Dia 22 de agosto, 14h40. Copiapó, deserto do Atacama, norte do Chile. Algumas palavras rabiscadas em tinta vermelha sobem um tubo, fixado sobre a mina de São José, em uma das regiões mais secas do mundo: “Estamos bem no abrigo, todos os trinta e três.”
Trinta e dois chilenos e um boliviano ficam presos cerca de setecentos metros abaixo a superfície, enterrados vivos nas entranhas de uma mina de cobre e ouro. Após o desabamento de vários muros de sustentação, sob milhares toneladas de pedra e lama, eles sobrevivem da melhor maneira possível, em um dos refúgios ainda acessíveis. Bebem a água que escorre, racionam sua escassa ração de comida e sofrem de um calor infernal. Mas suas palavras demonstram: estão com boa saúde.
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A descoberta foi saudada com euforia pela população: todo um povo em comunhão com “seus” mineiros, num elo de solidadriedade que percorre os Andes e mergulha rumo às províncias do sul do país. “Sim, os heróis existem!”, é a manchete do jornal de grande circulação Las Ultimas Noticias, em edição especial de 23 de agosto. O acampamento de São José, onde se instalam as famílias dos mineiros, é batizado “acampamento da esperança”. O resgate dos trabalhadores começará.
Em 13 de outubro, quando os primeiros mineiros reencontram a liberdade, nada menos que setecentos jornalistas do mundo inteiro os esperam, entre as bandeiras chilenas. Ao se prepararem para o “grande dia”, os mineiros tiveram que seguir até mesmo lições de “midia-training” no fundo da mina, prevendo a avalanche de entrevistas e flashes televisivos (sem contar as propostas para adaptar a história ao cinema, em diversas línguas).
Durante dois meses, o ministro das Minas – e ex-dirigente da filial chilena da ExxonMobil –, Laurence Goldborne, brincou de animador das vedetes. Sem nunca abandonar seu casaco com as cores do pais e as festividades relacionadas com o bicentenário da independência (1810-2010), ele abraçou os familiares das vitimas e comentou o progresso na operação de resgate. Mas no dia “D”, o próprio presidente colocou-se sob o foco dos holofotes.
Meia noite: o primeiro mineiro sai do poço de evacuação. Ele abraça seu filho, sua mulher e… o presidente. Quatro minutos mais tarde, este último faz uma declaração e agradece a Deus, “sem o quais esse resgate não seria possível”. Acrescenta: “Hoje, nós podemos sentir mais orgulhosos que nunca por sermos chilenos.”
Para o executivo, o drama teve algumas vantagens. Sebastián Piñera, o presidente-empreendedor e multimilionário, eleito em 17 de janeiro de 2010, teve um difícil começo (1). A reação desastrosa do governo, diante do terremoto de fevereiro, provocou enorme descontentamento. A mobilização e greve de fome dos indígenas mapuches, no sul, ampliou as críticas. O martírio dos “33” representou uma grande oportunidade para organizar, durante dois meses, um formidável espetáculo televisivo. Os mineiros foram proclamados “heróis do bicentenário da independência”. Tudo foi feito para transformar o elo de solidariedade em um consenso político: “todos unidos” por trás do presidente Piñera. No entanto, segundo o jornalista Paul Walder, o acidente de São José constitui sobretudo uma alegoria do Chile contemporâneo, um pais onde a classe trabalhadora é “enterrada” no âmbito de um sistema que a oprime (2).
Na região de Antofagasta, 277 das 300 jazidas são explorados sem regras
Os 33 três mineiros superexpostos à mídia permanecem, paradoxalmente, sem voz. Nem eles, nem suas famílias, nem o movimento sindical – historicamente forte nesse setor, mais enfraquecido pela ditadura e suas reformas neoliberais – tiveram a oportunidade de ser ouvidos sobre as causas do acidente. Do lado de fora, os que conseguiram escapar do deslizamento de terra tentam lembrar que seus salários ainda não foram depositados, após diversas semanas: “Pare com seu show Piñera, nos somos trezentos também aqui fora (3).” Eles enfrentam a indiferença generalizada.
O Chile é hoje uma das pontas de lança no capitalismo extrativista latino-americano. A mineração representa 58% das exportações e 15% do Produto Interno Bruto (PIB). O país explora carvão, ouro e sobretudo cobre, de que é o principal produtor no mundo (com 40% do mercado), graças a maior mina ao céu aberto do planeta (Chuquiquamata). As reservas seriam suficientes para 200 anos de exploração.
No momento das grandes nacionalizações de 1971, o presidente socialista, Salvador Allende, afirmava que a exploração do cobre constitui o “salario do Chile”. O governo da Unidade Popular expropriou as grandes empresas norte-americanas e transferiu sua propriedade à Codelco (Corporação Nacional do Cobre).
A partir do golpe de Estado de 1973, com a ditadura, e em seguida a democracia neoliberal, inverteu-se a lógica. Inúmeras concessões foram oferecidas a empresas privadas, nacionais e internacionais. As alíquotas de tributos foram reduzidos a um dos patamares mais baixos do mundo (4) e as condições de segurança, rebaixadas. Em alguns casos, elas simplesmente não existem. Na região de Antofagasta, 277 jazidas, das 300 existentes, estão fora das normas. Nesse contexto, a exploração mineira torna-se uma atividade extremamente lucrativa.
Trinta e um mortos por ano
No discurso da mídia, contudo, tudo está melhorando, porque o desenvolvimento da indústria mineira favoreceu o surgimento de uma verdadeira “aristocracia operária”. Seus salários não chegam a ser três vezes superiores ao salário minimo (624 reais mensais), além de adicional noturno? “O drama dos “33” de São José e a operação em curso para salvar-lhes não devem fazer esquecer o essencial: a grande maioria dos mineiros chilenos trabalha em excelentes condições de segurança (5).” Não se fala que há 31 mortes por ano em média, entre um total de 106 mil trabalhadores.
“São José é um pesadelo. Era perigoso, eu sabia, todo mundo sabia”, declara um dos mineiros sobreviventes. “Não há mais que uma palavra lá: produtividade (6).” A empresa de mineração San Estaban – que explora o subsolo do pais há mais de duzentos anos – pertence a Alejandro Bohn (60% do capital) e Marcelo Kemeny (40%), os filhos dos fundadores da mineradora. Das duas minas que ele possuem, uma teve que fechar, falida. Foi necessário que a São José financiasse, sozinha, o estilo da vida dos proprietários da empresa.
Lá, o aumento do preço do metal sobre o mercado mundial resulta numa intensificação do trabalho, no recurso quase sistemático às horas extra (jornadas de até doze horas por dia) e… uma certa flexibilidade no terreno da segurança. Em 4 de agosto, quando os 33 mineiros correram para a chaminé de emergência, no momento do acidente, descobriram que nenhuma escada tinha sido instalada.
Surpresa? Não. Desde 1999, os acidentes se multiplicam. Em 2004, após a morte de um operário, os sindicatos tinham apresentado uma queixa inicialmente rejeitada pelo tribunal de apelação. Mais tarde (2005), a mina é fechada, para reabrir em 2009, sem adequar-se às normas de segurança. Em julho de 2010, novo acidente: um mineiro esmaga a perna. Apesar de tudo, três semanas mais tarde, o Serviço Nacional de Geologia e de Minas (Sernageomin) autorizou a manutenção da produção. Vários sindicalistas falaram de corrupção. Vinte e seis famílias dos mineiros decidiram levar ao Estado uma reclamação contra os proprietários.
Nestor Jorquera, presidente da confederação mineira do Chile (sindicado que reagrupa dezoito mil salariados), lamenta que o país não seja signatário convenção 176 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre a segurança e a saúde dos mineiros. Denunciam sobretudo uma legislação de trabalho regressiva, herdada da ditadura. O direito de greve, por exemplo, é limitado.
Apesar de alguns programas de prevenção de riscos, a Superintendência da Segurança Social (no ministério do Trabalho) reconheceu que 443 pessoas morreram após acidentes laborais em 2009 (282 só no primeiro semestre de 2010), enquanto que 191.685 acidentes não-mortais foram registrados no ano passado (por uma população ativa de 7,6 milhões de indivíduos).
Em 28 de outubro, o presidente Piñera anunciou a criação de uma “superintendência das mineradonas” (os sindicados não serão representados), demitindo o diretor do Sernageomin e prometendo o aumento do controle e do numero de inspetores. É necessário lembrar que hoje há apenas… dezesseis, para controlar mais de quatro mil minas espalhadas em todo o pais (7).
Franck Gaudichaud é mestre de conferencias em civilização hispano-americana na universidade Grenoble 3. Organizou: Le Volcan latino-américain. Gauches, mouvements sociaux et néolibéralisme en Amérique latine, Textuel, Paris, 2008.
(1) Ver Franck Gaudichaud, “Terremoto politico e o retorno dos Chicago Boys”, Pesquisador internacional, julho 2010 (acessível no site francês Centre tricontinental).
(2) Paul Walder, “A sepultada classe operaria”, Punto final, nº 717, Santiago, setembro 2010.
(3) José Luis Cordova, Diarioeddigital.cl, 8 outubro de 2010.
(4) Em junho de 2010, o ministro dos mineiros reconheceu que a fiscalização no chile foi a terceira mais fraca do mundo (Radio Cooperativa, 1 de junho de 2010)
(5) “No Chile, os mineiros foram uma aristocracia operaria“, Le Monde, 21 de setembro, 2010.
(6) Cf. Jean-Paul Mari, “A maldição de São José”, Le Nouvel Observateur, nº 2395, 30 de setembro, 2010.
(7) Andrés Figueroa Cornejo, “Trinta e três mineiros, uma atras do outro”, Agencia latino americana de informação, 10 de setembro, 2010.
*Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique. Tradução de Cauê Seigne Ameni para o blog Outras Palavras.
Franck Gaudichaud é doutor em Ciência Política e mestre em Civilização Hispanoamericana na Universidade Grenoble 3 (ILCEA), membro do Comitê de Redação da revista Dissidences e da Associação França-América Latina.
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