O processo de digitalização do tecido social que vivenciamos atualmente possui uma característica peculiar: ao mesmo tempo que mobiliza uma organização tecnológica complexa – desde sua infraestrutura até o re-arranjo da experiência informacional/comunicacional humana –, também produz uma tendência à redução das complexidades em diversas dimensões da nossa experiência. Somos tentados a apontar uma relação fundamental entre processamento da complexidade e o que se verte em redução da mesma, através de uma razão quantitativa – e é essa razão que fundamenta os efeitos experimentados por nós, submetidos à marcha digital.
O que isso quer dizer? Basicamente, que a digitalização produz um cálculo sobre nós mesmos cada vez mais relevante para a constituição das relações sociais e de nossas próprias identidades. Esse cálculo pode ser pensado por dois princípios fundamentais: a obtenção de lucro (e por fim, a valorização do valor) e a redução da complexidade relacionada ao usuário. É preciso ter isso em mente: somos todos “usuários” de plataformas na medida em que a produção de dados torna-se capital. Enquanto usuários, somos também uma incógnita a ser decifrada, uma incerteza a ser reduzida: sempre que usamos as chamadas “redes sociais”, assumimos a posição de uma fonte informacional – cumprimos uma função e exercemos um trabalho.
Os assim chamados “algoritmos” passam a padronizar (de forma um tanto metafísica, diga-se de passagem) a informação que oferecemos para determinada plataforma, e essa padronização é “refletida”: tanto para a plataforma, quanto para nós, os usuários – é daí que deriva-se a possibilidade de afirmarmos uma relação entre “eu” e “meu algoritmo” i.e., algum padrão foi produzido na interação usuário/máquina mediada por uma interface, e esse padrão integra um processo de identificação. Eu posso me reconhecer – ou não – no meu algoritmo. Temos aqui um espelho estranho: a imagem se distorce na medida em que produz-se pela metrificação de nossa interação. Mas quais são as condições dessa métrica?
Ela é pautada em pressupostos ainda mais estranhos: quando usamos redes sociais estamos interagindo com máquinas voltadas à produção da previsibilidade de nós mesmos. Isto é, o espaço digital é organizado pela automação do cálculo que aumenta a probabilidade de interação do usuário com a própria interface digital — esse espaço é projetado, cada vez mais, para manter-nos ali, fornecendo dados. Além disso, ele é organizado para a metrificação estatística voltada ao mercado: as plataformas “sociais” calculam a probabilidade de realização do valor, apesar deste princípio não estar implícito no desenvolvimento da digitalização, ele retroage pela relação basilar entre incerteza e complexidade que encontramos em sua origem.
A busca pela redução da complexidade é notável desde o surgimento da teoria da informação com Claude Shannon – matemático e engenheiro elétrico, além de figura fundamental na empreitada cibernética, onde tentava estabelecer uma base para a troca de dados entre máquinas. Foi ele quem “importou” um conceito da física – a entropia –, adaptando-o para mensurar a informação: esse conceito tornou-se referencial para estabelecer o valor informacional. Se jogarmos no Google, encontramos a seguinte definição de entropia: ela é uma grandeza termodinâmica “que mede o grau de liberdade molecular de um sistema, e está associado ao seu número de configurações (ou microestados), ou seja, de quantas maneiras as partículas (átomos, íons ou moléculas) podem se distribuir em níveis energéticos quantizados.” O que isso quer dizer?
Em um sentido físico, podemos ilustrar da seguinte forma: a diferença entre gelo, água e vapor, por exemplo, se traduz em termos entrópicos – a água, em seu estado líquido, representa um meio termo entre o estado sólido, onde encontra-se menos “liberdade molecular”, e o vapor, onde encontramos mais dessa “liberdade”. Essa noção de “liberdade” está ligada à ideia de caoticidade, imprevisibilidade, indeterminação ou incerteza. Ou seja, quanto mais caótico o estado da matéria (a água acima de 100ºC), maior sua entropia (em relação ao gelo, p. ex.). A “metáfora” científica de Shannon é uma tentativa de adaptar esse princípio para medir a informação enquanto aquilo que reduz a incerteza de um sistema. Se gelo e vapor servem como exemplo físico, qual é o uso informacional da entropia?
Tentando produzir uma formalização para a troca de informações entre máquinas, Shannon encontrou sua base na dicotomia binária: a digitalização, por óbvio, é fundada no dígito — seja ele 0 ou 1. Essa dicotomia não se reduz, entretanto, ao código binário – ele é, na verdade, preconizado pelo cálculo do valor da informação. Dado o problema da troca de dados entre máquinas, torna-se imperativa a necessidade de prever (ou antecipar) a informação que será recebida. Ou seja, pela perspectiva do receptor, a incerteza ganha grande relevância – e o trato dessa incerteza é organizado por um princípio dicotômico: se a fonte de informação a ser processada é um cachorro, p. e., a possibilidade dele miar tende a zero, i. e., a informação que reduz a incerteza dessa possibilidade dicotômica (o cão vai miar ou não?) tem baixo valor: informar que cão não mia é chover no molhado, esse dado não reduz complexidade alguma.[1] Assim, percebe-se que o valor de uma informação está relacionado também à sua redundância: uma coisa é perguntar se o cão vai miar, outra coisa é perguntar quando ele vai latir – essa segunda pergunta sim é muito mais complexa.
Calcular a predileção de “usuários” em “redes sociais” tem algo dessa complexidade. Ou algo dessa abrangência, dado que a interferência de uma curadoria automatizada dos conteúdos digitais parte tanto do princípio de previsibilidade do usuário, ou seja, da redução de sua complexidade; quanto da formalização de uma captura e quantificação dos seus dados, i. e., de uma complexa duplicação digital de determinada experiência. Essa duplicação, e a própria experiência do digital, é condicionada pelos princípios já mencionados. A pergunta que fazemos aqui então é a seguinte: quais são os efeitos culturais da redução de complexidades pela automação? Quais são as consequências de uma mediação algorítmica – das informações e das identificações –, ao passo em que essas mediações são estruturadas por uma quantificação dos usuários, uma “auto-organização” das informações fornecidas por nós? Seria possível o princípio de redução da incerteza – ou seja, redução da complexidade – que organizou a teoria da informação desde a cibernética, virar-se contra nós e produzir, como efeito, a redução de nossa própria complexidade?
É possível que o condicionamento da subjetivação mediada pelo digital nos torne também menos complexos – poderíamos dizer, até mais burros?! Essa é uma pergunta que todos deveríamos fazer, na medida em que a digitalização nos impõe o reflexo de uma versão reduzida de nós mesmos. Esse reflexo é condição do nosso tempo, e não existe superação ao condicionamento que ele produz sem atravessarmos sua realidade. Especialmente com a proliferação de mediações sociais por plataformas digitais, onde a curadoria de conteúdos é automatizada por inteligências artificiais que produzem efeitos algorítmicos homofílicos.[2] Essa homofilia, que nos conecta sempre com iguais – sejam conteúdos, assuntos, pessoas, perfis, etc. –, deixa nossa própria cognição ensimesmada.
Soma-se a isso também uma temporalidade que combina os princípios do just in time, onde tudo é concebido em tempo real, na mesma medida em que a contração do tempo desemboca tanto na aceleração constante como no encurtamento dos intervalos. Dados circulam cada vez mais rápido, conteúdos são cada vez mais compactos, a atenção é progressivamente tratada como bem escasso e pulverizada. Com isso, a capacidade de lidar com problemas complexos, informações densas, dedicar-se por horas a um filme, livro ou mesmo textos um pouco mais densos tornam-se um desafio extremo. A informação de alto valor que reduz a complexidade, ironicamente, também reduz a nossa própria capacidade de lidar com coisas complexas, reduzindo também a nossa própria complexidade. Qual será o futuro sob tal imperativo digital e seu modo próprio de digitalização, ainda não sabemos – mas o que o presente indica não é nada animador.
(*) Cian Barbosa é flamenguista e morador do Rio de Janeiro. Bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação.