Sábado, 19 de abril de 2025
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Quando o ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), junto com 33 de seus aliados, por um plano que pretendia romper a ordem democrática do país e impor um golpe de Estado, a imprensa sul-coreana se deparou com uma espécie de déjà vu. Jornais tradicionais como Kyunghyang e Hankook Ilbo referiram-se ao político como “o Yoon Suk Yeol brasileiro”. 

O político que foi o principal adversário de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022 encara, na próxima terça-feira (25/03), o início do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que decidirá se ele se torna réu, em uma situação que se assemelha ao que vive o mandatário asiático, afastado do cargo, no outro lado do mundo.

Em ambos os cenários, existe um ponto em comum: a tentativa fracassada de golpe.

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Embora Yoon tenha recentemente sido solto da prisão por uma decisão do Tribunal Distrital de Seul, onde pemaneceu após ser acusado de pelos crimes de insurreição e abuso de poder no âmbito da decretação da lei marcial, em 3 de dezembro de 2024, ele segue aguardando o julgamento do Tribunal Constitucional, que analisa um pedido de impeachment aprovado na Assembleia Nacional. A expectativa é de um desfecho sobre este caso durante esta semana.

No caso brasileiro, uma denúncia de 272 páginas foi apresentada pelo procurador-geral Paulo Gonet em 18 de fevereiro detalhando as articulações de Bolsonaro e de seus aliados, as quais teriam tido seu início em meados de março de 2022, sete meses antes das eleições presidenciais daquele ano – nas quais o então candidato à reeleição seria derrotado por Lula.

O documento conclui que o ex-presidente tentou impor um golpe de Estado e abolir o Estado Democrático de Direito, a partir da conformação de uma organização criminosa, e outros crimes que, juridicamente falando, levariam a uma pena altíssima.

Não é mera coincidência que duas lideranças políticas que compartilham do mesmo viés ideológico foram equiparadas, apesar das diferenças contextuais. Chamam a atenção algumas das estratégias que foram usadas por ambos para a execução de seus respectivos planos. Em especial, as alegações de fraude eleitoral e o fomento de um sentimento contrário a uma suposta ameaça comunista.

‘Presidencialismo da confrontação’

Os dois líderes usaram alegações de irregularidades nas urnas eletrônicas para questionar a legitimidade dos processos eleitorais. A denúncia da PGR menciona algumas datas em que Bolsonaro teria atacado o sistema de votação para se blindar de uma possível vitória eleitoral de Lula.

Em 29 de julho de 2022, pouco antes do pleito, o ex-presidente fez uma transmissão ao vivo das dependências do Palácio do Planalto, em Brasília, criticando o funcionamento das urnas. Em 10 de agosto daquele ano, mesmo com a decisão da Câmara de manter a votação digital, o ultradireitista insistiu em atacar o sistema. Um ano antes, nas manifestações de 7 de setembro de 2021, na Avenida Paulista, em São Paulo, Bolsonaro fez um discurso no qual “deu a conhecer seu propósito de não mais se submeter às deliberações provenientes da Suprema Corte, confiado no apoio que teria das Forças Armadas”, segundo o documento.

Com a aproximação das eleições presidenciais, os ataques ao sistema de votação foram intensificados, com acusações infundadas sobre supostas vulnerabilidades das urnas e fraude eleitoral.

A Opera Mundi, o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mencionou o termo “presidencialismo de confrontação” para explicar o comportamento adotado por Bolsonaro ao longo de seus quatro anos de mandato.

“Bolsonaro começou atacando a velha política e ela foi encarnada na figura do Rodrigo Maia, [então] presidente da Câmara. Depois passou a atacar os jornalistas, a mídia tradicional, cientistas, intelectuais, professores, universidades, até que veio uma pandemia. E nessa pandemia, Bolsonaro foca esse presidencialismo de confrontação atacando a ciência”, explicou.

Superada a pandemia, o especialista aponta que Bolsonaro passa a atacar “com muita força” o sistema eleitoral e os ministros do STF. 

“O sentido de vida do bolsonarismo no espectro político é o confronto, é o constante ataque. Se formos ver, de uma maneira paralela, o [estrategista norte-americano] Steve Bannon acabou fazendo com que o [presidente dos Estados Unidos Donald] Trump usasse a mesma tática, que é a ideia de inundar o debate público com questões que geram comportamentos e sentimentos de estranheza, de ódio, de repulsa, porque a extrema direita sabe que esses elementos que mobilizam os sentimentos ganham tração e compartilhamento, especialmente nas redes sociais”, afirmou.

Presidência da República do Brasil/Sede Presidencial da Coreia do Sul
Do lado esquerdo, ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro; do lado direito, presidente afastado da Coreia do Sul

Por outro lado, o presidente afastado da Coreia do Sul, que tem adotado uma posição de linha dura contra países como a Coreia do Norte e a China, atacando o “comunismo” para defender seus interesses políticos e associando o assunto à suposta fraude eleitoral no país. 

Em 11 de fevereiro, durante uma audiência na Corte para o julgamento do impeachment, a defesa de Yoon mencionou, sem provas, que “a China usa muitas manobras políticas para interferir nas eleições de outros países”, sobretudo a própria nação sul-coreana.

Analistas locais avaliam que o mandatário asiático tem tentado, durante sua situação politicamente vulnerável, formular teorias da conspiração para reunir apoio incitando sentimentos de ódio contra a China e a Coreia do Norte. Dessa forma, seu governo buscava aumentar a legitimidade da declaração da lei marcial.

A professora da Universidade Católica de Daegu e doutora em Ciência Política, Lim Sujin, explicou a Opera Mundi que as divergências ideológicas e questões de segurança referentes à Coreia do Norte configuram tradicionalmente os tópicos mais importantes nas eleições sul-coreanas. Enquanto o Partido do Poder Popular (sigla de Yoon) defende uma resposta linha-dura à Coreia do Norte, a oposição, representada pelo Partido Democrático da Coreia, prefere uma abordagem pacífica. 

De acordo com Lim, o depoimento de uma das figuras acusadas por envolvimento no evento de 3 de dezembro passado aponta que Yoon já vinha articulando a decretação da lei marcial desde o início de 2024. Para isso, o mandatário afastado, durante seu mandato, continuou batendo na tecla da ‘crença de uma suposta necessidade de salvar a nação do comunismo’”.

“O presidente sustentou alegações não verificadas de blogueiros e youtubers de extrema direita sobre ‘fraude eleitoral’ e ‘intervenção chinesa’. Ele seguiu uma política anti-China durante todo o seu mandato, até mesmo afirmando, durante a declaração da lei marcial, a existência de espiões chineses. A lei marcial não é resultado de uma teoria da conspiração que foi criada de repente. O presidente se preparou para ela há algum tempo, enquanto prometia ‘proteger a Coreia do Sul do comunismo’, ideia que foi propagada por grupos de extrema direita”, explicou.

Construção de inimigos

Durante os dois anos em que Bolsonaro e Trump coincidiram em seus mandatos (2020 e 2021), o brasileiro adotou uma política externa alinhada à do republicano. Aproveitou, ainda, para se aproximar de outros líderes conservadores, como por exemplo o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que anos depois seria responsável pelo massacre na Faixa de Gaza.

Nesse contexto, Bolsonaro seguiu um discurso crítico aos governos de esquerda, principalmente da América Latina, confrontando o “comunismo” de nações como Venezuela e Cuba.  

De acordo com Prando, é da natureza da extrema direita a necessidade de “construir inimigos”.

“Esse inimigo pode ser o estrangeiro, o jornalista, o intelectual ou, muitas vezes, o comunismo, os progressistas […] Tudo isso faz parte de uma estratégia muito bem delimitada, compartilhada e utilizada com bastante eficiência por vários líderes da extrema direita mundial. E Jair Bolsonaro, entre outros, utiliza muito desta técnica”, afirma.

Entre dezembro e janeiro, Opera Mundi esteve em Seul acompanhando os protestos favoráveis e contrários à permanência do presidente no Executivo. A reportagem verificou que nas manifestações pró-Yoon, havia uma semelhança no comportamento de seus apoiadores com o dos bolsonaristas. Ambas as categorias, embora de países distantes, estendiam bandeiras dos Estados Unidos e Israel, enquanto incitavam a violência aos grupos oposicionistas de resistência, chamando-os de “bbalgaeng-ih” (“vermelhinhos”, na tradução em português, termo usado por coreanos em tom pejorativo para se referir a “comunistas”).

Nas cidades brasileiras onde costumavam ser convocadas manifestações pró-Bolsonaro, era comum ver imagens parecidas com as descritas acima.

Segundo Prando, a compatibilidade nas ações entre ambos os grupos, apesar de compartilharem de culturas políticas distintas, deriva de uma “dissonância cognitiva” na qual as pessoas não se questionam. Ela é trazida por líderes mundiais por meio de discursos com ênfase na tentativa de corroer a democracia. 

“Existem elementos como, por exemplo, no campo religioso de grupos evangélicos que se sentem ligados a Israel. Isso a gente viu expresso aqui no Brasil, nas bandeiras. Quando o Trump começa a tarifar o mundo e você tem a defesa deste tipo de comportamento por bolsonaristas, há uma contradição. Como é que a pessoa se diz patriota e aí ela sai com as bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, inclusive apoia medidas do Trump que prejudicam o Brasil? Mas de novo, essas pessoas entram numa dissonância cognitiva e mesmo que a realidade mostre que elas estão equivocadas, elas reforçam cada vez mais as suas crenças e permanecem nelas de forma muito fiel”, explica o especialista.

Essa convicção de uma realidade alimentada entre os apoiadores de uma figura extremista ganha força e conexão em culturas políticas diferentes como Brasil e a Coreia do Sul, segundo Prando, especialmente por estarmos em uma sociedade hiperconectada. 

Por sua vez, a professora sul-coreana Lim destacou que, assim como Bolsonaro recebe apoio dos evangélicos, Yoon também recebe apoio das forças protestantes, embora criticados por alguns segmentos dentro do próprio protestantismo, por estarem “em desacordo com os valores cristãos”.

“Eles afirmam defenderem uma democracia ao estilo Trump. Quando Trump perdeu a última eleição presidencial, seus apoiadores invadiram o Capitólio e qualificaram os atos violentos como sendo legítimos dentro dos princípios da democracia norte-americana. Foi assim que surgiu a lógica da extrema direita: de que a violência é aceitável e que os comunistas podem ser espancados até a morte”, explicou a docente.

A especialista também relatou que parte dos cristãos sul-coreanos compartilham de um sentimento de “gratidão” aos norte-americanos. De acordo com eles, os Estados Unidos tiveram foram os responsáveis pela introdução do protestantismo na Coreia [do Sul] e da fé israelense, “um símbolo do protestantismo”. Nessa mesma lógica, Lim avalia que no caso do Brasil, “percebe-se que a religião intervém excessivamente na política, equiparando o anticomunismo norte-americano à democracia e ao protestantismo”.