Nas últimas semanas, o governo Lula está sofrendo pressão para fazer um ajuste fiscal com cortes de gastos em direitos e programas sociais. Como o governo parece estar perdido, resolvi escrever um pequeno guia de como fazer um ajuste fiscal contrariado. Talvez eu possa ajudar a resolver o problema.
Qual o melhor tipo de ajuste fiscal?
A primeira questão é definir o que é um bom ajuste fiscal. Segundo cálculos do centro de pesquisa Macroeconomia e Desigualdade, da USP, o melhor tipo de ajuste fiscal é aquele focado no aumento de receita, não no corte de gastos. Os gastos têm um alto “multiplicador fiscal”: cada real gasto em Bolsa Família é consumido imediatamente e gira a economia, criando mais dois reais de renda. Considerando a tributação que o governo recupera sobre esses dois reais extras, o Bolsa Família sai quase de graça. Você não quer perder esse almoço grátis só para fazer um ajuste fiscal.
Outro almoço grátis que você não quer desperdiçar são os investimentos públicos. O multiplicador dos investimentos é ainda maior: 2,6 reais para cada real gasto. Além de aumentar a arrecadação de imediato, o investimento aumenta a capacidade produtiva futura. Ou seja, aumenta quanto imposto você arrecadará no futuro. Bons investimentos se pagam e ainda geram benefícios extras, só precisam de um pouco de tempo, mas nós não estamos com pressa.
O melhor jeito de fechar um déficit é aumentar as receitas. Aqui, é importante focar no aumento da receita sobre as pessoas muito ricas: os ricos não consomem toda sua renda, por isso tributá-los não vai ter um efeito multiplicador negativo na renda nacional. Mas, caso você esteja realmente precisando desaquecer a economia, é só ir mais fundo, pois o consumo que os ricos cortarão será mais supérfluo. Você não quer fazer ninguém deixar de comer para pagar mais imposto, mas o carro zero de 300 mil pode esperar um pouco porque a tributação subiu. De quebra, você ainda reduz a desigualdade do país.
Falando sobre tributar os ricos, existe uma tributação especialmente atrativa para ajustes fiscais: aquela que não está sendo cobrada. Cortar os “gastos tributários”, ou subsídios, na linguagem comum, tem o melhor custo-benefício em termos de efeito no PIB de longo-prazo, especialmente quando os subsídios vão para setores que já têm margens de lucro bem gordas, não dependem do apoio do Estado e nem são estratégicos. Assim como você não quer desperdiçar o almoço grátis dos investimentos e programas sociais, você não quer desperdiçar a dieta sem sacrifícios de cortar subsídios. Cortar subsídios é emagrecer comendo chocolate.
E é possível fazer um ajuste fiscal ideal no Brasil?
A boa notícia é que há muitas oportunidades para um ajuste fiscal “do bem”. O Brasil tem um imposto de renda sobre pessoas físicas muito baixo, principalmente para os milionários, que pagam zero imposto sobre lucros e dividendos. A maior fonte de renda dos ricos não paga imposto.
Além disso, o Brasil tem mais de meio trilhão de reais em subsídios, vários deles indo para quem realmente não precisa, como as empresas com alto faturamento que ainda pagam imposto de renda de pessoa jurídica no regime do Simples ou do lucro presumido. Graças à “Lei Kandir”, os exportadores brasileiros não pagam ICMS. Tudo bem se você não quiser atrapalhar os exportadores na competição internacional, mas é possível taxar os excessos de lucro, como o ministro Fernando Haddad fez com as exportações de petróleo cru em 2023.
Se o aumento de impostos não for suficiente, você pode cortar gastos ineficientes ou pagos para quem já ganha muito dinheiro: a previdência gorda de militares, as pensões de viúvas de militares criminosos que nem morreram, os penduricalhos do poder Judiciário, ou as emendas parlamentares. Não faltam oportunidades de cortes.
E um ajuste fiscal pode ser popular?
É improvável que um ajuste fiscal seja popular. Afinal, alguém necessariamente vai sair perdendo. O primeiro passo para evitar a impopularidade é evitar cortes de gastos que afetem a maioria da população: mais um motivo para deixar os programas sociais e os investimentos públicos fora da sua mira.
O ajuste sobre os ricos também pode gerar impopularidade. Afinal, eles são os donos dos meios de comunicação e vão botar a boca no trombone. E muita gente sonha em ser rico e vai ficar triste que você taxou o sonho dela.
A dica aqui é cuidar bem da comunicação do ajuste fiscal. Já que você vai ter que fazer, diga sempre que é contra sua vontade. Mostre que gente poderosa está te constrangendo.
Se você mandou um ajuste fiscal focado no aumento de impostos sobre os ricos e no fim dos subsídios e ele caiu no Congresso, faça barulho. Mostre que você tentou fazer a coisa certa e diga quem está atrapalhando a vida do povo. Em hipótese alguma diga que vai fazer um ajuste fiscal porque gosta. Evite expressões como “rombo”, “sacrifício” e “apertar os cintos”: foque nas medidas positivas, como os impostos sobre milionários. E não fique falando todo dia na imprensa que precisa fazer, é importante, etc. Deixe a propaganda negativa para seus oponentes, foque na parte boa.
Se você realmente tiver que fazer cortes de gastos sociais ou direitos, mande a proposta junto com um ajuste em cima dos ricos, seja aumento de impostos ou corte de gastos nas mordomias. Deixe o Congresso derrubar a parte boa e levar a culpa pelo todo.
Quando fazer um ajuste fiscal?
Agora que você já sabe como fazer um ajuste fiscal, o passo final é saber quando fazer. Certamente não é quando os capitalistas pedem, até porque eles pedem todos os dias. Cada hospital que não é construído é mais um bocado de clientes de planos de saúde privados. E cada direito arrancado dos trabalhadores é mais uma derrota dos sindicatos na negociação com os patrões.
Um ajuste fiscal também não deve ser feito para “evitar o risco de calote”. O Brasil emite dívida na sua própria moeda e não tem dificuldades de obter dólares. Não existirá risco de calote enquanto essas duas condições existirem. Não existe “trajetória insustentável” da dívida pública emitida em moeda própria.
E nunca faça um ajuste fiscal só para cumprir uma regra fiscal que impõe um teto de gastos arbitrário, mesmo um teto que cresce aos poucos. Regras fiscais são uma invenção recente e os “números mágicos” de limite de dívida e de gastos em geral são só isso mesmo: números mágicos.
Mas existe um momento em que é de fato necessário fazer um ajuste fiscal: quando a economia está em sua capacidade máxima, ou em pleno emprego dos fatores de produção (capital e trabalho). Como coloca a “teoria monetária moderna” (MMT), se não há capacidade produtiva para produzir o que o governo quer comprar, o gasto do governo começa a gerar inflação.
Hoje, a economia brasileira já está aquecida. A nossa situação indica que é o momento de reduzir aos poucos o “impulso fiscal”. Mas é importante lembrar que um ajuste fiscal não deve ser feito para levar a economia para uma crise. Uma economia que está próxima de sua capacidade máxima começa a desfrutar de vários benefícios: é nesse momento que os capitalistas são forçados a pagar salários melhores e investir na formação da mão-de-obra. Como os custos com trabalho crescem e as vendas estão altas, essa também é a hora em que os capitalistas compram máquinas mais modernas e fazem inovações: estão vendendo muito e querem vender mais e tentar economizar mão-de-obra.
Então, o momento atual no Brasil é, de fato, propício para pensar numa moderação gradual de gastos desnecessários e em como tributar mais os ricos ou cortar subsídios. Tudo bem gradual para não atrapalhar os efeitos de longo-prazo da economia aquecida. Aliás, isso é o que já está acontecendo. A gente deveria estar falando mais sobre isso.
E, claro, não faça o ajuste fiscal que seu oponente diz que quer fazer. Se seu oponente acha a proposta tão boa, o eleitor certamente vai reconhecê-la e dar-lhe a confiança para um mandato de ajuste fiscal. Não roube do seu oponente a oportunidade de executar um corte de gastos e colher os louros. Deixe que ele ganhe a eleição e faça, oras.
(*) Pedro Faria é economista pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em História pela Universidade de Cambridge