A troca do candidato do Partido Democrata nos permite um olhar sobre a distância entre o modelo político dos Estados Unidos e o conceito de democracia, a começar pelas nominações partidárias para disputar as eleições e chegando até ao processo de escolha do presidente em si.
Nos últimos meses o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, vinha sofrendo crescente pressão para abandonar seu projeto de reeleição, embora tenha conseguido por em marcha com eficiência os mecanismos disponíveis nas primárias do partido Democrata para a escolha do candidato. Através desses mecanismos, que tornam o processo uma prova de resistência monetária, onde apenas concorrentes com centenas de milhões de dólares conseguem se manter competitivos, e mesmo entre esses as chances reais ficam para aqueles abençoados pelos dirigentes do DNC (Democratic National Committee), Biden defenestrou até mesmo um sobrinho do ex-presidente Kennedy, Robert. F. Kennedy Jr., o intelectual Cornel West e Marianne Williamson, que já foi pré-candidata em 2020.
Ou seja, o processo de primárias do Partido Democrata é um filtro econômico tão acentuado que mesmo milionários como Andrew Yang, ou bilionários como Michael Bloomberg, com riqueza avaliada em US$ 300 bilhões, não conseguem enfrentar as exigências que ainda contam com cerceamento de dados, exclusividade de acesso, direitos especiais e todo um jogo de cartas marcadas que tornam extremamente previsível antever quem será o nominado a partir do apoio de um seleto grupo de dirigentes do DNC.
Se era perceptível a todos os cidadãos registrados no partido que Joe Biden era um candidato fraco, nada disso refletiu nas sucessivas primárias que lhe davam retumbantes vitórias cartoriais. Foi apenas quando esse processo interno estava já terminado, aguardando a formalização da convenção, e os enfrentamentos com a realidade política estadunidense se iniciaram, ou seja, o confronto com o candidato republicano em arena aberta, que se tornou impossível esconder o sol com a peneira em relação à debilidade do escolhido democrata.
Ao longo do último mês esse confronto com a realidade criou um impasse: fingir que o rei não estava nu, insistindo em sua candidatura para não mostrar desunião e não admitir a falência absoluta do modelo de primárias, ou arriscar dar razão ao adversário e admitir que Biden nunca esteve apto a concorrer, diferente do que juravam de pés juntos até então. Quando Biden soma à sua debilidade escancarada o adoecimento por covid, requerendo uma submersão em plena corrida eleitoral, as placas tectônicas do DNC se moveram.
Aqueles mesmos poucos indivíduos que coordenam as ações do Partido Democrata para escolher quem quiserem no processo viciado e censitários das primárias, e que impuseram Joe Biden em 2020 e de novo em 2024, viram a oportunidade para agir rápido para substituí-lo, o que exigia a abdicação de Biden, num ato prontamente glorificado como abnegação e desprendimento de um estadista. O passo seguinte, a indicação do substituto, precisa estar casado com este, mas inevitavelmente irá expor ainda mais as vísceras da oligarquia disfarçada de democracia.
Em tese os delegados comprometidos nas primárias com o voto em Joe Biden estão agora livres para apontar o nome que quiserem para a vaga de candidato democrata. Também em tese, os fundos arrecadados para a campanha de Biden devem ser devolvidos para os doadores ou congelados para serem entregues ao escolhido na convenção de 19 a 22 de agosto. Os republicanos já anunciaram que irão judicializar o uso indevido desses recursos por Kamala Harris desde já. E os filiados ao Partido Democrata, aceitarão que alguém que sequer concorreu nas primárias passe a usufruir de centenas de milhões dados ao escolhido nas primárias? Para essa pergunta a resposta é banal: Eles não podem fazer nada, nem se espera que tenham a ousadia de levantar a voz.
Uma possibilidade para solucionar o impasse seria convocar uma votação online, antecipada, para definir quem ocupa a vaga de indicado pelas primárias, o que seria basicamente esvaziar a convenção de agosto. Embora caótica, essa opção é menos devastadora que a hipótese de ficar sem nenhum candidato durante um mês enquanto Trump já está formalmente indicado entre os republicanos. Mas a opção que se vislumbra passa ao largo dessas, tratando Harris como se fosse Biden, dando-lhe acesso irrestrito ao que o pré-candidato fazia direito – e ao que não fazia direito, mas tinha.
Essa última observação, no parágrafo anterior, nos remete novamente ao modelo de primárias. Entre os privilégios exorbitantes que o DNC se reserva e põe à disposição do seu abençoado na injusta disputa interna, está o de ter acesso exclusivo aos delegados eleitos nas primárias, aqueles 3.900 que irão escolher, formalmente, na convenção de agosto, o candidato. Aos demais postulantes, mesmo que tenham vencido etapas das primárias, ou mesmo que perdido, amealhado alguns delegados, tais informações são negadas.
Assim, se hoje algum outro democrata que não a apontada pelos Clinton e seus sócios no topo do DNC quiser apresentar suas propostas e sua candidatura aos delegados da convenção, simplesmente não saberá quem devem procurar, exceto os 600 e poucos dirigentes que são delegados natos e formam o contingente final dos 4.600 votantes da convenção. Ou seja, a candidatura escolhida por essa elite receberá fundos bilionários arrecadados em nome de outro e terá acesso a todos os eleitores, enquanto qualquer um que tente desafiá-la não acessará um único cent e nem mesmo a lista dos votantes.
Diante deste quadro, é um atentado à lógica supor que Kamala Harris será superada por qualquer outro nome no partido, e que não será, desde já, a candidata democrata. O verniz democrático desgastado se arranja daqui um mês, e toda a imprensa liberal estará disposta a fingir que acredita e passará adiante, como sempre faz, chamando de “maior democracia do mundo” aquela que sem sombra de dúvidas não é a maior e até dificilmente é democracia.
Àqueles que achem exagero a última afirmação, citarei dois elementos que distinguem o modelo dos Estados Unidos do conceito mais comum de democracia.
Na eleição de novembro o vencedor possivelmente será quem teve menos votos na população. Isso já ocorreu diversas vezes, em duas das cinco eleições deste século, a última delas em 2016. Sim, a escolha de presidente nos Estados Unidos não é direta, e os que realmente votam para escolhê-lo gozam de razoável liberdade para escolherem quem quiserem, independente do voto popular, a depender de qual dos cinquenta estados representem. A escolha do presidente está condicionada à vontade dos 538 membros do Colégio Eleitoral, e não aos 240 milhões de cidadãos aptos a sugerir sua preferência naquilo que chamam de eleição, mas na verdade funciona mais como uma consulta popular prévia e não vinculante à eleição em si. Na última vez que Trump foi eleito, sete delegados votaram contra a maioria popular formada na consulta em seu estado. Até por isso, embora Trump tenha tido impressionantes 3 milhões de votos a menos que Hillary Clinton, foi eleito.
Mas a outra característica das eleições dos Estados Unidos que explica, ainda melhor que o descasamento do voto do delegado com o voto popular, como alguém com 3 milhões de votos a menos vence, é a forma de escolha destes delegados. O Texas, por exemplo, tem quarenta delegados. Digamos que lá Trump vença por 60% a 40%. Numa proporção exata ele levaria vinte e quatro delegados (60% de quarenta), enquanto o concorrente, 16 (40% de quarenta). Porém, no sistema chamado “the winner takes it all”, os 40% são descartados, ou seja, 4 milhões de votos, são jogados fora e Trump levaria os quarenta delegados, orientados a votar nele no Colégio Eleitoral. Isso se repete em 48 estados, exceto no Nebraska (cinco delegados) e no Maine (quatro delegados), onde há ainda mais um “filtro” e onde essa regra se aplica dentro de cada um dos distritos, dando um delegado para o vencedor em cada distrito e dois delegados para o vencedor da média geral do estado. Esse sistema joga quase metade dos votos populares fora, e os delegados acabam sendo escolhidos, por um e outro partido, num universo milimetricamente acima dos 50% dos votos populares.
Assim, num país com 333 milhões de habitantes, 240 milhões com direitos eleitorais, cerca de 160 milhões vão às urnas, dos quais 80 milhões de votos são inutilizados e outros 80 milhões definem 538 delegados que, muitas vezes ignorando totalmente tudo anterior, votam no que melhor lhes interesse para presidente. Os filtros atuam para reduzir o peso político de cada um dos cidadãos e aumentar a influência do dinheiro em cada uma destas muitas etapas.
Este é um resumo, dada à limitação do tempo de leitura possível neste modelo de artigo, que deixa de fora outros tantos elementos, como o sistema bipartidário que na prática impede que os cidadãos descontentes com esse Colégio Eleitoral possam se reunir em outros partidos viáveis para trocar os delegados e influir na escolha final, ou as regras de PACs e Super-PACs que inundam as eleições de dinheiro de corporações e bilionários, definindo o jogo muito mais no número de cifrões que no número de votos. É, portanto, demasiado forçoso considerar o modelo de escolha de governo dos Estados Unidos uma democracia plena, quanto mais tomá-lo de referência positiva para um ideal democrático.
Em outras palavras, os Estados Unidos seriam facilmente considerados um daqueles países listados como oligarquias plutocráticas merecedoras de invasão militar salvífica para receber democracia.
(*) Samuel Braun é professor de políticas públicas na UERJ, doutorando em Economia Política Internacional (UFRJ), mestre em ciência política (UFRRJ) e cientista social (UERJ).