Sábado, 12 de julho de 2025
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Em procura de um inimigo

O mundo está em um momento de tensão que ameaça arrastar a humanidade a uma inevitável conflagração que pode chegar ao nível nuclear. Em várias regiões do mundo é possível observar o empenho nos preparativos para a guerra, com a falácia “se quer a paz, prepara-te para a guerra” (Si vis pacem, para belum), como se essa fosse a única forma de manter a paz. O certo é que esse preparo se transforma em profecia autorrealizada. Detonadores não faltam: às guerras na Ucrânia e no Oriente Médio se somam a tensão entre as duas Coreias e no Estreito de Taiwan. Os detonadores são resultado da fuga de energia produzida pela grande pressão exercida pelas camadas tectônicas do sistema internacional em movimento de colisão. A partir da Segunda Guerra na Ucrânia[1], na qual se inicia a guerra não assumida da OTAN contra Rússia, ficou claro que a monopolaridade do sistema internacional tinha sido contestada pelo choque daquelas camadas. 

Desde a década dos noventa do século passado, os neocons americanos tinham advertido que os Estados Unidos, autoproclamados vencedores da Guerra Fria, não tolerariam potências que pudessem se opor à vontade da hiperpotência estadunidense. Os primeiros anos foram fáceis para ela — com uma Rússia empobrecida e circunscrita às suas fronteiras e uma República Popular da China (RPC) que ainda não incomodava a projeção dos seus interesses. Mas o desenho programático do desenvolvimento chinês, que permite formular estratégias de longo prazo, sem preocupações com mudanças de rumos políticos e com a paciência taoísta para esperar sem ansiedade a realização dos seus projetos, começou a preocupar aos estadunidenses que, desde o começo do século, passaram a olhar apavorados para o frenético crescimento da economia chinesa. 

Crescimento da República Popular da China

Com uma estratégia de longo prazo a RPC investiu pesadamente na educação e no desenvolvimento científico-tecnológico, atingindo logros espetaculares em pouco tempo. Seus produtos industriais foram ganhando qualidade e inovação e a aceitação do mercado mundial, mesmo dos estadunidenses. Mas suas mercadorias precisavam de ampliação de mercado e de logística global, o que levou à renovação do projeto da Rota de Seda. Em algumas décadas sua produção científica passou a ocupar mais de 80% das publicações científicas mais importantes e os logros da sua ousada engenharia e tecnologia começaram a ser mundialmente reconhecidos. Não foi seu anti-imperialismo, mas sua eficiência no desenvolvimento da economia capitalista, que a transformou numa ameaça para os Estados Unidos. 

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m 07/2021, em Bruxelas, Biden e a OTAN tipificaram a RPC como um “desafio sistêmico”.
(Foto: NATO North Atlantic Treaty Organization / Flickr)

Em 2011, antes mesmo de disputar a presidência dos Estados Unidos, Donald Trump publicou no antigo Twitter que a RPC era a principal ameaça para os Estados Unidos e por isso devia ser destruída. Durante a campanha retomará com força essa mensagem colocando a RPC como inimiga. Essa precaução não demorou a entrar nos radares dos falcões da RAND Co. e nos negócios do Complexo Político-Industrial-Militar-Midiático-BigTech, o “Estado Profundo” que orienta o substantivo da política externa estadunidense, independentemente de quem estiver na Casa Branca: Democratas e Republicanos passam, os interesses do Estado Profundo permanecem. Mudarão os estilos de tratar com a RPC e com a Rússia e, em alguma medida, também a estratégia, mas essencialmente não existe diferença entre ambos. O republicano Trump tentou uma aproximação com a Rússia para isolar a China e poder atacá-la como inimigo principal. Durante o governo do democrata Obama, os neoconservadores, representados por Victoria Nuland, começaram a ameaçar a Rússia, primeiro no intento frustrado na Geórgia (2009), e finalmente no bem-sucedido golpe da praça Maidan (2014) na Ucrânia, tendo como objetivo final o isolamento e enfrentamento com a RPC. 

A crise financeira internacional de 2008 deixou a China em maior evidência. Sua milenar diplomacia silenciosamente foi aumentando seu prestígio internacional à medida que realizava negócios convenientes para todos e sem vincular suas compras a posicionamentos políticos ou ideológicos nem a votos nos foros internacionais. Seu crescimento econômico e produtivo a levaram a definir novos mercados financiando obras de infraestrutura, oferecendo uma logística que permitisse escoar sua produção e/ou importar os insumos necessários para o seu consumo e crescimento. Aqueles que se aproximaram da China, que negociaram com ela ou conseguiram financiamento, logo perceberam a diferença com relação à diplomacia estadunidense, opressiva e vinculante. O período da pandemia acelerou essa tendência e modificou as cadeias de valor. Mas, na medida em que a RPC expandiu os seus interesses, aumentou a preocupação estadunidense, que não admite concorrência econômica. Seus concorrentes são considerados ameaças à segurança nacional e passam a ser tratados como inimigos a serem combatidos. 

Desde então a OTAN passou a classificar a RPC como desafio e a Rússia como ameaça. A retórica da aliança militar atlantista foi aumentando os decibéis e, sem levar em conta as consequências estratégicas, foram acomodando as duas potências emergentes, Rússia e China, como adversários, sem perceber que estavam cometendo um pecado mortal do ponto de vista estratégico: fundir a força de dois adversários numa única frente de combate. Com efeito, a percepção de que para a OTAN ambos eram considerados, no mesmo parágrafo, os principais desafios — e para uma aliança militar os desafios são bélicos! —, os levou-os naturalmente à conveniente aproximação estratégica. 

A diplomacia chinesa começou a ser mais assertiva e seus gestos mais firmes. Em 18/10/2017, o discurso de Xi Jinping na abertura do XIX Congresso do Partido Comunista da China passa da retórica ao comando da ação. Nesse discurso, o líder chinês afirmou que “o exército deve estar preparado para combater […] tomar a combatividade como critério em todos os nossos trabalhos e ter a capacidade de combater e vencer. Faremos de forma sólida os preparativos para os combates militares em todas as direções estratégicas e impulsionaremos de maneira coordenada os preparativos para as ações militares nas áreas de segurança tradicional e de novo tipo. Vamos […] realizar treinamento militar na forma de combate real, fortalecer o uso das forças militares, acelerar o desenvolvimento do sistema militar inteligente e melhorar a capacidade de operações conjuntas em todos os espaços que se baseiam no sistema informático de redes”. 

Em 07/2021, em Bruxelas, Biden e a OTAN tipificaram a RPC como “desafio sistêmico”: “As ambições declaradas da China e seu comportamento assertivo se colocam como desafios sistêmicos à segurança da aliança. Estamos preocupados com essas políticas coercitivas que contrastam com os valores fundamentais gravados no Tratado de Washington”. No mesmo documento, a RPC é vista como um desafio e a Rússia como risco. Nesse ano, os estadunidenses são surpreendidos pelo exitoso voo de um míssil hipersônico chinês (tecnologia na qual os EUA ainda não tiveram êxito). Em março de 2023, frente à Assembleia Popular Nacional, o presidente chinês afirmou a necessidade de “transformar o Exército Popular de Libertação em uma grande muralha de aço que proteja efetivamente a soberania nacional, a segurança e os interesses de desenvolvimento […] a segurança é a base para o desenvolvimento, a estabilidade é o pré-requisito para a prosperidade” e decidiu aumentar o orçamento da Defesa em 7,2%, para 1,55 trilhões de yuans. Na oportunidade, o ministro de Relações Exteriores, Qin Gang, considerou que se os EUA não “pisar[em] no freio” as duas superpotências certamente entrarão em conflito e confronto. 

Desde o Império: o retorno da falácia da inevitabilidade

Em 07/2024 a Comissão Nacional dos Estados Unidos publica a Estratégia de Defesa. Nesse documento, aponta-se o crescimento da China e a capacidade militar da Rússia como ameaças à segurança nacional e se estabelece que, junto com a Coreia do Norte e o Irã, formariam uma frente, chamada de Axis of Upheaval (eixo tormentoso, convulsivo, insurreto ou o lembrado eixo do mal), que torna o confronto armado inevitável. Ante a inevitabilidade dessa Guerra Mundial, os Estados Unidos devem se preparar para combater contra aqueles inimigos e seus aliados. Segundo o cenário prospectivo desse documento, essa guerra seria levada a cabo em diferentes teatros, como o Oriente Médio, a Europa Oriental e a região do Indo-Pacífico. Todavia, nem com o empenho dos seus aliados, segundo essa análise, os Estados Unidos poderiam vencer a guerra contra esse poderoso eixo de potências nucleares e com desenvolvimento tecnológico superior ao dos Estados Unidos e seus aliados. Reconhecem a obsolescência do desenho tecnológico do seu complexo militar-industrial e a distância que os separa do preparo militar e da capacidade tecnológica daqueles inimigos.

Ante esse diagnóstico, o documento propõe que os Estados Unidos deveriam construir uma “Força de Teatro Múltiplo” e formular uma Grande Estratégia que prepare a nação e seus aliados para poder enfrentar com alguma possibilidade de êxito aquele eixo. O documento estima que a realização desse processo não será concluída antes de 2026. Para estar pronto para combater com êxito até essa data, o documento considera urgente executar a estratégica nacional em três direções que definirei brevemente da seguinte maneira: 1) a modernização acelerada do “desenho tecnológico” do Complexo Industrial Militar, viciado no ânimo de lucro mais do que nas necessidades de combate; 2) a adequação à guerra contemporânea da Forma da Força nacional: que tipo de guerreiro, com que armamento e com que estrutura de mando vencerá essa guerra, e; 3) a concepção de uma ação diplomática que opere eficientemente pelas linhas exteriores, com o auxílio da mídia corporativa internacional, com o objetivo de consolidar aliados e impedir a formação de alianças por parte do “inimigo”. 

A guerra que nos espera?

Pode ser que seja apenas uma justificativa para aumentar o já polpudo orçamento para a defesa dos EUA, mas, literalmente, este documento é a profecia da catástrofe humana; se for levado em conta, a caminhada para sua realização terá começado. Seu fundamento metafísico é a inevitabilidade da próxima guerra. A saída é baseada na mística do guerreiro como solução de todos os males. Esse fundamento e sua saída foram discutidos por Wright Mills[2] numa situação análoga, na metade do século passado. A inevitabilidade corresponde ao que ele chama de “destino sociológico”, no qual um número grande de vontades torna impossível prever o resultado da deliberação. No entanto, naquele momento de Mills, e ainda mais agora no nosso, a guerra depende de pouquíssimas vontades se estas forem políticas e vocacionadas para a paz, mas, caso sejam atropeladas pela “mística guerreira”, todas as questões serão consideradas, invertendo a frase de Clemenceau – “demasiado sérias para deixá-las nas mãos dos políticos” –, e o resultado será catastrófico. Tanto a inevitabilidade quanto a solução militar são falácias das quais se vale o capital, insensível ao horror que já estamos vendo em Gaza e que pode ser rapidamente globalizado. O crescimento chinês requer um mercado em paz e não de guerra. A sociedade internacional deve se mobilizar para deter a tempo essa loucura, porque dessa guerra, a qual se refere a profecia da Estratégia de Defesa estadunidense, não sobrará ninguém para comemorar a vitória.


Notas:
[1]  Inauguramos este conceito em “As guerras na Ucrânia”, in Opera Mundi (07/03/2024) https://operamundi.uol.com.br/opiniao/as-guerras-na-ucrania/

[2]  MILLS, W.C.: THE CAUSES OF WORLD WAR THREE. London. SECKER & WARBURG. 1959.