Os dois movimentos em pinça para fechar o cerco sobre Lula, vindos da maioria de direita no Congresso no caso do PL 1904, e do grande capital, na escandalosa articulação entre Campos Neto e Tarcísio, não parecem, até o momento, ter decorrido de cálculo certeiro de seus principais operadores. Por outro lado, tampouco parece que o governo esteja lidando com as ameaças de forma consistente.
Como amplamente divulgado pela mídia, Sóstenes Cavalcante, deputado do PL, representante da Igreja Universal e vice-presidente da Câmara, apresentou um Projeto de Lei em represália à decisão do ministro Alexandre de Moraes que, em caráter liminar, determinou a suspensão de resolução do Conselho Federal de Medicina (aquele da cloroquina) que orientava os médicos a não realizar um procedimento clínico, a assistolia fetal, na interrupção de gestação acima de 22 semanas, mesmo no caso de estupro.
A decisão do ministro, de 17 de maio, acatava a Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) apresentada pelo PSOL que argumentava que o CFM extrapolava suas atribuições ao estabelecer um impedimento à realização de uma das poucas situações em que o aborto no Brasil é legalmente permitido.
A apresentação do PL 1904 estava, portanto, inserida no braço de ferro que vem opondo a bancada de extrema-direita (majoritária quando associada ao mal chamado Centrão) do Congresso às decisões do Supremo em temas tão distintos como o marco temporal do reconhecimento das terras indígenas ou a anistia aos golpistas de 8 de janeiro.

(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Mas as primeiras declarações do deputado logo após a aprovação, em 12 de junho, da tramitação em regime de urgência, ou seja, pela votação direta em plenário, sem avaliação pelas Comissões da Câmara, deixavam claro que, mais do que Alexandre de Moraes ou o Supremo, era Lula quem estava na linha de tiro.
Acreditando na aprovação do projeto, Cavalcante lançou o desafio afirmando que a possibilidade de veto presidencial seria “um bom teste para o Lula provar aos evangélicos se o que ele assinou na carta era verdade ou mentira”, em referência à carta que Lula divulgou aos evangélicos em 2022, afirmando que o tema do aborto seria do Congresso e não do presidente.
Nestes escassos dias desde a pouco explicada omissão das lideranças de esquerda na votação da urgência, as coisas parecem ter saído do controle dos aprendizes de Maquiavel.
A reação espontânea de uma parcela da população, puxada certamente pelos movimentos femininos, mas amplamente mais extensa, fez de #ForaLira, uma trending topic nas redes e nas ruas. Até o diário oficial da ditabranda estampou em primeira página que esse projeto equipararia o Brasil ao Afeganistão.
Na pressa oportunista, os proponentes, majoritariamente bolsonaristas do PL, não perceberam que a pena de prisão para uma criança estuprada seria maior do que a do estuprador, e que isso provocaria repulsa em todos os quadrantes sociais?
A pressão sobre o presidente da Câmara pesou a ponto de o mesmo Cavalcante agora ameaçá-lo diante de suas sucessivas tentativas de se desmarcar da bobagem açodada em que embarcou. De cogitar Benedita da Silva como relatora a deixar a votação para depois das eleições, o doravante conhecido como #ForaLira ainda teve que ouvir o presidente do Senado dizer que “se chegar” à Câmara Alta, o PL “certamente não irá direto a plenário”.
A própria enquete formal da Câmara mostra o tamanho do tiro no pé. No momento em que escrevo, mais de um milhão de pessoas já votaram e 88% escolheram a alternativa “discordo totalmente”.
O oportunismo da bancada evangélica esqueceu que nos setores mais pobres da população existe sim o repúdio moral e religioso ao aborto, mas é maior a repulsa ao estuprador. É sabido o que acontece com os condenados por estupro nas prisões, quando não são linchados antes.
Foi a esquerda institucional que se acovardou diante do embate. Da até agora não explicada omissão das lideranças da esquerda na Câmara à decisão de Lira de acatar a urgência até a desconversa, apostando tudo em jogar o debate para depois das eleições, o comportamento das lideranças institucionais do petismo não é apenas covarde, mas peca por falta de sensibilidade à temperatura do momento.
Estamos deixando passar uma rara oportunidade em que as ruas e os grandes órgãos de mídia estão em uníssono sem criticar o oportunismo e o caráter anti-mulheres pobres da proposta. De sair do discurso vazio da “guerra de costume” para mostrar que a pauta da direita evangélica é de classe.
Se não for agora a hora de dizer que se porventura a filha menor de qualquer dos deputados for vítima de estupro ela certamente contará com o apoio da família para interromper a gravidez numa clínica luxuosa e segura dos bairros nobres da nossas cidades ou viajará para qualquer país em que o atendimento é legal, quando será?
Por que não dar destaque à indignação da maluca Sara Winter contra a hipocrisia da maluca Carla Zambeli? Por que não lembrar de Serra em 2010 chamando Dilma de “assassina de criancinhas” até que uma ex-aluna de sua mulher trouxesse a público que o casal tinha realizado um aborto?
E, por último, mas não menos, que pretende Lula ao dizer que é “pessoalmente contra o aborto”? Ele é “pessoalmente contra” que uma criança vítima de estupro interrompa a gravidez? A inegável inteligência emocional de Lula não é capaz de encontrar uma formulação melhor? Que tal começar por dizer que a questão não é ser contra ou a favor do aborto, mas ser contra obrigar crianças pobres a carregarem durante toda a vida o fardo emocional e material de um filho de estuprador?
(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos