Categorizar sempre é arriscado. Ainda que usemos categorias para tornar mais compreensíveis as problemáticas sociais e os fenômenos políticos, algumas vezes o resultado pode ser o contrário. Atualmente, nas análises políticas, há categorizações que confundem mais do que aclaram ou, inclusive, que são usadas a partir de uma postura arrogante, e o termo progressismo tardio é um claro exemplo disso. É inevitável que ao escutar esse termo se apresentem algumas perguntas, tais como:
A luta contra o neoliberalismo foi tardia? Havia um momento correto para chegar ao progressismo? Não é algo positivista e etapista reduzir as lutas a tempos específicos?
Para todas e todos aqueles que se propõem compreender e analisar os processos políticos, é fundamental levar em consideração essas questões.
Denominar o caso mexicano como progressismo tardio confunde mais do que nos fornece ferramentas de compreensão. Usar esse termo é desconhecer o movimento, o contexto político e as lutas que nos levaram ao momento atual da chamada Quarta Transformação (4T). E o momento atual é, a simples vista, o da vitória eleitoral do Movimento de Regeneração Nacional (MORENA) em 2 de junho passado e a chegada histórica da primeira mulher à presidência do México, Claudia Sheinbaum Pardo, sendo também a candidata presidencial mais votada da história, com 35.924.519 votos, segundo a contagem do Instituto Nacional Eleitoral (INE), superando os 30.113.483 votos obtidos por Andrés Manuel López Obrador (AMLO) em 2018.
É importante conhecer melhor aquela que será a primeira presidenta na história do México. Costuma-se notar que sua carreira se dividiu em duas frentes: a ciência e a política. É conhecido também que, como cientista e pesquisadora, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2007 ao ser integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. E, no âmbito político, Sheinbaum Pardo se destacou como titular da Secretaria do Meio Ambiente no governo do Distrito Federal, liderado por Andrés Manuel López Obrador de 2000 a 2006; depois como prefeita de Tlalpan em 2015; e em 2018 como Chefe de Governo da Cidade do México, cargo ao qual renunciou em 2023 para buscar a candidatura presidencial.
Mas a apresentação anterior é incompleta. É preciso mencionar que Sheinbaum, desde a juventude, participou ativamente em diversas lutas das esquerdas mexicanas. Ela mesma situa suas primeiras lutas políticas no movimento estudantil, pela educação pública e gratuita, e contra o despojo neoliberal, luta que a levou, nos anos 80, a ser integrante do movimento do Conselho Estudantil Universitário (CEU) na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Também é importante dizer que, após ser secretária do Meio Ambiente no governo da capital mexicana, foi parte do chamado Governo Legítimo, ocupando a Secretaria de Patrimônio Nacional.
O Governo Legítimo foi uma das expressões de resistência do movimento obradorista frente à fraude eleitoral de 2006, que levou à presidência o genocida Felipe Calderón. Dois anos após a criação do Governo Legítimo, o movimento obradorista enfrentou a tentativa de privatização do setor petrolífero, e Sheinbaum organizou as brigadas chamadas Las Adelitas, compostas apenas por companheiras, que tiveram um papel fundamental na mobilização e organização contra a privatização do petróleo.
A próxima presidenta, além de ser uma renomada pesquisadora em temas ambientais, é também uma militante comprometida com um projeto de transformação que não começou com as grandes mobilizações de 2005 contra o desaforo de Andrés Manuel López Obrador, nem em 2018, com sua vitória eleitoral. Poderíamos dizer que a militância de Sheinbaum se enquadra na luta pela democratização de nosso país, que, na história moderna, se situa na década de 50 do século passado. Conhecer sua história de militância nos ajuda a entender que o projeto da 4T vai além de candidatos ou candidatas, que não é espontâneo ou produto de um líder apenas, mas que traz uma construção histórica na luta a favor dos explorados e despossuídos do México. Claudia Sheinbaum é representante dessa luta, e esse é um primeiro elemento para entender a avassaladora vitória eleitoral de 2 de junho de 2024, com uma ampla e histórica participação popular, em um país onde votar não é obrigatório.
A oposição à 4T
É necessário conhecer também a configuração do cenário político mexicano, um elemento mais para compreender a vitória eleitoral do partido-movimento MORENA. A ascensão de López Obrador à presidência rasgou o véu das aparências da oposição: ficou cada vez mais claro que o bloco da direita, composto pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), Partido da Ação Nacional (PAN) e Partido da Revolução Democrática (PRD), defende políticas neoliberais, a subordinação total do país aos interesses imperialistas estadunidenses e os privilégios que lhes foram tirados. Esse bloco é liderado pelo empresário Claudio X González, uma figura representativa do pior da oligarquia mexicana. Ele também é proprietário de “organizações da sociedade civil” que recebem somas milionárias de agências dos Estados Unidos e que, sem sucesso, buscam incessantemente derrubar o governo da 4T por qualquer via.
Outra oposição, ainda mais minoritária que a coalizão PRIAN, que também esteve presente no cenário eleitoral, é o partido Movimento Cidadão. Um grupo de direita que sustentou a narrativa de uma “nova política”, essa narrativa liberal que nega e condena os “políticos” e o “exercício da política” em geral, defendendo uma “cidadanização da política”. Um discurso muito semelhante ao de algumas extrema-direitas neoliberais como a de Milei na Argentina ou Bukele em El Salvador.
Esta é a oposição ao MORENA, a mesma oposição que fala da existência de uma “polarização” social e culpa o presidente da República por isso, mas que ainda não entende que o MORENA e o movimento da 4T têm se consolidado nas massas populares porque a transformação é palpável, a realidade está sendo disputada por um projeto que defende e proporciona bem-estar social frente a uma oposição que o único projeto que apresenta é o retorno aos anos de neoliberalismo, de privilégios, corrupção e impunidade. Com tudo isso em jogo, não é difícil compreender o apoio popular que AMLO desfruta, encerrando seu mandato com uma aprovação acima de 60%.
O governo da 4T
Falamos sobre o apoio popular e a aprovação de López Obrador acima, mas não nos limitemos à aparência, busquemos a essência. O respaldo não é apenas a um personagem, mas a um projeto político que tem sido chamado de Quarta Transformação (4T), e que tem combatido o neoliberalismo e a corrupção em todas as suas dimensões. A participação social é o caminho seguido pelo projeto da 4T, e é a ela que se deve a consolidação do MORENA nas urnas.
Isso ocorre porque o enfrentamento ao neoliberalismo apresenta resultados concretos: gestão democrática da pandemia[1]; redução do desemprego; aumento de 110% no salário mínimo; redução de 16% na pobreza; os programas sociais para idosos, estudantes, jovens, mulheres, pessoas com deficiência, e camponeses agora possuem garantia constitucional; houve o resgate da soberania energética, com a compra de uma refinaria no Texas e a construção de outra em Tabasco, além de investimentos em energias alternativas; a criação de programas para garantir a soberania alimentar; investimentos em projetos de transporte e comunicação em áreas historicamente abandonadas; uma importante reforma educacional; a implementação de uma nova política de segurança pública que se enfoca na origem da violência do país; e muitos outros avanços importantes. Todos esses feitos são resultado do aprofundamento da democracia, através de exercícios como consultas populares e a revogação de mandato, que agora é lei.
Entender o processo mexicano, assim como qualquer outro processo político-social, é complexo e exige atenção, responsabilidade e rigor. Depois de enumerar apenas alguns dos avanços alcançados pela administração de AMLO, é incompreensível que sejam atribuídos adjetivos ou caracterizações como “progressismo tardio” (já mencionado acima), “progressismo social-liberal”, “progressismo que mercantiliza a cultura” ou até mesmo “extrativismo neoliberal”. Tudo isso é desmontado muito facilmente ao se considerar a lógica política, social e econômica por trás dos megaprojetos (Trem Maya, Trem Interoceânico, Aeroporto Felipe Ángeles, refinarias Deer Park e Dos Bocas), uma lógica que não está, de modo algum, a serviço do extrativismo e não segue políticas neoliberais; ao contrário, busca o bem-estar social.
E destacamos bem-estar, porque este conceito se opõe totalmente às lógicas neoliberais. AMLO nunca defendeu uma política “neodesenvolvimentista”. Sua lógica vai além e se situa numa política de bem-estar com uma abordagem integral e inclusiva: crescimento com bem-estar e redistribuição da riqueza. Não é à toa que seu lema é “Por el bien de todos, primero a los pobres” (“Pelo bem de todos, primeiro dos pobres”).
As políticas econômicas da 4T têm como objetivo garantir direitos à alimentação, ao trabalho, saúde, educação, cultura, moradia e proteção social para todas e todos. Resgatar e regenerar os ideais de justiça social expressos na Constituição Mexicana de 1917, que foram cerceados pelo neoliberalismo.
A lógica do bem-estar implica na participação essencial das comunidades como espaços de tomada de decisão, por exemplo, sobre o direcionamento dos programas sociais e dos megaprojetos. Não seria um tanto arrogante, ou de uma lógica tutelar, pensar que nas consultas populares que aprovam ou rejeitam tais projetos, as comunidades estão sendo manipuladas pelas conferências matinais (Mañaneras)[2] e pela propaganda do governo, como se elas próprias não tivessem a capacidade de decidir sobre seus destinos?
A construção da democracia se vive de forma plena, o cenário de debate e diálogo político é intenso, e a politização da sociedade mexicana é notável. Não é gratuito que o movimento fale de uma revolução das consciências; aí reside a construção da hegemonia da 4T, que vai muito além do que tem sido chamado de hegemonia eleitoral.
Rumo ao segundo andar da 4T, ou, como dizemos: Hacia el segundo piso de la Cuarta Transformación
As experiências dos diferentes governos das esquerdas na região mostraram complicações nos momentos de sucessões presidenciais e processos de transição: Argentina, Brasil, Bolívia e Equador são exemplos disso. É claro que a sucessão no México gerava incertezas e expectativas. Desde o processo de escolha do candidato ou candidata do movimento, muitos analistas previam uma inevitável ruptura, pois era ali que se visualizaria o rumo que o projeto da 4T tomaria. No entanto, a tão esperada ruptura não ocorreu. A lógica política atribuída ao processo de escolha de quem representaria o MORENA nas urnas, alinhada ao projeto de transformação, possibilitou uma designação tranquila e sem quebra.
E continua no mesmo caminho a transição do governo de AMLO para o governo de Claudia: não se apresenta a possibilidade de uma ruptura a curto prazo, porque, como não cansaremos de repetir, o governo responde a um movimento político e a um projeto de transformação que está em primeiro plano, acima de personagens e líderes. Mas é necessário entender como chegamos até aqui para então sermos capazes de visualizar aonde vamos.
Seguindo essa mesma rota política, o projeto de transformação, o segundo andar da Quarta Transformação tem clareza da trajetória que irá seguir, e o plano de governo[3] da Dra. Claudia Sheinbaum o confirma: mantém-se a austeridade republicana; o combate à corrupção; o fortalecimento dos direitos das grandes maiorias; o aumento dos salários; investimento público para o bem-estar; ampliação do acesso à educação, saúde e moradia; fortalecimento dos Planos de Justiça para os povos indígenas; consolidação da defesa da soberania; aceleração da transição energética; garantia da paz, sempre atendendo às causas que geram a violência; para mencionar apenas alguns pontos contidos no Projeto de Nação.
Como agentes do processo de transformação mexicano, estamos conscientes da necessidade de que nosso processo seja conhecido em toda a região. Consideramos fundamental abrir cada vez mais espaços de diálogo e troca de experiências que nutram os processos de luta pela democratização regional. Algo que também caracteriza a 4T é o internacionalismo, a compreensão de que nosso bem-estar deve ser compartilhado. Para as esquerdas da região, é crucial conhecer o processo mexicano e combater a desinformação disseminada pelos grandes meios de comunicação, que frequentemente veiculam notícias falsas e dados tendenciosos. E para os meios de comunicação popular ou alternativos, eles precisam saber que há possibilidade de diálogo com os principais atores envolvidos no processo.
Também somos conscientes de que em nosso processo existem contradições. Não podemos ignorar os limites e as possibilidades do nosso projeto de transformação, mas tampouco podemos ignorar que esses limites e possibilidades, além do aspecto estrutural, serão determinados pelo povo mexicano. Parafraseando o ditado popular: oxalá que a sociedade mexicana apenas se comprometa com tarefas que possa resolver, pois as condições materiais para resolvê-las já existem ou estão se formando no futuro próximo[4].
(*) Aldo Guevara é sociólogo, educador popular, militante do MORENA e integrante do Instituto Nacional de Formação Política do MORENA.