Capital, digitalização e automação
Não é possível compreendermos o atual impulso da automação do trabalho sem considerarmos a emergência da informação como paradigma tecnológico
Com o processo de digitalização vigente desde o século passado, novos horizontes possíveis se mostram para a dinâmica do capital, especificamente no que diz respeito à dimensão da automação. Poderíamos considerar essa dimensão fundamentada por um novo momento técnico na história, após efeitos fundamentais da ciência moderna – que perpassam desde o processo colonial até o que chamamos de neoliberalismo – e que, por sua vez, abriram condições para formas específicas da produção (tecnológica) digital contemporânea.
Após o processo de mecanização, que prolifera-se na produção especialmente durante os séculos 18 e 19 (gestando-se desde antes), temos a consolidação do capital, com a colonização financiando toda industrialização do tecido social, com a Europa como centro da exploração econômica. A primeira e segunda revoluções industriais são processos com proximidades e distâncias à parte, que organizam em grande medida o sentido do desenvolvimento tecnológico (e também científico), com as duas grandes guerras condicionando também o processo de digitalização.
(Foto: Wikimedia Commons)
Da mecanização à digitalização, o sentido de automação (da produção, da distribuição, circulação e mesmo do consumo) ganha proporções cada vez mais abrangentes. O “desenvolvimento” tecnológico torna-se também desenvolvimento das escalas de operação do capital, de modo que o próprio dinheiro torna-se digital – não apenas com criptomoedas, mas também com a digitalização das finanças e o novo tempo da informação (de mercado) global. A tecnologia proporciona cada vez mais uma concepção geral de capitalismo 24/7, um processo de valorização do valor quanto mais automatizado possível – e é nesse contexto onde o ideal de produção “livre” de trabalho humano ganha novo destaque.
O termo ‘fábricas escuras’ (dark factories) aparece para designar um novo momento onde internet das coisas, inteligências artificiais e infraestrutura robótica possibilitam um espaço de produção sem a presença – ao menos constante – de pessoas. Buscando o mínimo possível de intervenção humana, a concepção de produção que se origina desde o princípio do capital precisa explorar o antagonismo entre trabalho vivo e trabalho morto, assim como a dinâmica entre mais valor absoluto e relativo, e até mesmo o “intelecto geral” – é parte do que aprendeu-se a articular, desde Marx.
O novo estágio da produção anunciado em fábricas escuras – ou “fábricas apagadas” [lights-out factory], já que podem operar literalmente no escuro, sem luz, devido à ausência de humanos (tornando iluminação algo desnecessário) – não é estranho aos princípios do capital. O que há de particularmente novo ocorre na dinâmica de subversão do trabalho humano “presente” – o trabalho é não só ausente, mas também “pulverizado”, difuso –, além da automação do trabalho e também em sua abstração. Não é possível compreendermos como isso aconteceu sem considerarmos a emergência da informação como paradigma tecnológico – e não exatamente como paradigma social, como fazem sociólogos na esteira de Daniel Bell, com a noção de sociedade da informação em The Coming of Post-Industrial Society (1973), noção que seria fortemente retomada nas décadas seguintes, especialmente nos anos noventa.
Uma das primeiras empresas voltadas à Tecnologia da Informação (após IBM e Siemens, por exemplo) foi a Fujitsu, fundada em 1935 – empresa da qual surgiria, vinte anos depois, a FANUC: um grupo de desenvolvedores voltados para produtos e serviços de automação robótica e sistemas de controle numérico computadorizados (CNCs) sem fio, integrando os princípios da automação industrial, que hoje encontra-se entre as maiores produtoras de robôs industriais do mundo – o que se deve também à empreitada em conjunto da General Motors (GM) nos EUA, em 1982. Desde então, seus serviços integram linhas de montagem tanto de automóveis quanto de eletrônicos, diferentes escalas tecnológicas que por si só já indicam a abrangência do mercado de automação. Hoje é a maior fornecedora de equipamentos para CNC, tendo mais de 240 parcerias estratégicas e escritórios em 46 países.
A FANUC foi uma das precursoras desse modelo de montagem e desenvolvimento tecnológico que hoje parece revelar-se como o futuro da indústria, apesar de algumas ressalvas serem apontadas pelos seus próprios desenvolvedores: ao mesmo tempo em que o discurso apologético da automação desenfreada sugere que ela livre os trabalhadores de tarefas “chatas, perigosas ou sujas”, é impossível não reconhecer os efeitos em larga escala na cadeia empregatícia, na medida em que busca a redução infinitesimal do trabalho humano necessário à produção.
Na opinião de Esben H. Østergaard, fundador da Universal Robots, já que “os robôs custam o mesmo em todo o mundo, eles podem ajudar as empresas a realocar empregos industriais que foram transferidos para países com mão-de-obra de baixo custo e nivelar as condições de concorrência em geral”. Entretanto, aponta que é necessário progredirmos para um novo momento industrial, o que chama de indústria 5.0. Østergaard sugere que, se atravessamos da produção em massa para a customização em massa até o momento industrial atual – com a automação desenvolvendo, em linhas de montagens massivas, produtos personalizados, no limite em configurações únicas para os consumidores, como ocorre na indústria automobilística –, agora seria a hora de reintroduzir o “fator humano” na operação.
Østergaard diz que, paradoxalmente, a indústria 5.0 não deveria ser mais automatizada, porém “em certo sentido, o fim da automação”, pregando o valor do “toque humano” e da produção pré-industrial, artesanal. Mas por que o fundador de uma empresa voltada para robótica e automação prega o fim da automação? Sua proposta é substituir a linha de produção automatizada atual por uma “socialização”, com muitas aspas, de robôs colaborativos que seriam utilizados pelos operadores (artesãos) como ferramentas para ampliarem a escala, velocidade e precisão de sua produção – um óbvio paradoxo argumentativo. Para ele, os robôs colaborativos são “o que falta para fazer produtos industriais com um toque humano.”
O final de seu texto é ainda mais intrigante: “Não é do nosso feitio na Universal Robots sermos muito filosóficos. Mas posso sugerir que, aquilo a que me refiro como Indústria 5.0 neste artigo aborda – pelo menos de alguma forma – o que Marx chamou de alienação, a ideia de que, através da produção industrial moderna, os trabalhadores perdem o controle sobre as suas vidas ao perderem o controle sobre o seu trabalho.”
Nunca deixa de ser irônico, ainda que cada vez menos raro, ver um capitalista citando Marx – especialmente essa interpretação rasteira da alienação como separação entre indivíduos e o todo do processo produtivo social. Vale ressaltar que essa é uma interpretação comum e recorrente, mesmo entre marxistas, e sua dimensão no mínimo ingênua deveria tornar-se mais explícita quando vemos figuras como Østergaard utilizando-se dela.
Talvez devêssemos considerar que o discurso sobre desalienação, “re-humanização”, etc, tem cada vez mais um apelo de mercado e não se remete em nada à dimensão crítica e política radical proposta por Marx. Deveríamos nos perguntar se realmente queremos ser (re)integrados inteiramente a todos os processos produtivos – o quão possível e infernal isso seria? – ou se deveríamos reivindicar a própria categoria de alienação, a emancipação também como organização coletiva das alienações sociais.
(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos livres junto a outros professores.
