Entre as muitas fábulas que rondam o show business, sempre competitivo e agressivo, existe aquela que separa de modo binário artistas queridos do público e seus empresários portadores de dentes arreganhados de pitbull. Para tornar as coisas ainda mais complexas, há casos em que o herói de capa e espada não apenas é empresariado, mas também nutre um casamento ou outro tipo de relacionamento afetivo com o pitbull. Um exemplo notório e atualmente rumoroso é o de Caetano Veloso, 81 anos, um dos cantores e compositores mais influentes ainda em atividade no Brasil, e sua empresária e esposa, a ex-atriz Paula Lavigne, 55.
Dois casos judiciais alimentam especulações sobre Lavigne, um envolvendo sua ex-governanta Edna Fonseca e outro polarizando-a com a cantora e compositora carioca Teresa Cristina. O primeiro caso começou a se desenrolar no final do ano passado, quando a “branquinha” (modo como o eu-lírico de Caetano caracterizou a musa numa canção de 1989) participava de um programa de TV da apresentadora loira Angélica e foi desafiada a fazer um telefonema em que expressasse agradecimento a uma mulher importante em sua vida.
Enquanto as outras convidadas, a cantora Ivete Sangalo e as atrizes Carolina Dieckmann e Giovanna Ewbank, iam às lágrimas falando com irmã, amiga famosa ou mãe, Paula Lavigne causou impacto ao escolher a governanta, comandar ordens e perguntar sobre a alimentação de Caetano. Em meio à conversa, com expressão amuada, Lavigne soltou um “só pra dizer que te admiro muito, tá?”. A declaração provocou aparentes incredulidade e desconforto na funcionária, que demonstrou uma recíproca envergonhada após as explicações do porquê da inesperada ligação: “Eu também admiro a senhora”.
Não se sabe se há relação direta entre os dois episódios, mas não demorou muito para o afeto entre patroa e empregada desandar para demissão e acusações de roubo de dólares por parte de Paula e de diversos tipos de assédio moral pelo lado de Edna, além de ações judiciais de ambas as partes. Logo a seguir, vieram a público os processos cruzados entre Teresa Cristina e a produtora Uns e Outros, de Lavigne, que vinha gerenciando shows da artista desde 2017. Enquanto a empresa de Lavigne processa Teresa por rompimento unilateral de contrato, a cantora tenta revogar um embargo segundo o qual toda sua criação musical pertence à Uns e Outros até 2027. Durante esse episódio, foram vazadas nas redes sociais diálogos eletrônicos em que Lavigne demonstra aborrecimento, dá ordens a Teresa e a trata de modo grosseiro.
Os dois casos evocam um episódio de vários anos atrás, de um vídeo postado pela própria Lavigne no Instagram, em que, ao lado dos filhos na cozinha de sua casa, a empresária se divertia intimidando uma funcionária negra uniformizada contra os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Todos esses episódios formam um quadro que expõe a empresária e esposa de Caetano Veloso como uma caricatura de uma autêntica vilã de novela, filme ou desenho animado. O próprio artista por vezes fomenta essa imagem, por exemplo na canção “Não Enche” (1997), em que um eu-lírico aparentemente bem-humorado desfia para uma musa (ou melhor, anti-musa) feminina os adjetivos “quadrada”, “demente” “harpia”, “aranha”, “perua”, “piranha”, “sanguessuga”, “pirata”, “malandra”, “vagaba”, “vampira”, “tarada”, “mesquinha”, “à toa”, “vadia”. “Quem lhe deu tanto axé?”, indaga o narrador, depois de vários “não enche”, “me larga”, “nada mais de nós” e “vou me livrar de você”.
É esta a fórmula habitual: um artista doce, generoso e amado por (quase) todos tem por trás de si uma figura feroz, que afasta os fãs de seu ídolo e gerencia a carreira do artista iluminado como um cão de guarda disposto a atacar qualquer um que tente cruzar limites aceitáveis. Não são incomuns notícias sobre artistas que se afirmam enganados e roubados por ex-empresários sem expor qualquer tipo de vínculo afetivo entre ambos. Mas o relacionamento íntimo é um complicador a mais, vivido no caso de Caetano desde que Lavigne tinha 13 anos, e comum no meio artístico, se pensarmos, por exemplo, em Gilberto Gil e Flora Gil, Rita Lee e Roberto de Carvalho ou Gal Costa e Wilma Petrillo.
Esse último caso, também rumoroso, eclodiu apenas depois da morte de Gal, cuja sexualidade e relacionamento amoroso com Wilma, ocultados publicamente pela cantora em vida, só então foram tirados do armário pela mídia sedenta de sangue. À revelia do comportamento discreto de Gal na maturidade, sua morte excitou um entorno não-identificado empenhado em vilanizar e afastar a suposta viúva da história e do legado da artista, mas também do então adolescente que, em debates públicos deprimentes, foi disputado como filho ora de ambas, ora de Gal sozinha.
O modo como esses assuntos espinhosos são conduzidos quase sempre encena para o público uma imagem binária e dicotômica que contrapõe a bela e a fera, o médico e o monstro, dr. Frankenstein e sua criatura. Em casos desse tipo, agregados, jornalistas e fãs comportam-se como se a batalha épica em curso fosse entre o mal e o bem, sendo o bem óbvia e necessariamente o artista beatificado pelo público e pelo próprio show business.
No entanto, é preciso lembrar não apenas os laços sólidos entre o “bem” e o “mal”, sejam profissionais ou particulares. Tampouco deveríamos esquecer que, nas fábulas prodigiosas, por vezes o médico e o monstro costumam compor uma única e maciça estrutura. Mais que isso, por vezes o músico e o monstro são facetas distintas de um mesmo personagem.