Recentes acontecimentos na corrida tecnológica entre EUA e China, e portanto também pela disputa política e econômica, tiveram grande repercussão global. Não é para menos: após um espetáculo ritualístico na posse de Trump, reunindo o capital tecnológico digital representado pelas figuras mais abjetas, com direito a gesto nazista de Elon Musk; e após o anúncio do investimento de meio trilhão de dólares na indústria de IA, o lançamento do DeepSeek-R1, um LLM (assistente IA do tipo ChatGPT) chinês de código aberto, impactou fortemente o mercado. Mas, por quê?
Vamos começar pelo seguinte: é notório o papel cada vez mais central das Big Techs na economia e desorganização social, cultural e política do globo, especialmente pela hegemonia de oligopólios estadunidenses (Meta, OpenAi, Google, etc). Com a centralidade econômica e política cada vez maior dessas tecnologias, intensifica-se uma corrida entre EUA e China que desencadeia diversas retaliações e boicotes – tanto o imbróglio com plataformas como o TikTok, que precede a administração de Trump, quanto a restrição de três anos contra o setor de semicondutores da China, o que levou à investigação da Nvidia por violação das leis antimonopólio do país. As unidades de processamento gráfico da Nvidia, comparados com seus concorrentes, são atualmente os melhores para IAs, por processarem de modo mais eficiente grandes quantidades de dados – algo fundamental para o aprendizado de máquinas –, o que levou ao boicote para combate do desenvolvimento chines na área; e até mesmo a operações militares por parte da China para adquirí-los.
Essa aposta bruta em hardware e seus custos operacionais é o que levou, por exemplo, aos extremos consumos de água e energia para grandes data centers, e a projetos como o de investimento em matrizes energéticas nucleares por parte de gigantes do Capital tecnológico estadunidense. Frente às limitações impostas pelos recursos disponíveis, a startup chinesa DeepSeek, fundada em 2023 por Liang Wenfeng (do hedge fund High-Flyer, especializado em IA) inovou, investindo em outra perspectiva de desenvolvimento: precisaram ser mais produtivos com o hardware disponível, e mais criativos com sua arquitetura de IAs. Com menos recursos brutos para processamento de BigData, a aposta não foi na expansão de Data Centers cada vez maiores, mas no melhor aproveitamento dos recursos disponíveis, o que resultou em um salto formal na programação: “eles compensaram o hardware com softwares melhores”, como bem sintetizou Marlus Araújo, um amigo designer, em uma conversa.

Observamos o sucesso dessa estratégia na medida em que, por exemplo, o DeepSeek foi capaz de treinar seu modelo de linguagem com 10% do valor utilizado para o ChatGPT, além de gerar uma economia de 95% (no consumo de tokens) para o usuário final, o que fez com que o aplicativo ultrapassasse o ChatGPT em número de downloads gratuitos da Apple estadunidense, além de causar um efeito evidente na economia: as bolsas Nasdaq e S&P 500 fecharam em queda após a retroação sobre as ações da Nvidia, que encolheram 17% (um tombo de aproximadamente US$ 600 bilhões), o que nos dá uma importante perspectiva sobre a atual dinâmica entre geopolítica global, tecnologia e capital especulativo/fictício.
Vale notar que seu lançamento foi praticamente simultâneo ao anúncio na Casa Branca de um investimento de meio trilhão de dólares para o desenvolvimento de IAs, aparecendo para o público geral apenas uma semana depois – e tirando das Big Techs norte-americanas US$ 1 trilhão em valor de mercado na segunda feira (27/01), mesmo tendo sido desenvolvido como projeto secundário e com um orçamento de US$5,5 milhões. O lançamento do modelo R1 foi visto como resposta ao anúncio de investimento por Trump, mas vale notar que pode ter ocorrido justamente o contrário: o anúncio de Trump que foi uma tentativa atrapalhada, para não dizer desesperada, de antecipação e amortecimento do impacto causado pelo lançamento da startup chinesa, tendo em vista a atenção que obteve em Davos, antes do pronunciamento de Trump. Em artigo recente, sugeri que a convergência entre Big Techs estadunidenses e o governo Trump indicava uma tendência do capital; hoje, podemos perceber que essa tendência é efeito de um tensionamento global que ameaçou gigantes capitalistas – e é notório o que tais capitalistas se tornam quando ameaçados.
Os efeitos políticos e culturais desse acontecimento ainda estão em fase de desdobramento e já começam a ser especulados. O efeito econômico, entretanto, é patente, e as oscilações da Bolsa são apenas um sinal disso: o DeepSeek retroage sobre todas as expectativas aparentemente consolidadas quanto aos custos financeiros e infra-estruturais, energéticos e técnicos e, assim também, políticos e sociais no desenvolvimento de IAs. Na marcha da digitalização, evolui melhor a bateria com melhor harmonia e ritmo, e não necessariamente a que gasta mais em seus instrumentos.
Trata-se do princípio de redução dos gastos, antes de tudo, e, somando-se a isso à sua disponibilidade em código aberto, trata-se também de uma “revolução cultural” (com o perdão do trocadilho) desde as disputas no setor: impõe-se assim, por princípios básicos de mercado, uma nova cultura para os desenvolvedores da área: temos uma disputa econômica que é cultural e, por fim, efeitos culturais que repercutem diretamente na economia. Quais serão os efeitos culturais de um LLM com código aberto e 95% mais baratos, não sabemos. Mas parecem menos concentrados e homogeneizantes do que aqueles pretendidos pelas gigantes dos EUA. Ironicamente, o “mindset disruptivo”, tão defendido pelo liberalismo ocidental, veio da China.
O que possibilitou tal salto, entretanto, não foram simplesmente as tentativas de boicote, mas uma política nacional de investimento em pesquisas no setor, gerando um sinal vermelho (novamente, a ironia) para os defensores das sanções clássicas do imperialismo norteamericano: nem elas foram capazes de barrar essa mudança paradigmática. O episódio também revela a necessidade de recalibrarmos nossas teorias: soluções como Mixture-of-Experts Architecture (MoE), que economiza recursos computacionais, e Multi-Head Latent Attention (MLA), melhorando a capacidade dos modelos de processar dados e identificar padrões complexos, apontam para uma crítica da primazia absoluta de hardwares frente a certa autonomia relativa – e, como visto, extremamente eficaz – do desenvolvimento de softwares.
Vemos como a criação formal, lógico-matemática, das arquiteturas computacionais revela-se (novamente) a chave para seu avanço tecnológico frente ao horizonte (político)econômico do nosso tempo. Ao refletir sobre o entorno tecnológico da digitalização, aquilo que chama de “mundo codificado”, Vilém Flusser [1] insiste no caráter imaterial das informações “que invadem e cercam nosso mundo” e no perigo da “ilusão existencial” de acreditar que essas “não coisas” estão inscritas nas coisas – nesse caso, nos hardwares. Apesar desse suporte material ser necessário aos softwares, seu potencial é subordinado a eles; o que não deveria pressupor uma superação das condições materiais de desenvolvimento tecnológico, mas uma compreensão dos efeitos materiais provindos dessa dimensão inapreensível, imaterial.
Junto à abstração do trabalho, precisamos considerar também o que podemos chamar, por efeito, de trabalho da abstração – não apenas a abstração real que subsiste na troca de mercadorias, mas também o caráter central da formalização abstrata tão cara ao desenvolvimento das tecnologias, quanto à valorização — e, no caso recente, desvalorização — das chamadas Big Techs. Desde o final do século XIX e especialmente na primeira metade do século XX, vemos como Ciência e Capital passam a operar de forma co-determinante; com os processos que tomam conta do nosso século, as abstrações lógico-formais se revelam no cerne do desenvolvimento das tecnologias digitais e em suas disputas globais. Talvez seja um bom momento para repensarmos o estatuto das abstrações lógicas e matemáticas, não só para compreendermos os processos econômicos globais, mas também para concebermos uma política à altura do nosso tempo.
(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos — como o de Introdução a Lacan pelo estruturalismo e a teoria social, com início no dia 11/02/2025.
Referências:
[1] FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Ubu Editora LTDA-ME, 2018.