De 18 a 24 de abril de 1955 reuniram-se em Bandung, na Indonésia, 29 governos e líderes de movimentos de libertação nacional da África e da Ásia. A atenção do encontro foi voltada para o fim do colonialismo europeu e, a partir deste ponto inicial, as resoluções anunciadas ao final se desdobraram num grande número de temas concernentes à política internacional no mundo pós-colonial.
Foi criado em 1955 um eixo de aglutinação de Estados Nacionais para além da bipolaridade em vigor na Europa havia dez anos. No momento do encontro em Bandung, esta disputa estava se espalhando para todo o planeta. Fato marcante nesta perspectiva foi a Guerra da Coreia (1950-1954) a primeira guerra da Guerra Fria. Esta nova união de países passou a privilegiar os interesses das jovens (e das futuras) nações na perspectiva destas serem independentes tanto das tradicionais potências coloniais quanto das novas superpotências. Neste último ponto deve-se realçar a proposta de neutralidade perante o conflito bipolar entre os dois blocos ideológicos, adotada como resolução final. Assim, sem deixar de ser uma ordem bipolar, as relações internacionais a partir daquele encontro passaram a conter as bases de uma possível ordem internacional tripolar. Esta estaria composta por dois blocos (capitalista e comunista) e um grupamento.
A formulação e implementação deste conjunto de propostas para inovações nas relações entre os Estados Nacionais estava àquela altura funcionando em plena marcha forçada, trazida pela Guerra Fria. Não se intimidando com este condicionante, o encontro acabou por produzir uma agenda sofisticada e capaz de impactar o sistema político internacional formado no imediato pós-Segunda Guerra Mundial. Este fora moldado por um número reduzido de países (muitos deles metrópoles coloniais) que não consideraram a eventualidade da descolonização e também, em virtude desta escassa representatividade, não produziram elementos para compor com os interesses de mais de cem países que se tornariam independentes ao longo dos vinte anos seguintes. É esta estrutura de normas, instituições e procedimentos de regulação das relações entre Estados Nacionais soberanos formada na década de 1940 que permanece em funcionamento com poucas modificações até os dias atuais.
O historiador René Rémond, em seu livro “O Século XX”[1] compreendeu a importância do fim do colonialismo, comparando-o em importância a duas revoluções: a francesa e a russa. Uma outra referência basilar para a compreensão do que estava se passando no sistema internacional da época foi a formulação do conceito “Terceiro Mundo”, dentro de uma elaboração teórica da existência de três mundos, criado pelo demógrafo francês Alfred Sauvy, em 1952.
Surgiu da histórica conferência o “espírito de Bandung”, meio pelo qual a “cortina colorida”, no dizer do jornalista norte-americano Richard Wright[2], iniciou uma forma de compreensão do papel deste novo ator coletivo. Este não se constituiu como um bloco econômico, uma federação ou confederação. Os países que dele fazem parte simplesmente se organizaram num grupamento político com o intuito de, a medida que a descolonização avançava, promover o desenvolvimento econômico, respeitar a soberania dos povos libertados e manter a paz.
Por este caminho foram produzidos dois movimentos organizativos concretos do Terceiro Mundo: o Movimento de Países Não-Alinhados e o G77. O primeiro de orientação política, como uma espécie de partido político, buscava contornar os problemas graves de segurança e manutenção da soberania dos jovens países em virtude da virulência da Guerra Fria. O segundo, de ordem econômica, como uma espécie de sindicato, instalado no interior da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), procurou defender os interesses materiais (basicamente comerciais) das economias dos países componentes do novo coletivo. Esta orientação estava pautada na lógica da indução da industrialização, argumentada como essencial para vencer o “colonialismo econômico”, substituto invisível do colonialismo político. Aqui o autor referencial que inaugurou este pensamento é Raul Prebrisch[3], que já em 1949 identificava os problemas econômicos da periferia capitalista e sua premente necessidade de industrialização.
A mescla de “não-alinhamento” com desenvolvimento econômico (industrialização) acabou por se impor na agenda internacional. Os países desenvolvidos e ex-metrópoles se incorporaram passivamente nestas duas orientações sem se comprometerem de forma clara e incisiva na operação destas duas agendas. Mesmo assim, entre 1955 e 1979 estes dois vetores de ação política foram ampliando seu raio de ação, incorporando incontinenti todos os países ex-colônias, pertencentes ao “triplo A” (Ásia, África e América Latina). Com todos os sobressaltos – em meio a vigorosas crises políticas, econômicas e militares – a agenda avançava. Na década de 1970 surge mais um elemento desta agenda: a proposta de formulação de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI). A crise macroeconômica que assolou o mundo desenvolvido promoveu dentro do grupamento a esperança de superar as dificuldades institucionais de acesso aos meios de promoção do desenvolvimento concomitante ao enfrentamento da crise econômica. A estratégia era, neste momento, enfrentar as limitações do Terceiro Mundo com uma aliança não escrita com o Segundo Mundo (bloco comunista). Ambos os “mundos” defendiam o direito que consideravam inerentes à sua existência: participar da (re)formulação de regras de funcionamento da economia internacional.
Em 1979, realiza-se em Havana a 6.a. Conferência do Movimento de Países Não-Alinhados. Ali são expostas com profundidade a força moral do grupamento. Todos os países presentes ao encontro, ainda referenciado no “espírito de Bandung”, quase unanimemente concordaram com as palavras de ordem lançadas por um país comunista da periferia, Cuba. Este defendeu com clareza e discernimento os pontos de vista do grupamento que representava, indicando que não haveria uma solução pacífica para os problemas estruturais que se apresentavam sem a incorporação dos interesses e direitos dos países do Terceiro Mundo nas estruturas de poder internacional e na divisão não espoliativa das riquezas produzidas pela economia mundial. Cuba se incorporou ao grupamento desgarrando-se do papel automático de ser um membro distanciado fisicamente do bloco comunista. Sendo assim, manteve a capacidade de pautar as palavras de ordem desta coletividade. O discurso de Fidel Castro, presidente eleito do Movimento de Países Não-Alinhados com um mandato de três anos, realizado na Assembleia Geral das Nações Unidas em outubro de 1979 (após a realização daquele evento), foi um depoimento contundente do papel que o Terceiro Mundo pretendia desempenhar. Suas palavras realmente chamaram a atenção dos ouvintes e dos governantes, tornando-se uma espécie de ponto máximo de desenvolvimento do pensamento desenvolvimentista do grupamento. O ideário apresentado no púlpito da AG da ONU continha um diagnóstico dos problemas e propostas de encaminhamento de questões concretas. Neste processo surge mais uma dimensão da proposta terceiro-mundista, fazendo literalmente uma rotação física de 180.o na agenda política internacional: a principal contradição/conflito do sistema internacional em crise naquela quadra não seria mais a luta ideológica representada no embate leste x oeste, mas a luta pelo desenvolvimento, o conflito norte x sul.
1979 marca o auge da projeção e ao mesmo tempo o início da crise do “terceiro mundismo”, da proposta da formulação da NOEI e da relevância do Movimento de Países Não-Alinhados. Desde o início da década de 1970, os países do Primeiro Mundo se organizaram para pautar uma nova agenda, via organizações não-governamentais, fora do alcance dos Estados Nacionais. Destacamos aqui, nesta direção, a Comissão Trilateral e o Fórum Econômico de Davos. Dentro destes think tanks a porção burguesa da sociedade civil dos países desenvolvidos, preocupados com a multidimensionalidade da crise que se apresentava sob a forma de uma “rebelião das periferias” capitalistas, se empenharam na construção de um novo consenso em torno dos seus interesses. Seu foco era a difusão de uma sua nova orientação de política econômica para criar consenso para as soluções para as crises econômica (de convergência macroeconômica, como diriam os economistas) e política (de insurgência social generalizada causada pela oposição a Guerra do Vietnã, contra a segregação racial nos EUA, da recusa da classe operária em participar da produção fordista de mercadorias, da força das agendas oriundas do Terceiro Mudo, entre outros).
Sinteticamente, indicamos que três pontos devem ser apontados para caracterizar o ano de 1979 como ponto de chegada (do terceiro-mundismo) e de partida (do neoliberalismo): a) a eclosão da Segunda Guerra Fria; b) o Choque dos Juros; e, c) as reformas estruturais do Estado, do processo produtivo e da relativização de direitos relacionados ao Estado de Bem Estar Social.
Por este caminho, rapidamente foi articulada uma espécie de “contra-revolução preventiva” do Primeiro Mundo contra os outros dois campos. A Guerra Irã x Iraque, o apoio aos mujahedins na luta contra invasão soviética no Afeganistão e o conflito Nicarágua x “Contras” foram alimentados por esta nova correlação de forças. O intuito deste novo pró-ativismo das potências desenvolvidas era de frear ao mesmo tempo tanto o avanço do comunismo quanto do terceiro-mundismo. Eles foram artificialmente igualados dentro desta ótica como práticas revolucionárias. Assim, reformas econômicas (sim, o Primeiro Mundo tornou-se reformista!) e guerra induzida e travada no interior do espaço físico dos adversários ideológicos ajudaram a formatar o altamente complexo processo de transformação radical das políticas públicas dos Estados. As reformas impuseram a redução do escopo de atuação do Estado como indutor da atividade econômica e consagrador de direitos sociais; este se transformou numa agência de defesa de interesses privados e promotor de oportunidades de lucro dilatado do capital privado.
Uma das principais “vítimas” desta nova correlação de forças foi a democracia política. Todos, absolutamente todos os elementos acima alinhados apontaram para o enfraquecimento generalizado dos partidos de esquerda, fossem eles reformadores ou revolucionários. Sindicatos, nacionalismo e/ou desenvolvimento econômico, industrialização, direitos sociais (entre eles o mais importante, o do emprego), continuísmo indiscriminado no poder de governos eleitos (principalmente os de direita), enfraquecimento da identidade coletiva da classe operária, entre outros elementos que funcionavam como orientação dos países do Terceiro Mundo, sucumbiram. A desmontagem da estrutura de poder e gestão econômica foi consagrada no fim da década de 1980, quando o fim da URSS e do bloco comunista sepultou o Segundo Mundo. Agora a “agenda” pública e política tinha passe absolutamente livre para conter outros elementos: ajuste fiscal, privatização, desregulamentação, combate ao déficit público, flexibilização dos contratos de trabalho, etc. Sob a batuta do capital livre de entraves para sua movimentação, foi construída a capacidade deste para impôr às políticas públicas normas de funcionamento exclusivamente econômica. Perdeu fôlego a dimensão da articulação política-economia para dar vida à elaboração das políticas públicas. Esta capacidade que o capitalismo monopolizado e altamente financeirizado adquiriu seria uma espécie de “vingança” intencional e articulada para demonstrar o fim do longo período de políticas macroeconômicas pró-ativas e de direitos assegurados pelas políticas públicas.
De roldão, a efetividade do poder simbólico e político do Terceiro Mundo cai exponencialmente. Na década de 1980, se constatava nos artigos e livros científicos que a expressão Terceiro Mundo no título passava a ter um concorrente: a globalização. Desde então, 1979 é a data referencial de início da crise, o grupamento Terceiro Mundo não encontrou meios materiais e imateriais de colocar em prática os diversos elementos componentes de uma realidade social que se transformava celeremente. Em 1982, a 7.a. Conferência do Movimento de Países Não-Alinhados, que foi transferida de Bagdá para Nova Déli. A nova sede foi adotada após o início da guerra do Irã contra o Iraque, já que o acordado em 1979 é que Bagdá seria o local de encontro da reunião. Pela primeira vez desde 1979, o Movimento de Países Não-Alinhados se reunia desde o último e histórico encontro. Nele já aparecem os sinais da crise de efetividade das teses terceiro-mundistas: houve uma discussão sobre a necessidade de que os países deveriam adotar o princípio ricardiano de que os Estados Nacionais do Terceiro Mundo deveriam buscar as “vantagens comparativas” na economia mundial para entabular o seu desenvolvimento econômico. Sinal dos tempos!
Será longo o silêncio e a inação das instituições do Terceiro Mundo desde então. Elas sobreviveram, mas não possuíam mais nem a força nem as suas propostas eram tangíveis. Somente em 2001 surge um novo caminho, os BRICs. O acrônimo foi formulado por um funcionário da banca privada, o economista Jim O’Neill, do banco de investimentos Goldman Sachs. Ele utilizou o mercado como norteador da sua análise, conjugando um princípio da geopolítica para descrever as “baleias” que ofereciam possibilidades para investidores europeus e norte-americanos para a maximização da compra de ativos financeiros baseados na dívida pública e ações de empresas privadas ou públicas (em processo de privatização). O’Neill passou para a História num patamar equivalente (se bem que invertido do ponto de vista dos objetivos a serem defendidos e da ideologia necessária para implementar as reformas) ao demógrafo francês Jacques Sauvy. A formulação do economista norte-americano batizou um novo grupamento, mas não podemos afirmar que foi a sua intervenção a causadora da busca pelos seus participantes de um recomeço da proposta terceiro-mundista. Agora a denominação do antigo Terceiro Mundo mudou, passando a se chamar “Sul Global”.
O importante neste processo de retomada é não perder a dimensão exata de continuidade (a partir de 2001) que sucede uma ruptura (iniciada em 1979). Importante também é dimensionar as novas condições de composição deste grupamento. A primeira, e fundamental, é o fato de haver uma base material que propicia projetos comuns. No antigo Terceiro Mundo não foram estabelecidos mecanismos consistentes para qualquer operação econômica de vulto que promovesse o desenvolvimento econômico, o que tornava seus componentes apenas acessíveis para fazer lobby junto ao grande público dos países desenvolvidos (além do próprio público interno de seus próprios países) para obrigar moralmente a mudança de direção da economia mundial. A segunda condição é que o que fornece agora a base material e financeira para a projeção de poder geo-econômico do novo grupamento possui nome e sobrenome: China e Federação Russa. Possuindo base industrial ou energética para ofertar aos grandes consumidores, ambos países são portadores de aporte financeiro e produtivo para suportar uma mudança de paradigmas, principalmente o monetário. Aqui, não é segredo algum, a substituição do dólar norte-americano como moeda de troca universal por uma moeda própria dos BRICS é o projeto mais ambicioso que está sendo elaborado.
Ambos os países, por caminhos distintos e muito próprios, não caíram no “conto do vigário” neoliberal. Adotaram ao longo de todo o tenebroso inverno político e econômico de triunfo das regras de mercado livre legitimadas pelo “pensamento único” inúmeras políticas pró-ativas de suporte à infraestrutura produtiva e de defesa da sua soberania. Também não descuraram de direitos sociais básicos da classe trabalhadora, como saúde, educação, habitação, transporte público, manutenção do nível de renda e consumo da população, etc.
Daí fica uma dúvida: seriam os dois principais próceres do BRICS candidatos a exercerem funções imperiais junto aos demais parceiros? Não temos condições de argumentar neste momento, mas indicamos que não é este o caso.
De 22 a 24 de outubro de 2024 reuniu-se na Federação Russa, na cidade de Kazan, a XVI Cúpula do BRICS. Aqui foram tomadas decisões cruciais para o destino do grupamento e de todo o legado do “espírito de Bandung”. O BRICS como grupamento já se organizou há vários anos, mas agora, face ao ressurgimento econômico e político internacional da Federação Russa e ao vibrante sucesso e estabilidade política da República Popular da China, é chegada a hora dos membros iniciais darem um salto qualitativo e quantitativo na sua organização. Sua posição neste momento de ampliação do número de participantes do já ampliado BRICS + (Brasil, Rússia, China, África do Sul, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos), incorporando novos membros parceiros, é razoavelmente parecida com a da década de 1970, quando predominou a ideia da necessidade de formulação da NOEI.
A Declaração de Kazan é clara. São três as metas desta organização neste delicado momento: segurança, desenvolvimento e multilateralismo. Trata-se de um amadurecimento pleno (ideológico e operacional) da mesma monta da declaração dos “Dez Pontos” aprovada ao final do encontro em Bandung. A reunião na cidade russa não é simplesmente um ponto de chegada de uma já longa caminhada na busca material de sobrevivência econômica soberana e de projeção de poder das ex-colônias. Trata-se sim do início de uma nova jornada: a implementação das bases de transformação da política mundial em busca da equalização do poder dos Estados Nacionais através da democracia e do multilateralismo. Entre semelhanças e especificidades, o movimento “anti-sistêmico” de Kazan, de confronto com o poder neocolonial, é o mesmo que os vinte e nove representantes do mundo afro-asiático tiveram contra o colonialismo europeu em Bandung.
O único grande problema que indicamos como risco de inviabilização desta perspectiva é a contínua tentativa das ex-metrópoles e EUA em criar a inevitabilidade do recurso da guerra para resolver disputas comerciais e políticas com adversários. Indiscutivelmente, as diferenças entre a promissora aliança dos BRICS com o G77 ou os aderentes da proposta da formulação da Nova Ordem Econômica Internacional, está no fato de que o novo modelo associativo é competitivo com as antigas metrópoles capitalistas. Não se trata de uma disputa ideológica (muito embora ela não esteja ausente), mas de uma competição clássica por conquista de mercados inerente ao funcionamento do modo de produção capitalista.
A ameaça de guerra já se descortina no horizonte. Ela está em pleno funcionamento em dois importantes sítios que envolvem membros dos BRICS, a Ucrânia (envolvendo a Federação Russa) e o Oriente Médio (ameaçando atingir a República Islâmica do Irã, membro incorporado ao grupamento). Se o BRICS ampliado em Kazan for entendido (e parece ser esta a direção dos fatos) como sendo um bloco com potencial força de superação das limitações do neocolonialismo europeu e norte-americano, estaremos frente à formatação da “alma” das guerras desde a 1.a. Guerra Mundial: a bi-polarização, ou seja, a formação de dois blocos de países em disputas pela “divisão e redivisão de colônias e áreas de influência”, na análise de Vladimir Ilitch Lenin.
Este contexto, temido como sendo a eventual 3.a. Guerra Mundial, só se consolidará com o aumento da capacidade produtiva industrial das ex-metrópoles e EUA, principalmente deste último. A vitória eleitoral de Donald Trump indica que sua ambição reindustrializante e sua posição visceralmente anti-China poderá servir de base para se contrapor à capacidade produtiva dos países componentes do BRICS. A análise deste embate ficará para outros artigos aqui neste Opera Mundi.
(*) Bernardo Kocher é Professor História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF)