Como Marx veria as tarifas de Trump?
Posição de Marx sobre livre-comércio e protecionismo deve nos orientar na guerra tarifária de Trump: nenhuma das posições atende os interesses dos trabalhadores
Em setembro de 1847, o jovem Karl Marx compareceu a um congresso de economistas ‘livre-cambistas’ em Bruxelas, na Bélgica, onde se encontrava exilado. Mas não lhe foi dada a palavra. Pouco depois, no início de janeiro do ano seguinte, ele teve a chance de expor suas ideias sobre o assunto ao pronunciar um discurso na Associação Democrática de Bruxelas, que ele mesmo ajudara a criar, meses antes, e da qual era vice-presidente. Não sabemos se o fundador do ‘socialismo científico’ possuía em suas mãos um copo de cerveja ou de vinho. Mas podemos ter a certeza de que sua fala naquela noite não pode ser compreendida sem considerar as boas doses de ironia que, aliás, caracterizam a personalidade de Marx e perpassam toda a obra do comunista alemão.
No ‘Discurso sobre o problema do livre-comércio’, como o próprio título adianta, Marx apresenta uma reflexão sobre o posicionamento da classe trabalhadora diante do debate que dividia as elites capitalistas já naquela época: livre-comércio versus protecionismo alfandegário. Em termos narrativos, Marx opta por um estilo quase teatral, ao criar personagens ideal-típicos que verbalizam as diferentes posições de classes (e frações de classe) envolvidas no debate econômico, criando, assim, uma espécie de fábula que permite à plateia sentir-se representada e compreender didaticamente quais são os seus próprios interesses em meio à cacofonia ideológica daquela discussão intra-burguesa.

(Foto: White House / Daniel Torok)
Antecipando um estilo alegórico e satírico que depois seria consagrado por Bertold Brecht em peças como A Resistível Ascensão de Arturo Ui, Marx inventa diálogos fictícios (porém bastante verossímeis no debate econômico) nos quais os propagandistas burgueses tentam convencer os trabalhadores a endossarem suas respectivas doutrinas econômicas. Tanto protecionistas quanto free-traders buscam explicar aos operários, camponeses e pequenos comerciantes que suas condições materiais de existência irão melhorar caso a política que defendem seja implementada. Os trabalhadores, sempre inteligentes, respondem-nos com perguntas desconcertantes que vão, aos poucos, desmascarando as promessas de ambas as teorias burguesas em disputa, bem como as boas intenções dos propagandistas burgueses, sejam quais forem.
Ao fim, percebem que tanto uns quanto outros querem transmitir seus interesses particulares como se fossem universais. Contudo, apesar de toda a pressão ideológica, os trabalhadores do teatro de Marx não se deixam levar pela falsa consciência e, neste caso, tampouco pela falsa concorrência oferecida pelos discursos dominantes. Os trabalhadores chegam à inevitável conclusão de que trata-se de uma disputa sobre que tipo de capitalismo seria o mais eficiente; quando, em realidade, do ponto de vista dos interesses de classe do proletariado, a verdadeira questão deve ser outra: qual das opções, se é que alguma delas, aguça mais as contradições do capitalismo de modo a abrir caminho para a revolução social contra este regime?
Ou seja, ao debate intra-burguês sobre como tornar o capitalismo mais eficiente (e até humanizado), Marx retruca com indiferença e certo desdém, recolocando os termos da discussão de modo a evitar que a classe trabalhadora se deixasse levar pela falsa questão que volta e meia monopoliza a atenção da opinião pública. Afinal, as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, como diz o Manifesto (do mesmo autor e do mesmo ano, por sinal). A única questão que nos interessa verdadeiramente, e que jamais podemos esquecer, é como liquidar com o sistema. Eis o nosso problema, que não pode ser eclipsado pelos problemas das classes inimigas.
É deste ângulo que devemos analisar o debate intra-burguês: em vez de eleger um aliado dentre os exploradores, Marx insiste que é preciso abolir a exploração.
Além disso, prossegue Marx, já com ares professorais e menos teatrais, trata-se de uma falsa questão até do ponto de vista puramente econômico, uma vez que livre-comércio e protecionismo são, na realidade, dois lados da mesma moeda: não se trata de um par dicotômico que se exclui mutuamente, mas de uma totalidade dialética, mutuamente constituída. É assim – e somente assim – que pode-se entender a conclusão de Marx em favor do livre-comércio diante de seus camaradas naquela fria noite de inverno belga:
“Ademais, o sistema protecionista não é mais do que um meio de estabelecer em um país a grande indústria, ou seja: de fazê-lo depender do mercado mundial. Mas, desde o momento em que se depende do mercado mundial, já se depende mais ou menos, do livre-câmbio. Também o sistema protecionista contribui para desenvolver a livre concorrência no interior do país. Por isto, vemos que, nos países em que a burguesia começa a se fazer valer como classe, na Alemanha, por exemplo, ela realiza grandes esforços para obter tarifas protetoras. Para ela, estas tarifas são armas contra o feudalismo e contra o poder absoluto, são, para ela, um meio de concentrar suas forças e de realizar o livre-câmbio no interior do próprio país”.
Dialeticamente, no entanto, ele conclui:
“Mas, em geral, o sistema protecionista é, em nossos dias, conservador, enquanto que o sistema do livre-câmbio é destruidor. Dissolve as velhas nacionalidades e leva ao extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Numa palavra, o sistema da liberdade de comércio acelera a revolução social. E só neste sentido revolucionário, eu voto, senhores, a favor do livre-câmbio”. [1]
Fosse mais apurada, a transcrição do discurso certamente traria um ponto de exclamação ao final da frase de Marx, que pode muito bem ter sido seguida de um brinde coletivo e, talvez, de uma grande gargalhada geral. A ironia de Marx hoje nos faz falta quando chega a nossa vez de enfrentar o debate hegemônico que os políticos burgueses e seus porta-vozes na imprensa nos obrigam a participar. A genialidade da postura de Marx reside justamente no fato de que, apesar de eleger uma dentre das opções dominantes, ele não sucumbe ao Conto do Vigário de nenhuma delas. Sua conclusão revoluciona o próprio debate, agora definido entre um modelo ‘conservador’ e outro ‘destruidor’. Nenhum deles nos serve. Marx, a princípio, nos convida a torcer pela própria briga. Essa é a graça de sua tirada.
Em nenhum momento ele aceita as teses livre-cambistas sobre o aumento do fluxo global de comércio como benéfico, em termos absolutos, para todos em toda parte, ainda que desigualmente em termos relativos. As frases de abertura do discurso já zombam do slogan ‘cheap food, high wages’ (comida barata, salários altos) difundido pelos free-traders. Por outro lado, ele tampouco se coloca como defensor de ‘sua’ própria burguesia nacional, supostamente interessada em garantir empregos e prover salários dignos domesticamente. Nada disso. Em ambos os casos, Marx nos relembra: os trabalhadores perdem. Sua crítica da economia política, portanto, não é direcionada apenas ao liberalismo de Smith e Ricardo, mas também, e enfaticamente, ao nacionalismo econômico de List e Hamilton, todos capitalistas à sua maneira.[2]
Hoje, quando os capitalistas mundo afora novamente se debatem sobre este mesmo tema (ora, que surpresa!) nossa posição não pode ser a de irrefletidamente tomar um lado, acreditando que este lado possa ser ‘nosso’ de alguma maneira. Mas é o que tem acontecido, lamentavelmente. Esta tornou-se a nossa triste ironia atual, que não faria sorrir nem mesmo o bem-humorado Marx.
Pois quem lutou com sucesso contra a ALCA poderá agora lamentar as tarifas de Trump contra o aço ‘brasileiro’? Quem denunciou o livre-comércio e a globalização neoliberal pode agora endossar a teoria das vantagens comparativas da noite para o dia? Quem uniu-se à resistência das comunidades impactadas por mega-empreendimentos exportadores, como a TKCSA/Ternium, no Rio de Janeiro, pode agora mudar de lado sem um pedido de perdão a estas mesmas comunidades?[3] Quem se consternou com o suicídio de um camponês coreano em protesto contra a OMC pode agora sentir saudades desta funesta organização? Somente porque é Trump que está destruindo, a seu modo, alguns de nossos alvos políticos de décadas devemos então, subitamente, passar a defendê-los? E, neste caso, sem fazer uma tremenda autocrítica de nossa posição anterior?
Por fim: estivemos equivocados este tempo todo e devemos, portanto, jogar a nossa biografia política no lixo?
Parece que não. A verdade é que estamos equivocados somente agora, ao esquecer da ironia de Marx e de sua metodologia de análise para casos deste tipo. Em vez de sucumbir perante o canto das burguesias choronas ou cair na tentação de embarcar na canoa furada liberal-progressista em seu embate particular contra outros representantes da Casa Grande global, nós precisamos urgentemente recolocar os termos do debate em função dos interesses finais (e não apenas os imediatos) das classes trabalhadoras.
Pois, atualmente, a ironia que emerge do debate público não é a mesma captada por Marx: é sim, pelo contrário, o fato de que a nossa incapacidade de afirmar uma linha política própria tem nos transformado em objeto de chacota das classes dominantes ou em piada de mau-gosto aos olhos dos setores populares, perplexos com o abandono de todas as nossas bandeiras de luta justamente na hora em que o debate político mais se polarizou. Só que agora já não fazemos mais parte de nenhum dos polos. Viramos, por (des)graça, uma espécie de bobo da corte, vacilante e coadjuvante, nas intrigas palacianas entre os donos do poder.
Notas:
[1] Marx, K. (1985) A Miséria da Filosofia. São Paulo: Ed. Global, p. 197.
[2] Infelizmente, o extenso comentário de Marx sobre a obra de “Herr List”, como ele o trata sarcasticamente, não está disponível em língua portuguesa, sendo, por esta razão, menos conhecida pelo público brasileiro do que os notórios engajamentos de Marx com a Escola Clássica britânica ou mesmo contra os fisiocratas. Para o texto em inglês, ver: http://hiaw.org/defcon6/works/1845/03/list.html
[3] Para mais sobre a Campanha PARE TKCSA, ver: https://paretkcsa.blogspot.com/
Sobre a Ternium, que compromou a siderúgica, ver: https://pacs.org.br/biblioteca/mudancas-climaticas-e-siderurgia-impactos-locais-e-globais-da-ternium-brasil%EF%BF%BC/
