A campanha eleitoral para eleição de prefeitos e vereadores, mais uma vez, comprovou a urgente necessidade de o país retomar o debate, no Congresso Nacional, sobre a regulação das plataformas digitais. Definir princípios e critérios para a mediação do conteúdo online de publicações de terceiros irá não só evitar a propagação de informações mentirosas, mas também combater o discurso de ódio e qualquer tipo de discriminação, proteger crianças e adolescentes e defender a democracia. Se em períodos não eleitorais as redes sociais já são responsáveis por um grande volume de fake news, em tempos eleitorais a propagação de informações falsas aumenta exponencialmente, comprometendo o debate democrático.
Dois acontecimentos relevantes marcaram a campanha eleitoral de 2024, e são exemplos perfeitos de que não se pode postergar a regulamentação das big techs no Brasil. O primeiro deles envolve o uso, pelo candidato a prefeito de São Paulo, Pablo Marçal, do PRTB, de um falso laudo médico para acusar seu opositor de uso de drogas. Por determinação da Justiça Eleitoral, o vídeo foi imediatamente retirado do ar nas contas de Marçal, mas continuou circulando nos grupos de mensagens.
O segundo, embora não diretamente relacionado com a campanha, acabou tendo alguma influência sobre ela. Por desobedecer a determinações do STF de retirar do ar perfis de investigados no inquérito das fake news, não pagar as multas devidas e não nomear representante legal após fechar o escritório no Brasil, a rede social X (ex-Twitter) teve sua operação bloqueada pelo tribunal. A rede ficou suspensa de 30 de agosto a 8 de outubro e, após muita bravata, Elon Musk, o bilionário dono do X e de outras empresas de tecnologia, foi obrigado a nomear representante legal e pagar as multas para retomar a operação local.
Esses dois exemplos nos mostram que, sem regulação, qualquer intervenção em defesa da sociedade depende da Justiça. E os tempos da Justiça, mesmo da Justiça Eleitoral, não são os mesmos do ritmo em que são processados os conteúdos nas redes sociais, a principal fonte de informação de quase metade da população brasileira.
Se em maio de 2022 o PL 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, foi retirado da pauta da votação em plenário da Câmara dos Deputados por pressão das big techs e da oposição, sob o falso argumento de que limitaria a liberdade de expressão, hoje o cenário é outro. Levantamento realizado pelo Congresso em Foco, em setembro deste ano, mostra que 60% dos congressistas manifestaram-se a favor de regular as plataformas digitais.
Com frequência a mídia – e não só os veículos independentes, mas também a mídia corporativa, como o recente editorial do jornal O Globo – traz artigos mostrando que a falta de regulação tem forte impacto político, pois compromete a democracia, e econômico, na medida em que permite o fortalecimento dos oligopólios formados pelas empresas estrangeiras de tecnologia.
No último dia 18, um conjunto de entidades da sociedade civil – entre as quais a Associação Brasileira de Imprensa, o Instituto dos Advogados do Brasil e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – lançou um manifesto, dirigido aos parlamentares e presidentes de partidos políticos, pedindo a retomada urgente dos debates para a regulação das plataformas digitais. No documento, alertam para o fato de que, com o avanço da tecnologia, os problemas decorrentes das fake news só tendem a se tornar maiores e mais complexos, com o uso de sistemas de deep learning e inteligência artificial. Essas técnicas permitem manipular a voz e a imagem de uma pessoa com alta precisão. Se usadas para atacar politicamente um adversário, podem comprometer em segundos a imagem de uma pessoa pública.
Assim, não é possível mais que a internet no Brasil continue como terra de ninguém, com as plataformas agindo como bem entendem. Pesquisa realizada pelo NetLab da Escola de Comunicação da UFRJ e publicada pelo O Globo mostra que a plataforma que obteve o melhor desempenho no índice de transparência de dados foi o YouTube, com 63,2 pontos, numa escala de zero a dez. E no índice de transparência de publicidade o desempenho foi ainda pior: a Meta (Instagram, Facebook e WhatsApp), a melhor pontuada, ficou em 49,8.
A regulação vai definir regras que ampliem a transparência em relação a uma série de atividades desenvolvidas pelas plataformas, desde relacionamento com o usuário, a publicidade, até os algoritmos de impacto social. Mas certamente o ponto mais sensível, e mais polêmico, é a mediação online de conteúdo de terceiros. Hoje, as plataformas só retiram conteúdo, via de regra, por ordem judicial, seguindo o que define o Marco Civil da Internet. A proposta do PL 2630, que segue a legislação alemã, previa que se adotasse o chamado dever de cuidado para com a sociedade.
O país está pronto para enfrentar este debate. A alegação das plataformas de que a regulação é censura e vai limitar a liberdade de expressão na internet é uma manobra diversionista, para confundir os incautos. Elas são contra a regulação porque o ambiente desregulado é bom para seu modelo de negócios. Mas é ruim para a nossa democracia, para a nossa economia; em resumo, para o nosso país.