A vitória de Donald Trump foi anunciada em tempo recorde. Isso só é possível no sistema eleitoral dos EUA quando a diferença de votos é muito grande. Do contrário, levariam ainda alguns dias a contar votos (em papel), como aconteceu no último pleito que elegeu Biden.
Trump não apenas levou a maioria do voto popular e a maior parte dos delegados ao colégio eleitoral (que ainda levará algumas semanas para reunir-se), órgão que de fato elege o novo presidente. Levou também a maioria nas duas casas do Congresso dos EUA.
Com essa margem, os Republicanos, se tiverem unidade interna (isso já são outros quinhentos), terão capacidade até para reformar a Suprema Corte, projeto que Trump já nutria em seu primeiro mandato, mas não tinha força para concretizar.
Dessa vitória acachapante dos Republicanos já se pode tirar algumas breves conclusões, embora, como tudo em ciências sociais, qualquer análise feita no calor do momento sempre corre o risco de ficar na superfície do fenômeno.
Uma primeira observação é que as pesquisas de intenção de voto nos EUA continuam errando. O “empate técnico” que vinha sendo anunciado nas últimas pesquisas tendia sempre a uma vitória apertada dos Democratas. Mais grave, as sondagens de “boca de urna” de ontem apontavam a vitória de Kamala Harris em Estados em que ela perdeu por uma larga margem de votos. A pergunta que precisamos fazer é: as pesquisas são ruins ou sua divulgação é manipulada deliberadamente? Talvez sejam as duas coisas.
Uma segunda conclusão é que, se é possível confiar minimamente em alguma dessas pesquisas, o eleitorado dos EUA segue refutando a ideia de ter uma mulher presidente. Algumas sondagens mostravam que o senil Biden teria mais votos que Kamala, apesar de tudo. Ainda assim, dificilmente Biden teria vencido. Isso porque não são apenas as pautas morais que mobilizam o eleitorado dos EUA, embora tenham um grande peso. O fato inegável é que a economia vai mal, muito mal. Os alimentos estão caríssimos, o desemprego afeta milhares. Os “afortunados” que não estão desempregados amargam dois ou três postos de trabalho, em jornadas extenuantes, a fim de manter algum poder de compra.
O sistema de saúde quase inexistente faz com que um tratamento seja algo inalcançável para milhões de americanos. Biden não avançou na ampliação do sistema de modo que pudesse atender à maioria, mantendo-o restrito às camadas mais miseráveis, ainda assim com cobertura insuficiente. O trabalhador com dois ou três empregos, que não tem condições de arcar com gastos médicos, não está coberto pelo sistema. Isso tem servido como mais um elemento de revolta, prato cheio para a agitação fascista de que “o problema” dos EUA são os imigrantes e os mais pobres.
A solução oferecida pelos apóstolos do MAGA (Make America Great Again) é ilusória: promete uma reindustrialização a partir do retorno das empresas ao território; aposta nas portas fechadas aos imigrantes; faz acenos a uma política tributária que zeraria os impostos ao cidadão, inexequível em um país que compromete 37% do seu orçamento em defesa; promete um “tarifaço” contra produtos vindos do exterior, o que pode gerar ainda mais inflação. No entanto, o discurso teve efeitos nas massas. Para executar o que prometem, os republicanos terão a quase impossível tarefa de fazer com que as empresas dos EUA retornem suas instalações para o país. Mas no “país da liberdade” os empresários não se comprometem com o povo americano, seu único compromisso é com o lucro. O retorno da produção para o solo nativo só será viável com o achatamento geral dos salários.
Trump também promete encerrar a guerra na Ucrânia, apontando o dispêndio com a guerra e com a OTAN como um dos grandes vilões da economia nacional. Será possível crer nessa promessa? Talvez, tendo-se em conta que em seu primeiro governo os repasses dos EUA para a OTAN reduziram-se significativamente. Com Biden a OTAN experimentou um novo alvorecer. No entanto, as provocações da OTAN ao redor da Rússia não remontam apenas a Biden, mas a Obama. Durante o governo de Trump elas não pararam – veja-se por exemplo a descoberta dos laboratórios secretos na fronteira entre Rússia e Ucrânia, mantidos com financiamento dos EUA, também sob Trump.
Ao mesmo tempo, Trump aponta suas baterias para a China, desenhada por ele como o grande “vilão” da desindustrialização dos EUA – e não as próprias empresas norte-americanas, que mudaram seus parques industriais para a Ásia em busca de maiores lucros. Um Congresso majoritariamente republicano pode vir a rever a política voltada a Taiwan, aprofundando o nível das tensões com a China. Mas isso, por enquanto, é apenas especulação.
O que se sabe a partir das declarações do futuro presidente dos EUA é que a política para o Oriente Médio não deve mudar. O apoio a Israel permanece e, com ele, a carta branca para a guerra de extermínio que vem sendo movida pelo país contra o povo palestino e agora também contra o Líbano. No primeiro governo de Trump, foi rompido o tratado com o Irã sobre pesquisas nucleares. Trump já demonstrava, naquela gestão, certa inclinação a apoiar uma escalada dos conflitos na região, tendo o Irã como um alvo importante. A preocupação com o controle das rotas de petróleo é o principal motivo, e manter a aliança com Israel faz parte da política de controle regional.
Quanto à América Latina, é bastante provável que a gestão republicana siga incentivando conflitos internamente à Nicarágua e à Venezuela, bem como dando suporte simbólico (e financeiro) aos partidos e movimentos de extrema-direita. Nesse sentido, o governo brasileiro começa mal sua relação com os EUA, com a desastrada proclamação de preferência de Lula por Kamala Harris. A neutralidade é sempre a melhor aliada de um presidente da República. Ainda mais quando se trata de um país situado no mesmo continente da superpotência. Para nós latino-americanos, seria desejável que Trump de fato cumprisse com suas promessas de voltar-se para os problemas internos dos EUA. O problema é que para os estadunidenses a América Latina é o pátio da casa.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.