A vida é como uma vela acesa ao vento
– Provérbio popular português
1 – Não se pode ser internacionalista pela metade. O “nacionalismo da URSS” ou estalinismo não deve ser confundido com o internacionalismo, e merece ser denominado de campismo socialista. A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que os seus regimes políticos fossem aberrações burocráticas, um híbrido histórico, necessariamente transitório, colocou a esquerda internacionalista, no pós-guerra, em uma situação paradoxal e desconcertante. Deveria defender a natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista. Mas, ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores pelas liberdades democráticas. Ou seja, uma defesa condicionada ao signo de classe do conflito. Algo muito mais complexo do que uma defesa incondicional ou uma oposição incondicional. A oscilação do pêndulo foi sempre muito complexa, originando desequilíbrios: estalinofilia ou estalinofobia. O mesmo problema político se coloca hoje face à Venezuela ou Cuba. A defesa de países independentes perante a agressão imperialista não desobriga da crítica contra seus regimes. O desafio é a análise concreta de qual é, em cada conjuntura, o maior perigo imediato para os trabalhadores. Porque nunca é possível lutar contra todos ao mesmo tempo. Os dilemas do internacionalismo são complicados. Mas só uma esquerda internacionalista é digna de futuro.
2 – A esquerda brasileira está dividida diante do desfecho das eleições na Venezuela. Mas quem se posiciona como internacionalista? Aqueles que defendem que houve fraude e exigem o reconhecimento da derrota de Maduro? Ou aqueles que condenam a ingerência norte-americana, através do apoio à oposição de extrema-direita liderada por Maria Corina? A esquerda já foi mais internacionalista. Mas pequenos desvios na teoria têm como consequência, invariavelmente, gigantescos erros na ação política. Em tempos passados, quase toda a esquerda compreendia as reivindicações de um programa nacional nos países periféricos que sofrem a opressão imperialista como progressiva. O nacionalismo nos países centrais é reacionário. Mas nos dependentes é progressivo. Porque o nacionalismo nos países centrais que dominam o mundo equivalia, e continua sendo indivisível, da defesa de um imperialismo contra outro, hoje dos EUA contra a China. Não por acaso a ideologia dominante, tanto em Washington quanto em Beijing, é o nacionalismo. Reduzir o conflito na Venezuela, unicamente a uma luta pela democracia contra uma ditadura significa obscurecer que, nos últimos cinco anos, o país foi penalizado pelos EUA com sanções econômicas que respondiam a uma estratégia de fomentação de um levante contra o governo. Esta estratégia fracassou, porque o governo não foi deslocado, mas só parcialmente. Deixou o governo Maduro muito fragilizado. A alternativa na Venezuela não é entre democracia e ditadura. Infelizmente, é entre independência nacional ou recolonização.
3 – O nacionalismo em Israel, um país imperialista associado, é reacionário, mas na Cisjordânia palestina, uma nação oprimida, é progressivo. A esquerda deve apoiar a luta nacionalista nos países periféricos e, ao memo tempo, denunciar as ambições nacionalistas nos países centrais, ou seja, ser anti-imperialista. O regime do Hamas em Gaza era uma ditadura teocrática. Em Israel, o regime sionista assume a forma de uma democracia-liberal. A guerra começou com um ataque do Hamas contra Israel que atingiu alvos não militares, algo que a tradição socialista não aprova. Mas isso não deve inibir a esquerda mundial de denunciar, incansavelmente, a ofensiva genocida de Israel na Faixa de Gaza. Defender o povo palestino não é o mesmo que oferecer apoio político à direção do Hamas. A forma democrática do regime sionista e a forma ditatorial do regime do Hamas não podem ser o fator qualitativo na definição de quem apoiamos. A alternativa não é entre democracia sionista e ditadura palestina. A alternativa é entre limpeza étnica genocida ou Estado Palestino. O mesmo critério deve nos orientar face à Venezuela. Isso significa, em coerência, defender a Venezuela contra o perigo de uma guerra civil, se acontecer uma divisão das Forças Armadas incentivada pelos EUA, independentemente de uma posição energicamente crítica em relação ao governo Maduro.
4 – O mundo ficou muito mais perigoso nos últimos dez anos. A guerra na Ucrânia não pode ser reduzida a uma luta entre uma nação oprimida e uma Rússia imperialista. Ainda que tenha uma dupla natureza, porque a Ucrânia é um país periférico, o que prevaleceu foi a ofensiva da OTAN contra Moscou, ou seja, uma guerra inter-imperialista, porque Kiev renunciou à independência, e aceitou a condição de semicolônia dos EUA. Como na I Guerra Mundial não fazia sentido para os socialistas apoiar qualquer dos blocos imperialistas, fosse ele o anglo-francês ou o germânico-austríaco, nem a vitória da Rússia nem a da Ucrânia terão um sentido progressivo. A política socialista justa era o derrotismo revolucionário. Não por acaso, há internacionalistas presos por Zelensky em Kiev, e por Putin em Moscou.
5 – O nacionalismo exaltado é hoje o vocabulário da extrema direita em escala mundial. MAGA (Make America Great Again) é o bordão de Trump nos EUA. “Brasil acima de tudo” foi um dos slogans que levou Bolsonaro à vitória eleitoral em 2018. Fórmulas semelhantes, associadas a palavras de ordem racistas e xenófobas, foram usadas para defender o Brexit no Reino Unido, turbinar neofascistas, entre outros países, na Holanda e na Bélgica, e variações embalaram a reeleição de Putin na Rússia e Modi na Índia. Este discurso tem uma história. O nacionalismo é a ideologia do Estado-Nação. Ela nos remete a uma tradição ideológica que nasceu com a revolução francesa no século XVIII. Conquistou peso político de massas na Europa, em disputa contra o liberalismo e o socialismo, nas últimas décadas do século XIX. O nacionalismo foi a ideologia que, em distintas versões, garantiu a legitimação dos imperialismos modernos. E conduziu a humanidade à beira do abismo da destruição da vida civilizada, em guerras totais, por duas vezes no século XX. A força do conceito de nação na percepção burguesa do mundo residia na ideia que o Estado deveria ser a “expressão de um povo”. E cada povo teria uma tradição própria, um caráter singular e um destino único. Portanto, alguns povos ou até raças, como então se dizia, seriam superiores e outros inferiores. Quanto mais exaltado o nacionalismo, mais formidável seria sua história, mais extraordinário o seu caráter, e mais grandioso o seu destino. O nacionalismo dos países centrais sempre foi racista e reacionário. A versão extremista contrarrevolucionária foi o nazifascismo.
6 – O marxismo sempre se distinguiu por considerar que os antagonismos de classe seriam os conflitos decisivos no mundo contemporâneo, embora não sejam, evidentemente, os únicos. Inúmeras lutas democráticas desenvolvem-se simultaneamente e, incontáveis vezes, inseparáveis do enfrentamento entre capital e trabalho. Lutas democráticas contra regimes autoritários, tirânicos, ditatoriais. Lutas democráticas contra as opressões racistas, machistas, LGBTfóbicas. Lutas democráticas pela defesa de um programa ambiental contra a iminência de uma catástrofe ecológica provocada pelo aquecimento global. Lutas indígenas em defesa dos direitos dos povos originários. Não menos importante, a luta democrática das nações oprimidas pelo direito à libertação nacional. A esquerda não deve defender somente reivindicações da classe trabalhadora contra os capitalistas. Não há somente exploração no mundo. Exploração é a dominação do capital extraindo trabalho não pago. Há muitas formas de opressão. As opressões não são menos cruéis, atrozes e desumanas que a exploração. O sofrimento dos oprimidos não é menor que o da classe operária. Não é incomum que seja até maior. A esquerda deve reconhecer a necessidade de fazer mediações, ou seja, alianças transitórias em blocos sociais heterogêneos, construídas em torno de consignas democráticas progressivas. Progressivas são todas as lutas contra as opressões que, embora não sejam anticapitalistas strictu sensu, se apoiam em uma dinâmica, historicamente, libertadora, emancipadora, justa.
7 – A ordem imperialista mundial não pode ser mantida, indefinidamente, sem guerra. Estas conclusões repousam em uma análise da nossa época. Em perspectiva histórica, a obra mais importante do capitalismo foi impulsionar a formação do mercado mundial liberando forças produtivas até então inimagináveis. Mas essa façanha teve um custo catastrófico para a humanidade: a luta pelo domínio imperialista do mundo. Alguns poucos Estados controlam, comandam e oprimem a imensa maioria dos países e impõem a sua ordem. E disputam para manter suas posições de poder, ameaçando, regularmente, a paz mundial. O nome deste sistema é ordem mundial imperialista. Ela não pode ser preservada sem guerras. O capitalismo é um obstáculo intransponível para a tendência mais profunda do desenvolvimento histórico que o próprio capital potencializou. Esta tendência é somente uma possibilidade, não um destino: a crescente unificação da humanidade em uma civilização mundial. Mas o capitalismo não pode unificar a humanidade. O socialismo é o nome desse programa. Ser de esquerda é ser anti-imperialista. Quando dizemos que a ordem mundial se estrutura, pelo menos nos últimos cem anos, como uma ordem imperialista, não estamos afirmando que exista um governo mundial. O capitalismo não conseguiu superar as fronteiras nacionais dos seus Estados imperialistas. O Brexit e a crise da União Europeia são demonstrações de que permanece intensa a competição entre as burguesias dos países centrais nas disputas por espaços econômicos e arbitragem de conflitos políticos. Não se confirmou a hipótese de um superimperialismo discutida na época da II Internacional: uma fusão dos interesses imperialistas dos países centrais. O ultraimperialismo nunca foi senão uma utopia reacionária.
8 – As turbulências são crescentes dentro do sistema internacional de Estados. Mas seria obtuso não reconhecer que as burguesias dos principais países imperialistas conseguiram construir um centro no sistema internacional de Estados, depois da destruição quase terminal da II Guerra Mundial. Ele se expressa ainda hoje, institucionalmente, 35 anos depois do fim da URSS, pelas organizações do sistema ONU e Bretton Woods, portanto, através do FMI, do Banco Mundial, OMC, BIS de Basileia e, finalmente, no G7. A contrarrevolução aprendeu com a história. No centro de poder da ordem imperialista está a Tríade: os EUA, a União Europeia e o Japão. União Europeia e Japão têm relações associadas e complementares com Washington, e aceitam a sua superioridade desde o final da II Guerra Mundial. A mudança de etapa histórica em 1989/91 não alterou este papel da Tríade e, em especial, o lugar dos EUA. Embora sua liderança tenha diminuído, ainda prevalece: (a) a dimensão de sua economia, em especial, de seu mercado interno; (b) o apelo do dólar como moeda de reserva e o domínio financeiro; (c) a superioridade militar; e a capacidade de iniciativa política permitiu, entre outros fatores, apesar de uma tendência de debilitamento, manter a posição de liderança no sistema de Estados. O papel de Trump ou de Kamala será o de preservar este lugar, em especial, diante da China. Garantir o domínio na América Latina será vital.
9 – Nenhum Estado da periferia passou a ser aceito no centro do sistema nos últimos 35 anos. China e Rússia são Estados que preservaram a independência política, embora tenham restaurado o capitalismo, inclusive recorrendo a endividamento no mercado mundial, e exercem papel protoimperialista em suas regiões de influência. Mas mudanças ocorreram na inserção dos Estados da periferia. Alguns têm uma situação de dependência maior, e outros uma dependência menor. O que predominou, depois dos anos oitenta, foi um processo de inserção subalterna, ou “recolonização”, ainda que com oscilações. Há uma dinâmica histórico-social em curso. E ela é inversa daquela que predominou entre 1945/75, depois da derrota do nazi-fascismo, quando a maior parte das antigas colônias na periferia conquistou, parcialmente, independência política, ainda que no contexto de uma condição dependente ou mesmo semicolonial. A maioria dos Estados que conquistaram independência política na onda de revoluções anti-imperialistas que se seguiram à vitória da revolução chinesa, coreana e vietnamita perdeu esta conquista: Argélia e Egito, ou Líbia, Iraque e Síria foram exemplos, entre outros, desta regressão histórica posterior a 1991. Alguns regrediram à condição de protetorados. Ainda existem, porém, governos independentes, como Venezuela, Irã e Cuba. Sua situação é muito instável.
10 – Não se pode ser internacionalista pela metade. Uma análise que equaciona os conflitos entre as classes nos países ou continentes decisivos ignorando o lugar e a política dos Estados na situação mundial diminui a força da contrarrevolução. O caminho inverso é ainda mais desanimador. Quando se subestimam os conflitos entre as classes em cada sociedade, a análise redundará, fatalmente, em avaliações superficiais, exagerando a força da contrarrevolução. Esse segundo caminho foi percorrido por boa parte da esquerda mundial no século XX, sobretudo aquela que considerou que o destino da causa socialista estava, indissoluvelmente, associado ao futuro do governo da URSS e seus aliados. Infelizmente, o internacionalismo quase desapareceu.
(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.