“A travessia” (The Crossing, 2000) é um drama histórico estadunidense dirigido por Robert Harmon e estrelado por Jeff Daniels no papel de George Washington, líder militar da Revolução Americana, que libertou as míticas treze colônias da opressão inglesa. Iniciada em abril de 1775, a revolta teve origem na resistência ao pagamento de impostos à coroa britânica e levou à eclosão de conflitos armados entre a Grã-Bretanha e “milícias patrióticas”. Os insurgentes se declarariam independentes em 4 de julho de 1776, levando a um enfrentamento militar de sete anos, encerrado com o reconhecimento dos Estados Unidos da América, pelos ingleses, em 3 de setembro de 1783, quando é assinado o Tratado de Paris.
Apesar de relativamente antigo e de não ser nenhuma obra-prima, o filme é bem feito e vale ser assistido ou revisto, mas sob uma perspectiva crítica. Não a de uma bela e gloriosa guerra de independência, como pintou Hollywood em infinitas ocasiões, e sim pelo o que realmente foi: uma luta anticolonial dura e vil.
A película reencena a batalha que se sucedeu após a corajosa decisão do general Washington de realizar a travessia do rio Delaware, na atual Pennsylvania, em 25 de dezembro de 1776. Naquela altura da guerra, o Exército Continental, como eram chamadas as fileiras militares rebeldes, estava na iminência da derrota total. Os ingleses preparavam o bote final contra o que havia restado das tropas insurgentes, compostas majoritariamente por soldados oriundos das classes populares – com pouco treinamento militar, mal-armados e desnutridos.
Num ato desesperado de sobrevivência, Washington decide arriscar tudo em um ataque surpresa contra as forças inimigas. Desacreditado pelos demais comandantes, o plano propunha atravessar o rio Delaware na congelante noite de 25 de dezembro, operando na surdina, ao alvorecer do dia seguinte. O objetivo era a cidade de Trenton, onde mais de mil experientes mercenários germânicos, pagos pela coroa britânica, estariam adormecidos ou até embriagados após a farta celebração do Natal: o golpe inesperado seria a única forma de diminuir a enorme desproporção de forças militares, pegando os soldados inimigos de ceroulas ou em sono profundo.
Apanhado de surpresa e sem capacidade de reação, com seus homens abatidos como lebres indefesas, o comandante germânico Johann Rall se rendeu aos rebeldes. O grande paladino da independência norte-americana conquistava, assim, um triunfo decisivo, às custas de violar preceitos éticos das guerras da época e agir como chefe de um grupo bandoleiro – ou terrorista, no linguajar atual.
Essa história, bem retratada no filme, lembra outra ação anticolonial que adotou o modelo do ataque-surpresa: a Operação Dilúvio Al-Aqsa, planejada e executada pelo grupo palestino Hamas, em 7 de outubro de 2023, contra o Estado de Israel. Guardadas as devidas diferenças históricas, até porque o Hamas nunca contou com um exército como o da Revolução Americana, limitando-se a uma milícia armada, sua empreitada guarda várias semelhanças com a de George Washington.
O general americano, porém, entrou para a história como um grande herói, mesmo adotando táticas moralmente controversas para libertar o povo norte-americano. Já o Hamas e seu líder militar, Yahya Sinwar, são taxados de terroristas pelos EUA e seus aliados. Uma rara exceção ocidental foi a Irlanda: talvez pela memória da dura opressão colonial inglesa, logo prestou solidariedade à causa palestina e condenou a genocida reação do regime sionista.
A realidade é que lutas anticoloniais, especialmente por seu caráter assimétrico, nunca foram meigas e bonitas. No Vietnã, guerrilheiros surgiam do nada, a partir de túneis (tática copiada inclusive pelo Hamas). Na Argélia, foram vários os ataques a cafés e a outros lugares públicos, com pensadores da extirpe de Frantz Fanon argumentando que civis também seriam alvos legítimos por serem beneficiários da ocupação colonial. Mesmo grupos sionistas, nos anos 30 e 40, além de recorrerem à violência para expulsar palestinos de suas terras, manejavam incursões terroristas contra o colonialismo britânico, incluindo vítimas sem armas e uniformes.
Pode-se alegar que o Hamas, ao contrário dos rebeldes norte-americanos, agiu diretamente contra cidadãos inocentes. Deve-se levar em conta, no entanto, o papel do terror na emancipação dos Estados Unidos, como parte da luta armada: o grupo Filhos da Liberdade ganhou notoriedade, entre outros feitos, por suas ações de sabotagem e violência contra funcionários administrativos e civis associados ao Império Britânico.
No caso de Israel, vale ressaltar que todo jovem, homem ou mulher, com mais de 18 anos, serve nas Forças Armadas e integram a reserva militar ativa do regime sionista, como muitos dos que estavam na rave Nova Music Festival. De todo modo, a narrativa predominante na imprensa ocidental é a da propaganda sionista: ainda pouco se sabe sobre o que de fato aconteceu em 07/10, incluindo o caso de civis assassinados pelas próprias tropas israelenses.
As experiências históricas demonstram que, para derrotar a opressão colonial, em regra militarmente muito superior, forças insurgentes são obrigadas a adotar táticas polêmicas, como emboscadas e ataques-surpresas. Foi o que fez Washington, o herói revolucionário, na Batalha de Trenton, mas também Sinwar, o vilão terrorista.
Ante a recorrência desta conduta contra a opressão colonial, por que exigir um rigor moral do Hamas que não se aplica contra os fundadores da maior democracia liberal? Por que os independentistas norte-americanos tudo podiam contra o pagamento de impostos, raiz de sua rebelião, mas dos palestinos se exige que tenham a etiqueta dos salões de chá para enfrentar limpeza étnica, tirania militar e genocídio?
Irônico que seja um velho filme de Hollywood a desnudar essa hipocrisia.
(*) Susana Botár é advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e doutoranda pelo mesmo programa.