Batom é símbolo de luta por direitos, não de ataque à democracia
Não é a primeira vez que o batom vira símbolo político em Brasília: antes de Débora Rodrigues, que pichou estátua, ele simbolizou luta das mulheres na Constituinte
“Perdeu, mané”. Foram estas as palavras escritas por Débora Rodrigues do Santos, com seu batom vermelho, na escultura “A Justiça” no dia 8 de janeiro de 2023. A cabeleireira de 39 anos integrava o grupo de pessoas que tomou a praça dos Três Poderes, em Brasília, e invadiu as sedes das principais instituições republicanas do país: o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Desde então, o batom virou símbolo de políticos e manifestantes que pedem anistia aos presos pela tentativa de golpe de Estado perpetrada pela extrema-direita logo após a posse do presidente Lula.
Presa preventivamente, Débora alega que não sabia da importância da estátua, e bolsonaristas tentam transformá-la em um ícone do exagero das penas e do tratamento injusto de que os presos pela participação no ato golpista supostamente estariam sendo vítimas. Esquecem-se, convenientemente, que ela não foi detida apenas por uma simples pichação, e sim denunciada por cinco crimes: deterioração de patrimônio tombado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado com violência e associação criminosa armada.
É também impossível pensar no caso de Débora como uma injustiça sem lembrar que o Brasil tem a terceira maior população feminina encarcerada do mundo. São mais de 40 mil mulheres presas em péssimas condições, a maioria delas jovens e negras, o que reflete as desigualdades estruturais do país. Muitas delas, presas por crimes não violentos, enfrentam um sistema penal marcado pela seletividade racial e pela ausência de garantias básicas. Poucas conseguem progressão de pena e benefícios como a prisão domiciliar para mães de crianças até 12 anos. Mãe de dois filhos, Débora conseguiu deixar a cadeia para cumprir a pena em casa, beneficiada por dispositivos jurídicos progressistas que, em tese, deveriam funcionar para todos. E que, é importante destacar, são constantemente atacados pelo grupo político reacionário que ela mesma defendia quando integrou o ato golpista e sacou seu batom para depredar o patrimônio público em Brasília.
Historicamente, no entanto, não é a primeira vez em que o batom vira símbolo político em Brasília. Durante a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988, parlamentares de todos os partidos, que representavam então apenas 5,3% da composição do Congresso Nacional, se uniram para reivindicar igualdade, direitos e participação política feminina no que ficou conhecido como “Lobby do Batom”.

(Foto: Escola Brasiliense de Fotografia – EBF / Agência Senado / Flickr)
A partir de uma grande mobilização articulada por movimentos feministas, ativistas e organizações sociais em todo o país, a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes” foi entregue ao deputado Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembleia. O trabalho das 26 deputadas que participaram da elaboração da nova Constituição garantiu conquistas importantes para as mulheres, como igualdade jurídica, ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos e direitos reprodutivos. Naquele grupo, a presença de apenas uma mulher preta, Benedita da Silva, escancarava o apagamento histórico das vozes negras nas instâncias de poder.
Hoje, passados quase 40 anos, as mulheres ainda ocupam menos de 20% do Parlamento e o caminho da igualdade ainda parece longo em todas as instâncias sociais. A tentativa de transformar o batom em símbolo político de movimentos extremistas e golpistas é também uma tentativa de apagamento de todo o histórico de lutas fundamentais travadas pelas mulheres pela ampliação de seus direitos sociais. Nossa trajetória não será apagada e apropriada por uma narrativa falsa e antidemocrática.
(*) Benedita da Silva é deputada federal (PT/RJ) e foi a única mulher negra a integrar Assembleia Nacional Constituinte
(*) Vanessa Nascimento e Beatriz Lourenço são diretoras do Instituto de Referência Negra Peregum
