Terça-feira, 10 de junho de 2025
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Clássica, notória e inescapável, a crítica feita por Adorno e Horkheimer à razão instrumental e ao projeto iluminista do Esclarecimento, com seus efeitos desdobrando-se em diversas formas de dominação possibilitadas pelo avanço das forças de produção, movidos por sua vez pela ciência moderna, mostra-se ainda atual, e só podemos cogitar quais seriam as reações e comentários dos autores frente ao contemporâneo digital – especialmente de que maneira a digitalização influenciaria a crítica do positivismo, da razão instrumental, mas também da indústria cultural. No presente, é fundamental pensarmos nas contribuições da Escola de Frankfurt.

Originada no Instituto para Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung), fundado em 1923 na Alemanha, a chamada Escola de Frankfurt buscou reinterpretar o marxismo à luz das transformações sociais, políticas e culturais do século XX, incorporando elementos da psicanálise, da sociologia weberiana e da filosofia hegeliana, além da antropologia e da crítica epistemológica. A iniciativa de criação do Instituto partiu de Félix Weil, um intelectual argentino-alemão de origens judaicas. Filho do comerciante de grãos Hermann Weil, sua família retorna da Argentina para a Alemanha ainda quando era jovem, e lá Félix iria realizar sua formação em ciências sociais e economia, doutorando-se em ciências políticas na Universidade de Frankfurt com sua tese “Sozialisierung: Versuch einer begrifflichen Grundlegung” em 1921, sobre o socialismo e os problemas da socialização. 

Basta folhearmos um pouco a Dialética do Esclarecimento para notarmos que vivemos o aprofundamento de tendências centenárias, com seu aspecto radicalmente novo. Pensá-lo com o auxílio da teoria crítica é fundamental se quisermos compreender a dimensão catastrófica do nosso tempo digital.(Foto: Los Muertos Crew / Pexels)
Basta folhearmos um pouco a Dialética do Esclarecimento para notarmos que vivemos o aprofundamento de tendências centenárias, com seu aspecto radicalmente novo. Pensá-lo com o auxílio da teoria crítica é fundamental se quisermos compreender a dimensão catastrófica do nosso tempo digital.
(Foto: Los Muertos Crew / Pexels)

Félix organizou a Primeira Semana de Trabalho Marxista em 1922, reunindo pensadores como Georg Lukács, Karl Korsch, Friedrich Pollock e Richard Sorge, que buscavam reinterpretar o marxismo diante das novas realidades do capitalismo avançado. Com financiamento vindo da fortuna de Herman Weil, pai de Félix, e apoio do Ministério da Educação alemão, o Instituto foi oficializado em 1923, inicialmente sob a direção de Kurt Albert Gerlach e, posteriormente, de Carl Grünberg. O surgimento do Instituto é marcado pela Primeira Guerra Mundial, pelos processos revolucionários na primeira metade do século XX, além da Crise de 1929 e pela ascensão do nazi-fascismo. Muitos desses teóricos tinham origem judaica, o que aproximava-os do horror e da barbárie perpetrados pelo Holocausto – e assim, também passaram a deter atenção especial ao papel da infraestrutura tecnológica industrial não só na organização do massacre, mas também na organização da cultura e das mídias, além do uso político da infraestrutura e tecnologia vigentes pelo regime nazista, levando-os assim a questionar os ideais iluministas de razão e progresso. 

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Para além da imprensa e do rádio, o cinema emergia de modo paradigmático para a cultura, tendo a Primeira Guerra como “condição material de sua expansão”. Reestruturando-se industrialmente no começo do século, o cinema tornou-se o nome para parte de um complexo sistema de produção – artística ou não – do imaginário, sistema esse que irá refletir os ditames dos negócios na medida em que as produções passam a ser condicionadas pelos registros de bilheteria (ibid). Esse sistema, enquanto sistema imaginário de massas, integra processos subjetivos como a identificação – fundamental na constituição da identidade pela interiorização de modelos. Dirão os autores: “o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida.”

Identificação com a necessidade produzida e, não obstante, produção de identificações necessárias, tendo em vista que o cinema surgia como parte do complexo sistema cultural encarregado de organizar a cultura e seu imaginário. Assim, tornou-se o veículo fundamental para a emergência de uma cultura baseada na fama e na influência exercida pelos atores e atrizes, com os quais se identificavam as massas – algo que, com o advento da televisão, tornou a propaganda e o consumo ainda mais presentes e centrais nos circuitos da cultura. A compreensão das massas utilizada por Adorno e Horkheimer é de origem freudiana, e compreende bem o papel do líder, do modelo ou de um referente na organização do psiquismo e na psicologia social. Como ocorreu com modelos de revista, astros de cinema e atores de novela, hoje uma nova arquitetura da fama e da cultura desponta com o digital.

Com a proliferação de smartphones e equipamentos relativos – na medida em que todos os aparelhos tendem a se tornar “smart”, até falar-se em “smart-house” ou “smart-city” –, um novo processo de fabricalização expandiu-se como um tecido programado: a fabricalização de dados. Com a datificação e algoritmização dos processos produtivos e das relações sociais, a razão instrumental encontra sua realização em uma escala jamais vista de quantificação não só objetiva, mas da própria subjetividade. Com o novo mercado de influência digital, surge uma nova modalidade da fama e novos pré-requisitos, jargões e “estilos” para alcançá-la: os pré-requisitos são alcance, engajamento, visualização… tudo voltado à uma economia de atenção e estímulo que servem para manter os usuários fornecendo dados e interagindo com as plataformas o máximo possível. Daí, vemos também a emergência dos influencers, esse novo estrato social que surge com as mídias digitais. 

Os influencers integram a dinâmica digital participando de muitos processos de propaganda, e sua efetividade se dá pela capacidade de identificação – traduzida em seguidores e engajamento – que geram. Com essa identificação, passam a compor novas dinâmicas de massa: os influencers funcionam como espécie de líder ou modelo,  e não à toa são hoje alvos de grandes empresas publicitárias para todos os tipos de campanhas, em especial aquelas ligadas às dinâmicas digitais (como jogos de azar online e as famosas bets). Existem influencers para todos os gostos, nichos, todas as posições no espectro político e, enfim, todos tornamo-nos influenciadores em potencial: seja o intelectual, a professora, o advogado, a médica, o atleta, a estudante, o psicólogo… somos todos virtualmente influencers, especialmente na medida em que entramos numa era de redução das expectativas no mundo do trabalho formal, onde a realidade pós-salarial revela-se paradigma da sociedade.

O influencer aparece assim como tipo fundamental dessa nova cultura digital e cumpre o papel de organização identificatória, que estabelece uma economia simbólica entre aspiração e aceitação: todos podemos nos tornar influencers de sucesso, mas a chance é ínfima para cada um – assim como era a função dos caça-talentos no começo da indústria cinematográfica e da televisão, bem notado por Adorno e Horkheimer. Hoje, o “caça-talentos” é o algoritmo, mas o único talento útil é a capacidade de mobilizar engajamento, viralização e visualizações. Essa dinâmica produz estereotipias, repetições e uma uniformização de conteúdos – como foi visto com o rádio, o cinema e a TV. Mas diferente dessas dinâmicas analógicas, a digitalização automatiza e acelera esse processo, dando a ele também uma espécie de coesão global e local. 

A digitalização é um verdadeiro pesadelo adorniano neste aspecto, sendo a realização por excelência da instrumentalização positiva e racionalizada de processos subjetivos, culturais e sociais. As indústrias digitais da cultura hoje residem em nossos bolsos e tornaram nosso cotidiano serializado, como uma linha de produção: desde nosso trabalho até nosso “lazer” – se é que podemos chamar assim –, tudo passa pela ponta dos nossos dedos em uma tela, dígitos sendo computados e processados em escala massiva com a finalidade fundamental de realização do circuito de valorização do valor, com todas as suas implicações políticas: não é por acaso que os gigantes das Big Techs estadunidenses já se alinharam a Trump para a defesa de sua hegemonia imperial ameaçada. Não podemos adivinhar o desfecho desse processo, o que não passaria de um exercício de futurologia, mas basta folhearmos um pouco a Dialética do Esclarecimento para notarmos que vivemos o aprofundamento de tendências centenárias, com seu aspecto radicalmente novo. Pensá-lo com o auxílio da teoria crítica é fundamental se quisermos compreender a dimensão catastrófica do nosso tempo.

(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos livres. Atualmente estão abertas as inscrições para o minicurso Teoria Crítica hoje: entre Digitalização e Identidade.