Dez teses sobre os limites do capitalismo
Em nossa época, os destinos políticos e econômicos da civilização se decidem na arena mundial, ainda que a luta política se desenvolva em marcos nacionais
“A derrota só será uma bebida amarga se concordarmos em tragá-la.”
“Sem a oposição do vento, a pipa não consegue subir.”
– Provérbios populares chineses.
A desaceleração da economia mundial na última década, com viés de estagnação e pressão inflacionária pós-pandêmica, apesar da excepcionalidade chinesa e, em menor medida da Índia, confirma que os limites históricos do capitalismo estão mais estreitos. A divisão da classe dominante, com o surgimento de uma extrema-direita com crescente peso de massas, que luta pelo poder para impor uma derrota histórica à classe trabalhadora e povos oprimidos, sinaliza a gravidade máxima da situação. O neofascismo é o sintoma do apodrecimento do sistema. Mas o capitalismo não tem “prazo de validade”. Não tem crise sem saída. Não obstante, o sistema não é nem eterno, nem invencível. Tudo se transforma. É verdade que estes limites nunca foram fixos ou rígidos, mas o fato de serem móveis não quer dizer que não existam. Eles resultam de uma luta política e social. Vivemos em uma época histórica em que os destinos políticos e econômicos da civilização se decidem na arena mundial, ainda que a luta política se desenvolva em marcos nacionais. Do futuro da luta de classes internacional dependerá a longevidade do capitalismo. O que é previsível é que a senilidade do sistema exigirá mudanças regressivas, historicamente reacionárias e possivelmente, contrarrevolucionárias. Mesmo em comparação ao passado do capitalismo. Regiões inteiras do mundo estão vendo as condições de vida retrocederem, em alguns aspectos, ao século XIX, com a destruição de conquistas históricas. O futuro deste passado será cada vez mais próximo ao prognóstico de barbárie crescente.

Manifestação contra o G20 em Hamburgo, em 2017.
(Foto: Montecruz Foto / Flickr)
Em alguns períodos os horizontes histórico-sociais do capital se contraíram. Depois da vitória da revolução russa de 1917; depois da crise de 1929; depois da revolução chinesa de 1949; depois da revolução cubana de 1959; depois do Maio 1968; depois da revolução portuguesa de 1974. Já em outros se expandiram. Depois do New Deal de Roosevelt em 1934; depois do acordo de Yalta/Potsdam, ao final da II Guerra Mundial em 1945; depois de Reagan/Thatcher em 1980. A pulsação do capital não é imune ao desenlace da luta de classes. No entanto, o capitalismo não terá “morte natural”, o que não é o mesmo que dizer que não se manifestou na história uma tendência ao desmoronamento, isto é, uma tendência a crises cada vez mais sérias e destrutivas, que ficou conhecida na tradição marxista como a teoria do colapso.[1] Mas os últimos cento e cinquenta anos já foram um intervalo histórico suficiente para se concluir que a hipótese da crise final estava errada: as crises convulsivas, por mais terríveis, não resultam em processos revolucionários, a não ser quando surgem sujeitos sociais com disposição de luta. Os critérios “objetivistas” que diminuem a centralidade do protagonismo do proletariado e das classes oprimidas foram refutados pela história. Os vaticínios políticos catastrofistas neles inspirados se aproximaram, perigosamente, de uma versão marxista para um novo milenarismo.[2]
Enquanto o capitalismo vivia sua época histórica de gênese e desenvolvimento, estas crises destrutivas eram, relativamente, mais rápidas e suaves. O debate histórico mais grave da atualidade remete, portanto, a este desafio teórico: a época em que o capitalismo ainda tinha um papel “progressivo” ficou ou não para trás? O argumento deste texto é que estamos diante de um período histórico de decadência irreversível do sistema. Uma época em que reformas são muito mais difíceis, o perigo de derrotas históricas é iminente, mas, paradoxalmente, guerras e, portanto, também, revoluções, mais prováveis, embora o desenlace da luta pelo socialismo permaneça muito incerta. Guerras e revoluções são desenlaces inseparáveis.
Todos os Estados, mesmo aqueles que têm uma posição dominante no mercado mundial, estão condicionados pela pressão do capital financeiro. Desde 2008, os mágicos keynesianos substituíram os ilusionistas neoliberais à frente de vários governos, mas enfrentaram dificuldades para “salvar” o capitalismo dos capitalistas. O QE (Quantitative Easing) ou relaxamento monetário projetou a financeirização a um novo patamar. A grande depressão foi evitada à custa de uma longa recessão. O sistema ganhou tempo, mas não foi indolor. O “custo histórico” foi o surgimento vertiginoso do neofascismo com um programa de choque contrarrevolucionário. Os impostos futuros, consumidos desde 2008 na forma de emissão de dívida tanto nos EUA, quanto na Europa e no Japão para a compra de participação estatal em empresas e bancos privados ameaçados de falência, comprometerão a possibilidade de emissão de novos títulos amanhã, sob pena de uma desvalorização das moedas de entesouramento (dólar norte-americano; libra inglesa, franco suíço, euro; yen), ou seja, o perigo de inflação. A crise aberta em 2008 vem confirmando as análises que estimam que ela só pode ser comparada com a crise de 1929, e não deve ser considerada somente a forma da última crise cíclica, como em 2000/2001, 1991/92, 1987, ou 1981/82.[3]
A economia capitalista conheceu, ao longo dos últimos trinta anos, três ciclos de relativo crescimento econômico que dependeram muito da expansão do consumo do mercado norte-americano, portanto, da financeirização. Investimento privado, indústria armamentista e consumo das famílias, explicaram o crescimento durante a etapa da guerra fria 1945/89, mas desde os anos oitenta, a inovação foi a financeirização, ou o endividamento dos Estados. A alavancagem de capitais assumiu uma nova escala, totalmente diferente do passado. Financeirização sempre existiu, porque o recurso ao crédito é inerente à operação do capitalismo. O que mudou foi a grandeza da fuga de capitais da produção para o mercado financeiro, e a magnitude da explosão de dívidas. Dívidas de consumo das famílias nos países centrais, em especial, dívidas para aquisição da casa própria, dívidas empresariais, em especial para aquisções e fusões e, sobretudo, dívidas públicas, em proporções muito maiores que no passado. A financeirização permitiu ao capital ganhar tempo, na medida em que a dimensão colossal do volume de capitais acumulados compensaram, transitoriamente, a lentidão da valorização, ou seja, a queda da taxa médio de lucro. Assistimos agora à crise gerada pela financeirização acelerada desde os anos oitenta com a criação dos derivativos.[4]
Foi a financeirização que facilitou a expansão do crédito que impulsionou os mini-booms dos anos oitenta com Reagan, dos anos noventa com Clinton, e dos anos de 2001/2008 com Bush. Operaram, com força de influência variada, os outros quatro fatores identificados por Marx como contra-tendências de freio à queda da taxa média de lucro: o barateamento das matérias primas; a renovação de tecnologias; a internacionalização até à última fronteira e, o mais importante, o aumento da exploração do trabalho. Nos dois primeiros mini-booms verificaram-se quedas importantes nos preços do petróleo e dos grãos, embora não na última, quando subiram, favorecendo as exportações de comodities da América Latina e África; o desenvolvimento da micro-eletrônica e da telemática foram significativas para o impulso da restruturação produtiva, sobretudo, nas duas últimas duas décadas do século XX; o crescimento chinês e, em menor medida, da Índia, foi um fator de impulso nos últimos vinte e cinco anos; a estagnação do salário médio nos EUA e a restauração capitalista, incorporando centenas de milhões à produção de mais valia, e ao mercado mundial, pressionou para baixar o salário médio nos EUA, Europa e Japão.[5]
A recuperação da taxa média de lucro com a economia de guerra depois da invasão do Afeganistão e Iraque foi um dos fatores que voltou a favorecer o investimento, mas em uma escala inferior à etapa política do pós-guerra (1945/89). O barateamento do crédito foi, também, um fator das recuperação. A montanha de derivativos cresceu até atingir o pico de US$ 600 trilhões em 2008, segundo o Banco de Compensações Internacionais de Basiléia, e transformou-se em um obstáculo, porque o movimento de rotação de capital não foi mais possível nesta escala. Deixou de ser política e socialmente razoável a valorização de capital, mesmo que muito lenta, quando o volume de capitais fictícios atingiu esta dimensão estratosférica.[6] Uma parte importante desta massa de capitais fictícios foi destruída pela desvalorização desde 2008.
O mesmo problema está na raiz da crise dos endividamentos públicos acima dos 100% dos PIB’s nos países centrais. O endividamento do Estado não é senão a antecipação para o presente de receitas fiscais futuras, os impostos que serão pagos nos anos por vir e, em prazo mais longo, pelas futuras gerações. Ao contrário de empresas, Estados não podem falir, mas podem cair em situação de inadimplência por incapacidade de rolagem dos juros, com moratória das dívidas. Foi o que aconteceu com o Brasil durante o governo Juscelino Kubitschek, nos anos cinquenta, e José Sarney, nos anos oitenta. Isso significa que Estados, mesmo os Estados centrais, não conseguem se endividar além de sua capacidade de pagamento, porque os investidores perderão a confiança nos títulos, e exigirão em contrapartida juros mais elevados para renovação dos empréstimos. Não há uma proporção fixa “mágica” para a relação entre PIB/Dívida pública. Mas há um limite de capacidade de rolagem dos juros.
Trump e seus aliados têm um projeto. Ambicionam preservar a qualquer preço a supremacia mundial dos EUA e seus aliados sobre a China. Mas não é possível sem uma nova etapa de crescimento. O programa dos neofascistas é a destruição dos sistema públicos de saúde, educação e previdência para garantir a rentabilidade do investimento e a blindagem do capital. Essa estratégia exige a imposição de uma derrota histórica à classe trabalhadora. Mas um maior endividamento se traduzirá em um comprometimento de despesas que impedirá investimentos futuros. O destino do capitalismo é estagnação na longa duração. Esta combinação de fatores provocará uma recessão crônica, ou desestabilização política pelos cortes nas despesas dos serviços públicos com sequelas sociais imprevisíveis.[7] A expectativa dos rentistas condicionou, historicamente, o volume de estoque das dívidas públicas e o custo de rolagem dos empréstimos.[8]A financeirização transformou os títulos públicos de qualquer Estado – inclusive, no limite, os dos EUA – em papéis que podem, também, apodrecer, desde que os investidores percam a confiança de que o Estado poderá honrar seus compromissos. Não há qualquer garantia, a priori, de que os títulos públicos não virem tóxicos, ou seja, inegociáveis pelo valor de face.[9]
Por isso é que os marxistas afirmam que o limite do capital é o próprio capital. Quando a valorização encontra obstáculos intransponíveis começa a destruição de capital. Essa destruição assumiu em outras crises, inicialmente, a forma de desvalorização. Essa é a forma leve, ainda que a escala da destruição seja terrível, superando as centenas de trilhões de dólares. Mas, quando o pânico se precipitar – e o pânico poderá se instalar a qualquer momento, porque isso já aconteceu no passado-, quando os governantes perderem a credibilidade, a fuga dos ativos será a antessala de uma ruína nunca vista. A longevidade do capitalismo só é possível com crescente barbárie. Uma derrota da classe trabalhadora diante da ofensiva neofascista terá o custo de uma regressão econômica social imensa – a latinoamericanização do padrão de vida na Europa, a asiatização na América Latina – reatualizando o prognóstico marxista de socialismo ou barbárie.[10]As lutas decisivas estão à nossa frente, não aquelas que ficaram para trás.