Quarta-feira, 14 de maio de 2025
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“Perdeu, mané”. Foram estas as palavras escritas por Débora Rodrigues do Santos, com seu batom vermelho, na escultura “A Justiça” no dia 8 de janeiro de 2023. A cabeleireira de 39 anos integrava o grupo de pessoas que tomou a praça dos Três Poderes, em Brasília, e invadiu as sedes das principais instituições republicanas do país: o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Desde então, o batom virou símbolo de políticos e manifestantes que pedem anistia aos presos pela tentativa de golpe de Estado perpetrada pela extrema-direita logo após a posse do presidente Lula. 

Presa preventivamente, Débora alega que não sabia da importância da estátua, e bolsonaristas tentam transformá-la em um ícone do exagero das penas e do tratamento injusto de que os presos pela participação no ato golpista supostamente estariam sendo vítimas. Esquecem-se, convenientemente, que ela não foi detida apenas por uma simples pichação, e sim denunciada por cinco crimes: deterioração de patrimônio tombado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado com violência e associação criminosa armada.

É também impossível pensar no caso de Débora como uma injustiça sem lembrar que o Brasil tem a terceira maior população feminina encarcerada do mundo. São mais de 40 mil mulheres presas em péssimas condições, a maioria delas jovens e negras, o que reflete as desigualdades estruturais do país. Muitas delas, presas por crimes não violentos, enfrentam um sistema penal marcado pela seletividade racial e pela ausência de garantias básicas. Poucas conseguem progressão de pena e benefícios como a prisão domiciliar para mães de crianças até 12 anos. Mãe de dois filhos, Débora conseguiu deixar a cadeia para cumprir a pena em casa, beneficiada por dispositivos jurídicos progressistas que, em tese, deveriam funcionar para todos. E que, é importante destacar, são constantemente atacados pelo grupo político reacionário que ela mesma defendia quando integrou o ato golpista e sacou seu batom para depredar o patrimônio público em Brasília.

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Historicamente, no entanto, não é a primeira vez em que o batom vira símbolo político em Brasília. Durante a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988, parlamentares de todos os partidos, que representavam então apenas 5,3% da composição do Congresso Nacional, se uniram para reivindicar igualdade, direitos e participação política feminina no que ficou conhecido como “Lobby do Batom”.

A deputada Benedita da Silva, única mulher negra a integrar a Assembleia Nacional Constituinte, é aplaudida por mulheres ao chegar no Congresso Nacional. (Foto: Escola Brasiliense de Fotografia - EBF / Agência Senado / Flickr)
A deputada Benedita da Silva, única mulher negra a integrar a Assembleia Nacional Constituinte, é aplaudida por mulheres ao chegar no Congresso Nacional.
(Foto: Escola Brasiliense de Fotografia – EBF / Agência Senado / Flickr)

A partir de uma grande mobilização articulada por movimentos feministas, ativistas e organizações sociais em todo o país, a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes” foi entregue ao deputado Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembleia. O trabalho das 26 deputadas que participaram da elaboração da nova Constituição garantiu conquistas importantes para as mulheres, como igualdade jurídica, ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos e direitos reprodutivos. Naquele grupo, a presença de apenas uma mulher preta, Benedita da Silva, escancarava o apagamento histórico das vozes negras nas instâncias de poder. 

Hoje, passados quase 40 anos, as mulheres ainda ocupam menos de 20% do Parlamento e o caminho da igualdade ainda parece longo em todas as instâncias sociais. A tentativa de transformar o batom em símbolo político de movimentos extremistas e golpistas é também uma tentativa de apagamento de todo o histórico de lutas fundamentais travadas pelas mulheres pela ampliação de seus direitos sociais. Nossa trajetória não será apagada e apropriada por uma narrativa falsa e antidemocrática.

(*) Benedita da Silva é deputada federal (PT/RJ) e foi a única mulher negra a integrar Assembleia Nacional Constituinte

(*) Vanessa Nascimento e Beatriz Lourenço são diretoras do Instituto de Referência Negra Peregum