Hoje em dia não se fala tanto em globalização, pois as palavras da moda são outras (resiliência; antropoceno…). Mas há não muito tempo era impossível fazer um argumento sobre algum tema internacional sem considerar a tal globalização, fosse para celebrá-la, como os neoliberais, para resignadamente lamentar suas imposições, como feito pelos social-democratas, ou, finalmente, para contestá-la frontalmente, como faziam os movimentos sociais, partidos de esquerda, sindicatos, todo tipo de militante ou ato contra-hegemônico que a mídia rapidamente rotulava de protestos “antiglobalização”. De Seattle a Porto Alegre, tentava-se mostrar que um outro mundo é possível, conclamando-nos a nós próprios, como diz o lema da Via Campesina, a que globalizemos a luta, globalizemos a esperança.
Ora, não é preciso ter boa memória para conseguir lembrar dos protestos emblemáticos que aconteciam a cada reunião de cúpula de chefes de Estado, inicialmente do G7, ou durante os encontros da Organização Mundial do Comércio, Fóruns Econômicos Mundiais, do Fundo Monetário Internacional, Cúpulas das Américas ou congêneres. Do lado de fora destes eventos oficiais, a resistência popular fazia-se sempre presente, denunciando a hipocrisia das negociações a portas fechadas e impondo sua própria agenda por sobre a dos líderes estatais, via de regra avessos a escutar as vozes das ruas.
O mesmo se dava por ocasião das Conferências das Partes sobre o Clima (COPs) da ONU, que sempre contaram com vozes contestadoras de suas “falsas soluções” para a crise climática. As Cúpulas dos ricos e poderosos sempre tiveram suas contrafaces populares.
No Brasil, um grande exemplo desta verdadeira tecnologia de luta batizada de “Cúpula dos Povos” (em contraposição às reuniões de cúpula dos governos e empresários) deu-se durante a Conferência das Nações Unidas Sobre Desenvolvimento Sustentável, conhecida como Rio+20, que encheu as ruas do Rio de Janeiro em junho de 2012, numa das manifestações mais marcantes da história política da cidade, com mais de 80 mil pessoas dizendo não à “Economia Verde” e demais engodos neoliberais infelizmente endossados até por governos progressistas naquela altura.
Como recordar é viver, nunca é demais lembrar da Cúpula dos Povos de Mar del Plata, Argentina, em 2005, quando uma multidão liderada pelo comandante Hugo Chávez e pelo astro Diego Maradona conseguiu fazer tanta pressão política que o projeto estadunidense de uma Área de Livre Comércio na América Latina (ALCA) foi derrotado. As Cúpulas dos Povos nem sempre conseguem barrar as negociatas oficiais, mas o saldo político é invariavelmente positivo em termos de mobilização, formação, conscientização e organização popular. Tratam-se de esboços, decerto pontuais e fragmentários, porém importantíssimos, de articulações populares transnacionais, tão importantes quanto difíceis de forjar na era das interconexões globais de fluxos de capital, mercadorias e (algumas) informações – mas não de pessoas e práticas de luta.
Pois bem, hoje não se fala tanto em globalização. Mas ninguém duvida que a integração capitalista mundial segue em curso, até mesmo diante de conflitos sérios entre as grandes potências: a Europa, por exemplo, continua comprando gás russo, revendido por firmas indianas, apesar de todo o conflito na Ucrânia e da retórica russofóbica europeia acerca de sua pretensa (eterna) superioridade civilizacional contra povos atrasados, autoritários, bárbaros…[1] Mesmo sem o rótulo de “antiglobalização”, nossa luta comum em busca de uma “outra globalização”, “outro mundo”, “onde caibam muitos mundos”, segue tão importante como antes. Afinal, nossos inimigos seguem os mesmos e estão no poder, como dizia Cazuza, com o racismo, o patriarcado e o capitalismo imperialista em pleno vigor, apesar de toda a nossa luta em contrário.
Em poucas semanas, entre 15 e 17 de novembro, teremos a oportunidade de realizar mais uma Cúpula dos Povos no Brasil, desta vez por ocasião da reunião do G20 no Rio de Janeiro. Falsamente apresentado como “o grupo das vinte maiores economias do mundo” (seria ótimo se fosse verdade, diriam os argentinos!) este encontro na verdade representa um esforço do imperialismo estadunidense para manter sua hegemonia, ao mesmo tempo em que distribui custos de manutenção do sistema (capitalista) internacional. Apesar desta fake news diária sobre a membresia do G20, a atuação deste grupo informal, porém consolidado, não pode ser subestimada: desde a grande crise financeira de 2009, é o G20 que garante a transferência de recursos públicos para salvar as grandes corporações capitalistas das crises que elas mesmas provocam.
Infelizmente, os governos Lula e Dilma tiveram grande protagonismo na elevação do G20 a este papel, dando-lhe maior relevo político e legitimidade junto ao Sul global, de modo a não parecer que se trata de mais uma iniciativa de governança do capitalismo global pelos próprios capitalistas. Assim como na desastrada (e desastrosa) intervenção militar no Haiti, o tiro saiu novamente pela culatra e a tentativa de participar das engrenagens de poder mundial com a esperança de transformá-las terminou em fiasco, com a cooptação do imaginário de luta contra o imperialismo por uma suposta aliança com nossos algozes habituais, como se fossem, de repente, aliados: EUA, FMI, UE, OEA, OTAN e todas as sopas de letrinhas que aterrorizam e fazem engasgar a humanidade inteira.
Por isso, no próximo mês de novembro, é dever de todes, todas e todos os militantes que puderem estar no Rio de Janeiro somar-se à Cúpula dos Povos frente ao G20, que já tem realizado um processo de plenárias nacionais desde o início do ano com o intuito de nos formarmos politicamente para enfrentar as mentiras e falsas soluções que serão apresentadas pelo encontro oficial. Quem não puder ir à capital fluminense pode (e deve) organizar atividades em seus próprios espaços de atuação com os temas da Cúpula dos Povos, que são os verdadeiramente importante para nós: reparações pela dívida social e histórica, especialmente com os povos negros e indígenas; transformação da economia capitalista em uma economia feminista e solidária; o fim das políticas de austeridade, endividamento e privatizações, de modo a construir uma sociedade baseada no interesse dos povos em luta, com serviços públicos gratuitos e de qualidade; uma sociedade erguida sobre o poder popular, que é o significado original de democracia que fóruns antidemocráticos, elitistas e ilegítimos como o G20 tanto se esforçam para ocultar.
A criação de um “G20 Social” (sic!), por sinal, não passa disto: mais um esforço para nos silenciar. Por tudo isso, assim como em outras Cúpulas dos Povos, desta vez estaremos diante da mesma batalha globalizada: o mundo contra o G20. Escolha o seu lado!
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.