No mês de julho deste ano tive a oportunidade de representar o CEBRAPAZ (Centro Brasileiro de Solidariedade Internacional e Luta pela Paz) e o Grupo de Trabalho de Cultura, Esportes e Turismo da etapa brasileira do Civil BRICS na reunião civil dos BRICS ocorrida em Moscou. Dando início a um relato dessa experiência, compartilho hoje minha intervenção no Grupo de Trabalho em Moscou. No convite para participação, o lado russo solicitou-me uma pequena conferência, de pouco mais de dez minutos, que pudesse abordar dois questionamentos: “”Quais são as possibilidades de se criar um mecanismo unificado para salvaguarda do patrimônio cultural para dar suporte a projetos de apoio ao patrimônio cultural no âmbito dos BRICS?” e “Quais oportunidades para o desenvolvimento econômico em cultura e economia criativa podem expandir-se a partir da cooperação no âmbito dos países dos BRICS”? A seguir, o texto completo que preparei para a conferência.
Começo com as palavras de Fernando Baez, autor latinoamericano que estudou o genocídio dos nossos povos originários: “não há cultura onde não há memória. Por sua vez, não há memória sem identidade. A memória é então o eixo ontológico da personalidade individual ou coletiva: a memória traduz os estados sociais da cultura grupal, nacional ou internacional”.
Assim que tomo a liberdade de reinterpretar as questões norteadoras dessa conferência e perguntar: qual é o lugar da memória e do patrimônio cultural na construção de uma cooperação duradoura que ultrapasse as amarras do mercado?
Falo a partir do Brasil. Nossos desafios para a integração e a cooperação são imensos. E um dos principais entraves, em minha visão, é de ordem ideológica e cultural. Nossa nação construiu, desde os anos 1940, uma política de registro e salvaguarda do patrimônio material que obteve relativo sucesso em preservar resquícios das diversas épocas da construção da sociedade brasileira. Na primeira década do século XXI a política de preservação da memória foi ampliada para a dimensão “imaterial”, passando-se ao registro dos costumes e práticas considerados constitutivos da identidade nacional.
No entanto, o Brasil parece ter fracassado em promover a apropriação, por seu próprio povo, desse patrimônio. Em geral, o patrimônio que está nos museus é visto pela população brasileira apenas como algo familiar, porém distante. As referências culturais dominantes continuam sendo maciçamente importadas dos países centrais e o Brasil parece continuar padecendo daquilo a que o pesquisador e crítico literário brasileiro Robert Schwarz referiu-se como um “torcicolo cultural”. A penetração da cultura anglófona, tanto pelo ensino da língua como pela popularização dos produtos da indústria cultural, sustenta a hegemonia dos EUA sobre a política, a economia e os costumes desde o pós-guerra.
A formação das instituições brasileiras de salvaguarda do patrimônio deu-se no contexto dos debates introduzidos pelo movimento modernista, nos 1920, que ansiava pelo encontro de uma “identidade nacional”. Passadas oito décadas, é de se notar que a despeito de todos os mecanismos de salvaguarda do patrimônio e de educação patrimonial, por meio da criação de museus e espaços culturais, a indústria da cultura, com seus cânones importados diretamente dos EUA, é hegemônica.
A própria indústria da cultura brasileira, grande parte da academia e a totalidade da mídia hegemônica reproduzem os parâmetros e o discurso da indústria cultural dos EUA. Assim, aquela cultura se sobrepôs, no imaginário das massas, às questões nacionais.
Não é por acaso, portanto, que as iniciativas de integração com outros países são sempre intermitentes em nossa história. Iniciam-se com governos progressistas, que buscam autonomia em relação aos EUA e sempre são interrompidas em governos conservadores. Esse foi o tema que explorei em minha pesquisa de doutorado que finalizei em 2018. Em minha reconstituição desse processo, percebi que no Brasil a marca do conservadorismo é a aceitação da posição subalterna em relação aos EUA. Isso porque estamos diante de uma classe dominante política e economicamente vinculada ao chamado “ocidente”. A questão é grave. Nos dias de hoje, até mesmo alguns setores da esquerda, que tradicionalmente foi sempre anti-imperialista, estão plenamente adaptados à agenda dos EUA.
Vejam o exemplo das iniciativas de integração latinoamericana. O Mercosul é o mais bem sucedido mecanismo de integração de que o Brasil participa. Ainda assim, o bloco possui limites evidentes. A cada crise política ou econômica perdem-se anos de trabalho na construção do bloco. Em 1995, momento em que o Mercosul recém despontava na agenda política dos países do “Cone Sul”, o uruguaio Hugo Achugar já se preocupava com algo como uma “política cultural” no e para o acordo assinado em 1991 por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Seu artigo sobre o tema iniciava-se com a proposta de Simón Rodríguez, o preceptor de Simón Bolívar: “ou inventamos ou erramos”, à qual o próprio Achugar propôs uma atualização: “inventamos, integramos ou erramos”. Para o professor da Universidade de Montevidéu, a integração pressupunha uma alta dose de invenção, não apenas em termos políticos e econômicos, mas também culturais, e trazia consigo uma série de desafios às identidades locais e regionais.
Passados 22 anos do artigo de Achugar, parece, no entanto, que pouco avançamos nas questões relativas à cultura no âmbito do Mercosul, para além, talvez, de algum esforço mais consistente na área do audiovisual, que conta com acordos específicos, um fundo, um fórum de discussão e um lugar no organograma do Mercosul. Há alguns acordos na área de formação de docentes e de integração universitária, uma Universidade da Integração Latinoamericana, mais um punhado de documentos, que são muito mais cartas de intenções genéricas do que ações efetivas – ações que, de alguma maneira, modificam o modo como nos reconhecemos dentro desta nova totalidade chamada Mercosul.
Por que eu trago esse tema regional para uma reunião dos BRICS? Porque o drama é o mesmo, porém os desafios são ainda maiores. Trata-se de uma articulação intercontinental, baseada, fundamentalmente, na busca de uma ordem internacional mais justa, livre das amarras econômicas do Consenso de Washington e das disputas hegemônicas que mantêm o mundo em estado permanente de guerra.
A construção de um fórum da magnitude dos BRICS, para ser duradoura em um país como o Brasil, precisa ganhar a adesão da sociedade civil, de forma que ela mesma seja capaz de defender a continuidade dos laços mesmo diante da eleição de governos hostis à essa integração, situação que ocorre com frequência, dada a natureza das instituições democráticas do país.
Nesse sentido, iniciativas de aproximação culturais são mais do que desejáveis. Elas são fundamentais à criação desses laços duradouros. Para além de simples trocas culturais – como as feiras de cultura, que geralmente apostam no exotismo como forma de atrair a atenção – é preciso a criação de políticas comuns de longo prazo. Uma das questões centrais é a aposta na consolidação de memórias comuns, por isso o título da nossa apresentação faz menção ao patrimônio cultural. Ele é material, mas é também imaterial. A partir dele constroem-se memórias. E é a partir delas que se consolidam identidades e laços entre as nações. As identidades nacionais e regionais moldam-se em meio às “batalhas simbólicas” entre as diversas tendências ideológicas que disputam os rumos das nações.
Nesse esforço de salvaguarda do patrimônio e de valorização da diversidade cultural, um tema torna-se cada vez mais relevante: trata-se da identificação dos países dos BRICS como nações pós-coloniais. No caso do Brasil, a crítica à colonização europeia, que até meados do século XX era entendida como “processo civilizatório”, hoje vem ganhando grande espaço entre acadêmicos, gestores culturais e artistas. Isso precisa ser reforçado.
O tema da descolonização é, em minha visão, o principal vínculo entre as nações dos BRICS. Se queremos construir uma identidade cultural comum, capaz de dar forma ao bloco e torná-lo uma plataforma para os povos de suas nações, devemos criar mecanismos de cooperação que auxiliem na promoção dessa memória, dessa identidade cultural comum, de denúncia e resistência à barbárie colonial.
É preciso, portanto, se queremos avançar para uma comunidade compartilhada, na qual nossas diferenças culturais sejam encaradas como riquezas e não como obstáculos, dar passos práticos. Nosso documento final aponta para isso: criação de mecanismos efetivos de financiamento de iniciativas de salvaguarda do patrimônio material e imaterial que valorizem nossa identidade comum, de povos que lutam contra o colonialismo; intercâmbio de especialistas, dentre estes historiadores, sociólogos, conservadores, restauradores, trabalhadores de museus; intercâmbio de professores dos diversos níveis de ensino; fundos que sustentem iniciativas de tradução de obras literárias e facilitem a circulação dessas obras nos países dos BRICS; fundos para intercâmbio de artistas dos diversos segmentos: artes visuais, cinema, teatro, música e dança. Mas a criação desses fundos deve observar que a indústria da cultura está mais organizada que o restante da sociedade civil para concorrer por esse tipo de recurso. É preciso que, na criação desse tipo de mecanismo de financiamento, sejam observadas medidas para que atores não vinculados à indústria cultural também possam participar.
Fundos para financiamento e fóruns permanentes de discussão dos países dos BRICS para monitoramento dessas iniciativas podem ser um primeiro degrau para a construção de pontes entre os países do Sul Global. Pontes imaginárias, é claro, porque nossas nações estão espalhadas por três continentes.
Outro passo importante é a criação de bienais de artes visuais e de cinema. O cinema, pelo menos para o Brasil, é um grande desafio, dada a proeminência da indústria cinematográfica estadunidense no nosso país. A produção cinematográfica poderia ser crucial nessa “batalha cultural” entre a construção de um imaginário pró-BRICS e o imaginário identificado com a produção cultural de massa dos EUA e que já é hegemônico, na medida em que domina a programação das TVs abertas e por assinatura, bem como as salas de cinema. Hollywood hoje influencia até mesmo os gostos e atitudes de grande parte da população brasileira. Seria preciso avançar para uma política de cotas de tela para produção dos países dos BRICS. Isso certamente atrairá pressões dos produtores estadunidenses no âmbito da Organização Mundial do Comércio – uma vez que os EUA entendem os produtos culturais e serviços como “produtos”, que deveriam estar sujeitos ao mesmo tratamento de parafusos e computadores. No entanto, a Convenção sobre Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO apoia as parcerias de âmbito regional e internacional para a promoção da diversidade cultural e reconhece que países em desenvolvimento devem ter tratamento especial do que tange à comercialização de bens e produtos culturais.
As bienais de artes visuais, os festivais de dança e teatro também deveriam integrar a nossa agenda. Do mesmo modo, o intercâmbio de exposições de arte, de orquestras e grupos musicais e de exposições históricas entre os Museus dos BRICS poderiam desempenhar um importante papel na consolidação dos laços entre as nossas nações.
Para viabilizar um movimento desta envergadura, seria necessário o envolvimento de atores estatais e privados, de modo a garantir o financiamento das produções, sua distribuição e divulgação. É preciso entender as artes e a cultura como ativos, que podem gerar emprego e renda em nossos países, colaborando também na agenda de cooperação econômica. A cooperação científica também precisa receber incentivos, especialmente financeiros, para a realização de congressos, simpósios e, a exemplo do programa ERASMUS da União Europeia, é desejável a intensificação dos programas de intercâmbio para jovens estudantes universitários, a fim de se criar uma identidade comum de longo prazo.
Todas essas possibilidades dependem amplamente de decisões no âmbito do Estado. É preciso pressionar os governos de nossos países para que adotem medidas consistentes para essas áreas, às quais também seria importante acrescentarmos o ensino dos idiomas dos BRICS ao menos nas universidades, a fim de iniciarmos também uma aproximação linguística.
A afirmação de Hugo Achugar, a que nos referimos anteriormente, permanece: “ou inventamos e integramos, ou erramos”. Na medida em que não inventarmos e não formos capazes de construir um imaginário comum aos países do BRICS, padeceremos de um eterno recomeçar.
Para finalizar, quero resgatar outro pensador latinoamericano, José Carlos Mariátegui. Em seu ensaio O homem e o Mito, de 1925, ele se ressentia da falta de imaginação criadora das elites peruanas. Dizia que se não conseguimos pensar além do que já temos, ou se não conseguimos almejar mais do que manter a estabilidade do que aí está, também nós sofremos de uma imensa falta de imaginação. A integração para além do mercado, a integração cultural, que é também uma integração espiritual, é ainda um projeto e, como tal, carece de invenção e imaginação – matéria prima de uma política cultural libertadora e contra-hegemônica.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.