A morte pode ser libertadora. Mas também pode nos amarrar ao passado. Será que precisamos mesmo lamentar perdas como a de Silvio Santos e Delfim Netto?
Vou começar por Delfim, que partiu antes, na segunda-feira. Mas chegarei em Silvio Santos.
Ao contrário do muito que se elogiou nesta semana, de certo modo o melhor de Delfim Netto era a piada do ministro da Agricultura (do presidente João Batista Figueiredo, o último militar a presidir o país, por seis longuíssimos anos, de 1979 a 1985) que mandava na economia toda. Jô Soares o eternizou como Doutor Sardinha, que até aparece no documentário da Globo sobre o apresentador, mas misteriosamente não se encontra no Youtube.
Figueiredo, o presidente que gostava de cheirar cavalo, não escondia que esse país era uma grande fazenda, e não podendo nomear Delfim ministro da Fazenda, por pressões políticas conjunturais, o fez da Agricultura.
Primeiro na Agricultura, depois no Planejamento, Delfim Netto era uma espécie de Paulo Guedes que colecionava relatórios e livros (de fato, a doação que ele fez de sua biblioteca de 250 mil volumes para Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo é um legado), mas também uma prova de que elite brasileira sempre foi ruim, mas podia piorar.
Delfim Netto era um estudioso e relativamente capaz economista, muito mais efetivo, na prática, que contemporâneos como Roberto Campos e Mario Henrique Simonsen, mas convém não exagerar nas suas habilidades. Roberto Campos avô foi um campeão na defesa do empreendedorismo que fracassou fragorosamente na direção da única empresa privada que comandou. Simonsen, ministro da Fazenda de Ernesto Geisel (1974-1979) e do Planejamento de Figueiredo, era um liberal teórico que, como outros “gestores” do regime militar, entregou o país com mais inflação e confusão do que recebeu.
Delfim tinha sido ministro da Fazenda do presidente Costa e Silva (1967-1969), da Junta Militar (1969) e de Emílio Gazzastazu Mécidi (1969-1974), foi o “Czar da Economia” da ditadura militar, que nunca controlou a inflação e nunca desenvolveu o país com projetos de longa duração. Foi também o ministro civil que achou que o Ato Institucional número 5 era “insuficiente” para o regime – queria ainda mais poder nas mãos dos militares. Um político, como se vê, sem limites.
Como economista foi talvez o melhor administrador dos “voos de galinha” da ditadura que poluía o rio e dizia que as pessoas precisavam aprender a pescar. Delfim também era o braço econômico que permitiu à ditadura comprar pianolas e paus-de-arara. Organizou o caixinha de empresários para montar a Oban (Operação Bandeirantes) e o DOI-Codi que mataram tantos comunistas, progressistas e desavisados. Nunca foi julgado, como aliás seus chefes de coturno.
Delfim esteve no alvo de organizações da luta armada durante os anos 1970, mas as oportunidades de justiçá-lo não se materializaram. Adulterava as atas da inflação, mas a direita da época viria a acusar Lula de fazer isso quando o PT chegou ao poder. Não foi só o Produto Interno Bruto, o PIB, que aumentou sob sua gestão econômica: também a mortalidade infantil e geral, como se não existisse vacina ou antibiótico, revelando a perversidade do país em que o bolo crescia enquanto o povo apanhava.
Lula tinha simpatia por Delfim, simpatia pouco explicável, mas talvez instrumental para o concerto do qual foi maestro de 2003 a 2010. Mas o fato é que Delfim foi um grande traficante de influências, que salvou empresas de crises com informações de bastidores do governo, distribuiu cargos a alunos e ganhou simpatia eterna e elogios póstumos.
Delfim Netto não é alguém de quem o Brasil possa se orgulhar ou a quem deva agradecer especialmente, ainda que por razões pontuais. Fez mais mal do que bem e, como diz a canção portuguesa, o seu bem fez-nos tão mal.
Silvio Santos não é muito diferente. Com o programa “O Dia do Presidente”, voltado para enaltecer o dia a dia de Figueiredo, retribuiu o presente que a ditadura lhe deu, a concessão de um canal de televisão, a TVS, depois SBT, Sistema Brasileiro de Televisão.
Tornou-se assim o maior bajulador da ditadura militar, e nunca escondeu isso, nem se envergonhou disso. Vinha de baixo, valorizava seus tempos de camelô, mas foi vendendo produtos de baixa qualidade, com preços altos e juros invertidos – as pessoas “financiavam” antecipadamente o que receberiam depois de meses pagando carnê e rendendo juros para o patrão – que fez sua fortuna, no Baú da Felicidade.
Muito antes do Jogo do Tigrinho, inventou a Telesena, burlando as regras que proibiam a gestão privada de jogos no Brasil e afirmando, na televisão, uma absurda fake news: “ouro vale mais que dinheiro”.
Silvio Santos assediava cantoras e atrizes ao vivo aos domingos no “Qual é a Música”, maltrava crianças no “Passa ou Repassa”, humilhava calouros em seu show e fazia os pobres se atracarem por aviõezinhos de dinheiro… Era entretenimento, e eu seria hipócrita se dissesse que nunca me distraiu ou que eu me recusava a assisti-lo, embora em geral não o fizesse sozinho, mas com pessoas que gostavam mais dele do que eu.
Silvio Santos é o mentor intelectual e o financiador de algumas das piores experiências do jornalismo televisivo como “O Povo na TV”, que “revelou” para o país Roberto Jefferson, o político bolsonarista que recebeu a Polícia Federal à bala, e o “Aqui, Agora”. Paro aqui, mas a lista seria interminável.
Todo mundo tem seu lado bom, alguém pode dizer por aí. Sim, mas o inverso também é verdadeiro. Não é razoável que vidas que amplificaram ou mesmo construíram a violência, a exploração e a pobreza de milhões de brasileiros sejam lembradas apenas por suas supostas qualidades, enquanto os fatos mais terríveis de suas trajetória são varridos para baixo do tapete.
Como jornalista e cidadão, neste momento, não consigo deixar de expressar aqui minhas condolências aos brasileiros que tanto sofreram por conta da ação de Delfim Netto e Silvio Santos.