Capitulação ideológica e o nosso suicídio político
Síria, Haiti e Venezuela nos deixam a mesma lição: o pensamento crítico não pode ser substituído pelo aplauso acrítico, ou vaia, a esta ou aquela figura política
Nesta semana, começamos a presenciar na Síria o espetáculo grotesco (mais do que anunciado) do extermínio em massa de minorias étnicas, religiosas e políticas pelo novo “governo” do país árabe. A cobertura da grande imprensa ocidental tem sido estarrecedora, assim como a postura da União Europeia, mesmo quando são justamente as comunidades cristãs algumas das maiores vítimas dos jihadistas convertidos em estadistas após derrubarem o “regime de Assad” (com imenso apoio externo, vale dizer). No entanto, poderíamos esperar outra coisa de figuras como Al-Jolani, mesmo sob novos pseudônimos e vestindo bons ternos? Alguém que foi líder – não apenas um terrorista comum – da Al-Qaeda e também do Estado Islâmico (aquele mesmo dos vídeos de decapitações no deserto com crianças-soldado); pois bem, alguém poderia imaginar algo diferente caso tomassem o poder? Aparentemente, sim, houve quem pôde. Mas qual o custo de tamanha capitulação ideológica frente ao que dizem os propagandistas ocidentais?
A resposta, neste caso, é: genocídio. Entre 2016 e 2017, alguns de nós alertávamos que aquilo era uma “guerra contra a Síria” e não uma mera guerra civil na Síria, menos ainda uma insurreição popular de esquerda contra uma ditadura qualquer durante a “Primavera Árabe”. Hoje, confirmou-se o nosso prognóstico, com Turquia e Israel retalhando o território entre si ou entre seus aliados, enquanto o novo regime em Damasco promove atrocidades que farão da Síria um “Estado-falido” permanentemente. Qual será o destino das mulheres, num Estado que era laico até a derrubada do regime anterior? Já foram expulsas do Judiciário; em algumas regiões começam a ser obrigadas a usar o véu sobre a cabeça… Qual será o destino das organizações de esquerda, sindicatos e partidos, agora que o novo parlamento foi escolhido em sua totalidade pelo ditador (ou melhor, pelo presidente-terrorista) que lhe incumbirá de aprovar por unanimidade a Constituição escrita por ele mesmo? Ao menos durante o regime do Partido Ba’ath outros partidos podiam ter alguma vida política e participar de eleições, incluindo o Partido Comunista. E agora?

(Foto: Romerito Pontes)
Muitos na esquerda brasileira embarcaram na narrativa ocidental que romantizava “capacetes brancos” forjando encenações de ataques químicos ao passo que condenava-se os ataques aéreos russos contra os terroristas da Al-Qaeda e Estado Islâmico justo quando estavam prestes a expulsarem os terroristas do país, em 2017 (ao custo de muitas vidas, é certo). Mas qual o custo de tê-los deixado lá? A cidade de Idlib ficou governada pelos jihadistas por todo este tempo, durante o qual o atual ministro da Justiça do novo regime ordenava apedrejar mulheres na rua por prostituição… Será esta a liberdade que agora chegou a toda Síria? Ninguém se pronuncia. No entanto, era mesmo tão difícil prever o que aconteceria quando um herdeiro político de Bin Laden assumisse o controle do país? Al-Jolani tinha um mandado de prisão emitido, com uma recompensa de 10 milhões de dólares pelo governo norte-americano, mas hoje recebe o secretário-geral da ONU e chefes da diplomacia europeia como se fosse um antigo defensor dos direitos humanos… Soa como uma licença para matar.
Donald Trump, naquela altura, fez de tudo para evitar o ataque final aos jihadistas numa das maiores metrópoles sírias, alegadamente por razões humanitárias, embora os EUA tenham reduzido a pó a cidade de Raqqa, então “capital” do autoproclamado Estado Islâmico, deixando para trás um número incontável de vítimas civis. Hoje, tais decisões mostram-se cruciais para o destino daquela nação, que pode até redundar no seu fim. Na mesma época, parte da esquerda também se alinhou tacitamente a outro projeto de Trump, desta vez na Venezuela, onde outro autoproclamado, neste caso Juan Guaidó, buscava liderar o golpe contra o “regime de Maduro”. Ao contrário da Síria, o regime venezuelano segue de pé, ainda que debilitado. Mas seria o caso de perguntar, contra-factualmente: como estaria o país hoje caso o plano tivesse dado certo?
É fácil supor que a vida estaria consideravelmente pior, com os programas sociais do governo encerrados e uma classe dirigente capitaneada por figuras de extrema-direita como Guaidó e Leopoldo López, cujos laços com esquadrões da morte (eufemisticamente chamados de “paramilitares”) e cartéis colombianos ficaram comprovados, até em fotos, posteriormente. Neste caso, ao menos, quem embarcou na histeria anti-Maduro emanada de Washington ainda tem tempo de se redimir. Infelizmente, na Síria, ou na Ucrânia, outro cenário de guerra imperialista ocidental que confundiu muitos corações e mentes entre nós, não há mais tempo para isso, pois a destruição já é incontornável e as milhares (milhões?) de vidas perdidas não voltam mais.
Outro caso que gerou muita confusão ideológica entre nós foi a invasão brasileira do Haiti, com mais de 30 mil soldados durante 13 anos, cujo objetivo era estabilizar uma troca de regime forçada após o golpe contra um presidente (mais ou menos de esquerda) democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide, desafeto dos estrategistas estadunidenses para o Caribe. Contudo, como foi uma ação levada a cabo pelos governos Lula e Dilma entre 2004 e 2016 (coube a Temer encerrá-la em 2017), parte da militância preferiu acreditar que nossos militares, liderados pelo general Heleno, tivessem se convertido em salvadores da humanidade, mesmo quando era evidente que a “missão” no Haiti se tratava de uma terceirização das políticas externas dos Estados Unidos, atolados no Iraque e no Afeganistão, e da França, antiga potência colonial no Haiti, para as forças armadas latino-americanas lideradas pelo Brasil. O discurso oficial era o mesmo das outras intervenções imperialistas ocidentais: levar democracia, estado de direito e livre-mercado para estimular o desenvolvimento econômico e a promoção dos direitos humanos. Mas como está o Haiti hoje? Alguém se importa?
Quem fez carreira promovendo o “jeito brasileiro de pacificação”, que incluía romantizar aquilo que acontecia nas favelas ocupadas por UPPs em solo doméstico, já compreendeu a sua parcela de responsabilidade pelo desastre causado ao país caribenho? E pelo que aconteceu na política brasileira logo que a missão da ONU acabou, com a transferência da ocupação militar para nosso próprio sistema político nacional? É possível gritar “Sem Anistia!” hoje em dia para os mesmos generais golpistas que achamos uma boa ideia exportar para o Haiti para referendar um golpe de Estado por lá? Por sinal, muitos dos que hoje se acham radicais ao bradar “Sem Anistia!” (ignorando as consequências políticas que uma prisão de Bolsonaro pode gerar) são os mesmos que se achavam revolucionários ao gritar “Fora Todos!” em 2016… Deu no que deu. Mas já aprendemos a parar para pensar antes de esbravejar nas redes sociais?
Por falar em Bolsonaro, conseguimos a proeza de entregar de bandeja para ele a crítica das grandes corporações capitalistas farmacêuticas durante a pandemia e das organizações multilaterais capturadas por essas mesmas corporações, como acontece em quase todo o sistema ONU. Ele sequestrou-nos facilmente uma crítica ao capital transnacional e até mesmo a dianteira na denúncia da atuação política da grande imprensa, enquanto nós nos tornamos peões úteis da Rede Globo nesta disputa entre nossos inimigos. Nosso destino histórico será mesmo o de aliados de última hora da família Marinho? Eles, ou algum dos ministros do Supremo, irão nos proteger quando a situação se agravar?
Seja no Brasil, na América Latina ou na política internacional mais ampla, a lição que fica é a mesma: o pensamento crítico não pode ser substituído pelo aplauso acrítico, ou vaia, a esta ou aquela personalidade política, ainda mais na era dos “influenciadores” digitais. Para quem luta por um novo mundo, não se trata exatamente de uma escolha, mas de uma obrigação. Pois como os exemplos elencados nos mostram (e existem muitos outros, sabemos), o preço político em cada caso termina por ser o enfraquecimento dos projetos populares, das organizações anticapitalistas e a crescente irrelevância da esquerda como um todo em diversas partes do mundo político ocidental, a cada dia mais polarizado entre a direita liberal (com a qual nos aliamos, subordinadamente), por um lado, e a extrema-direita, por outro. Não importa se é por preguiça de pensar, pela tentação oportunista de agradar aos holofotes ou por uma capitulação ideológica mais profunda frente ao liberalismo diante do desafio colocado pelas novas direitas, mas uma coisa é certa: sem uma mudança de postura urgente e uma redefinição de rota, corremos o risco de produzir o nosso próprio suicídio político mais cedo do que tarde, o que será uma tragédia não apenas para nós, mas para toda a humanidade.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.
