Desde o final de abril, o Estado do Rio Grande do Sul não sai dos noticiários e, principalmente, não sai de nossas mentes. Qualquer pessoa com algum grau de empatia e solidariedade já verteu lágrimas nos últimos dois meses ao ver imagens da população gaúcha, no meio rural ou nas cidades da região metropolitana de Porto Alegre, tentando sobreviver em meio à destruição completa de suas existências. Não há também quem não tenha se comovido com as cenas dos abrigos de animais; do cavalo resgatado de cima de um telhado; dos fiéis da igreja totalmente destruída, colocando de pé a imagem da santa; ou do pequeno agricultor, que chora ao contar que viu suas dezenas de porcos serem arrastados pela enxurrada. É muita vida, muitos modos de vida e de trabalho que, literalmente, foram levados água abaixo. As semanas foram se passando e, junto à angústia de acompanhar a água que não baixava e à tristeza causada pelos números de mortos subindo a cada dia, também fomos sendo familiarizados com informações e debates muitas vezes restritos aos especialistas e aos que sofrem recorrentemente com os desastres climáticos.
Ficamos sabendo que o atual governador do RS aprovou no começo de seu primeiro mandato um código ambiental, alterando 480 normas de uma legislação ambiental estadual até então considerada exemplar, com o objetivo de “facilitar o ambiente de negócios”. Descobrimos que o sistema de contenção das cheias do Guaíba, construído nos anos 1970 e eficiente em seu propósito por mais de 40 anos, vinha sendo sucateado, juntamente com as equipes técnicas que o operam, para fazer valer a ordem máxima mundial de “redução de gastos governamentais”, uma vez que Estado é algo ruim e os agentes do livre mercado é que são eficientes. Jornais citaram uma barragem que colapsou parcialmente e noticiaram que havia outras em risco de rompimento, possivelmente potencializando a catástrofe, o que rapidamente saiu das manchetes, pois não se discute segurança de barragens em um país orgulhoso de sua “matriz energética renovável”.
Nesta enxurrada de informações atordoantes, passamos a juntar pontos de compreensão sobre a catástrofe. De um lado, os negócios do mercado livre e desimpedido de salvaguardas ambientais poderiam ser a causa de um regime de chuvas e cheias mais severas na região. De outro lado, o estado enfraquecido pelo vade mecum neoliberal não tinha condições de trabalhar nem na prevenção, nem na situação de emergência. Como em um roteiro surrealista, o governador se antecipou, já nos primeiros dias da tragédia, em afirmar que não era hora para apontar culpados e, ao mesmo tempo, divulgou um pix da Associação dos Bancos do Rio Grande do Sul para receber doações.
Em paralelo, na escala nacional, outros teatros do absurdo foram sendo ensaiados. O governo federal, pressionado por avalanches de fake news bolsonaristas que colocavam a culpa em Lula, reforçou o coro de Eduardo Leite sobre os “responsáveis pela tragédia” e anunciou a suspensão da dívida do governo gaúcho. É certo que, junto às fotografias com prefeitos ultraconservadores, o governo federal fez muito no imediato do desastre, sem o qual a situação seria ainda mais calamitosa: envio de apoio de todos os tipos para o resgate e atendimento emergencial da população (recursos de saúde, alimentação, defesa civil, Forças Armadas e policiais), aprovação da liberação dos limites de gastos federais para atendimento do desastre, nomeação de um ministro especial para acompanhamento e coordenação das ações federais. Na continuidade, entretanto, precisa-se estar atento.
Ainda que tenha sido anunciado um diminuto auxílio emergencial para compra de móveis e eletrodomésticos para os atingidos, boa parte dos recursos que estão sendo destinados para reconstrução aparece em forma de linhas de crédito. A sociedade gaúcha – especialmente as famílias mais pobres, os pequenos e médios produtores e comerciantes – pode vir a passar por um processo de endividamento sem precedentes, que só beneficiará o sistema financeiro. As propostas para a realocação das famílias que perderam suas casas ou que não poderão voltar para suas residências ainda são vagas, e as informações desencontradas. Já houve anúncio de Minha Casa Minha Vida para famílias de baixa renda, compra de casas e apartamentos através da Caixa, mas o plano não é claro e, ao que parece, não faz menção a processos de consulta à população atingida para definição de seu destino. O que é dos bancos e das grandes empresas parece garantido. O que é do povo, não.
Após quase dois meses do desastre, os números demonstram o sofrimento da população: 175 pessoas mortas pelas enchentes; sete mortes confirmadas por leptospirose (outros óbitos seguem sendo investigados); mais de 500 mil desalojados e cerca de 40 mil que perderam suas casas e permanecem em abrigos. A solidariedade social é grande, mas já começa a diminuir. Como em outras situações de desastre, sabe-se que a filantropia empresarial e de classe média vai embora junto com as câmeras de televisão, e quem continua atuando são os movimentos e organizações populares, que sempre organizaram o povo do território atingido. O governo estadual não dialogará com estes movimentos. Espera-se que o governo federal possa fazê-lo e lhes dar protagonismo na elaboração e execução do plano de reconstrução.
Desde fevereiro escrevo esta coluna sobre meio ambiente, abordando o tema a partir de desastres ocorridos recentemente. Em maio, não consegui entregar o artigo, pois o desastre do Rio Grande do Sul me consumiu, seja pelo trabalho de pesquisa para ajudar na compreensão do que acontecia, seja pela carga emocional que este mesmo trabalho produziu. Quando comecei este espaço em Opera Mundi, não escolhi aleatoriamente a problemática dos desastres para abordar o tema do meio ambiente. Tudo o que estudei nos últimos anos me faz ter clareza de que o capitalismo contemporâneo produz uma sociedade de desastres ambientais e precisamos enfrentar esta condição do ponto de vista analítico e político.
Eu não fazia ideia, contudo, de que em tão pouco tempo estaria assistindo à “tempestade perfeita” que o desastre no RS evidencia: uma combinação perversa e total de fatores políticos, econômicos, sociais e ambientais, em todas as escalas, operando para o aprofundamento das desigualdades históricas em curto, médio e longo prazo. Esta “tempestade perfeita” só pode ser enfrentada com coragem e disposição para os embates políticos. E este enfrentamento é importante para as vítimas desta tragédia, mas também para todas as populações atingidas por futuros desastres.
Que a dimensão deste desastre possa abrir um amplo e democrático processo de debate e tomada de decisões na sociedade brasileira. É preciso construir medidas eficazes para evitar novos desastres, com planejamento de cidades e infraestruturas, dando centralidade decisória às populações que mais sofrem com os desastres produzidos pela dinâmica de expansão capitalista.
A interrupção completa dos desastres, entretanto, não parece provável em curto prazo, uma vez que os eventos climáticos extremos não são evitáveis apenas por ações nas escalas local e nacional. Então, que possamos ao menos ter uma política que coloque os atingidos e as organizações populares no centro das ações de prevenção e reparação, fazendo com que os governos ajam para recuperar as vidas e modos de vida dos que não o conseguirão fazer sem este apoio. Que não ocorra mais a instrumentalização do Estado, em seus diferentes níveis, para o fortalecimento dos atores do capital que produzem os desastres e, ao mesmo tempo, se beneficiam das medidas de recuperação. Esta não é uma utopia, é um plano de ação para os que têm compromisso real com a mudança social e que não se contentam em saber “para quem doar”.
(*) Flávia Braga Vieira é doutora em Planejamento Urbano e Regional, professora da UFRRJ e coordenadora do Programa de Extensão Universitária Assessoria Técnica e Educacional Meio Ambiente e Barragens. É também autora de “Dos proletários unidos à globalização da esperança: um estudo sobre internacionalismos e a Via Campesina” (São Paulo: Alameda, 2011.)