade de diminuição da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que abrange os governos federal, estaduais e municipais, que em janeiro de 2023 era de 73,1% do PIB. Importante destacar que países como Japão (266% do PIB) e EUA (98% do PIB) possuem dívidas públicas significativamente maiores e nem por isso possuem taxas de juros tão elevadas como a brasileira. Sobre essa situação, a economista indiana Jayati Ghosh, em um seminário promovido em 2023 pelo BNDES, afirmou que o Brasil é um país masoquista por se auto-impor a geração de superávits primários apesar de não ter uma dívida externa alta ou exigências do FMI, e com uma dívida interna baixa, em meio a várias demandas sociais e a necessidade de aumentar os gastos públicos.

(Foto: Marcos Corrêa/PR)
A “autonomia” do Banco Central do Brasil (BACEN) é parte desse cenário, estabelecida pela LC 179/21, que desalinha os mandatos do Presidente da República e do Presidente do Banco Central. Isso levanta questões sobre a independência do BACEN e como o plano político decidido pelo povo será implementado. O BACEN sempre teve autonomia operacional e desempenha um papel crucial no apoio à política fiscal, sendo considerado pelo Banco Mundial como uma instituição fundamental na redução das desigualdades. No entanto, há um conflito entre a política fiscal orquestrada pelo Tesouro Nacional e a política monetária gerida pelo BACEN, que foi coordenada pela gestão anterior, uma vez que o atual presidente da instituição, Roberto Campos Neto, foi escolhido por Bolsonaro, e vem mantendo as taxas de juros em patamares bastante elevados para o atual contexto brasileiro. O economista Joseph Stiglitz, ganhador do Nobel de Economia em 2001, alertou que as altas taxas de juros impõem um custo enorme ao Brasil, prejudicando sua competitividade, estrangulando empresas e enfraquecendo a economia.
Para além da questão da taxa de juros influenciar nas possibilidades de investimento produtivo pelo capital privado, ela nos remete ao problema da dívida pública, mecanismo pelo qual é alimentado o capital portador de juros e drenada parte substantiva dos recursos do fundo público até hoje. A condução da política econômica efetuada pelos governos FHC – e que teve continuidade nos governos seguintes – não alterou o padrão de gestão da dívida, mantendo-se não apenas as metas de superávit, mas também a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Outro efeito das altas taxas de juros é a valorização artificial do Real em relação a outras moedas internacionais. As taxas de juros elevadas no mercado interno atraem um excesso de capital especulativo, aumentando a oferta de moeda estrangeira muito além da demanda, o que leva à valorização do Real. O fato é que a taxa de juros sobre a dívida pública impõe um constrangimento inaceitável à capacidade de o Estado brasileiro fazer os investimentos necessários ao resgate da enorme dívida social do país. A sustentabilidade da dívida com esta taxa, hoje em cerca de 6,54% de juros reais ao ano, descontada a inflação esperada, só é possível com a geração de enormes superávits fiscais primários. Ainda, tal taxa põe o Brasil como segundo maior juro real do mundo.
A hegemonia do neoliberalismo contribuiu para o esvaziamento progressivo das políticas monetária e fiscal desde os anos 1980. O papel da política monetária foi drasticamente reduzido e seus instrumentos foram limitados. Da mesma forma, a política fiscal sofreu uma desidratação significativa devido à aversão ao déficit público, reduzindo drasticamente o papel do tesouro nacional no gerenciamento macroeconômico. Como resultado, a política fiscal passou a se limitar ao cumprimento de metas de gastos, fazendo com que o Tesouro perdesse completamente sua capacidade de usar a política fiscal de forma discricionária. Portanto, conforme explicam Modenesi e Pimentel, em um texto para discussão de 2020 da UFRJ, o Banco Central ideal deveria ter seus objetivos e instrumentos amplamente expandidos.
Em primeiro lugar, seria necessário abandonar a usual compartimentalização das políticas econômicas em favor de um arcabouço mais amplo e complexo, que utilize de forma coordenada as políticas fiscal, monetária e cambial. Esse uso integrado dos instrumentos de intervenção econômica é essencial para promover o pleno emprego e manter os níveis de renda. Além disso, promover um sistema de crédito mais justo (em 2021, o spread bancário foi de quase 16%, cerca de três vezes a média mundial); utilizar múltiplos instrumentos para combater a inflação de múltiplas causas e promover uma política monetária mais transparente e democrática. E também, nunca esquecer de perguntar, como já disse Maria Conceição Tavares: “independente de quem?” Do povo ou do mercado financeiro? Pois, deste último, parece que não só é dependente, como é muito amigo e tem expandido cada vez mais tal “amizade”, sem trazer qualquer benefícios à população brasileira.
(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.