A escalada do dólar e a pressão de agentes do mercado financeiro por mais ajustes fiscais dominou o noticiário da última semana. A moeda americana passou de R$6,20, um recorde nominal (ou seja, sem considerar a inflação). No noticiário da imprensa hereditária, tudo se resume à situação fiscal: o suposto excesso de gastos estaria causando incerteza nos mercados financeiros, expressa na subida do dólar. Cortes de gastos mais ousados são necessários, eles dizem.
Mas será que há esse risco todo? A jornalista Miriam Leitão – de credenciais liberais inquestionáveis – chama atenção para as previsões do próprio mercado: no começo do ano, o mercado previa que, ao fim de 2024, a dívida líquida do governo estaria em 64,25% do PIB e que o governo faria um déficit de 0,8% do PIB. No último boletim Focus, os mesmos agentes preveem que a dívida líquida fique em 63% do PIB e o déficit primário seja de 0,5% do PIB. Em outras palavras: o próprio mercado acha que o ano vai terminar melhor do que eles previam há onze meses.
Também cabe lembrar que o ajuste fiscal votado nesta semana pelo Congresso tem pouco a ver com os déficits de hoje. Sim, o objetivo é cortar gastos, mas o principal objetivo de fundo do ajuste é limitar gastos obrigatórios (previdência e salários do Judiciário, por exemplo) para que eles não diminuam o espaço limitado do arcabouço fiscal para gastos discricionários, como as obras do PAC e as bolsas de pesquisa científica.
Se a questão fosse apenas a meta fiscal, Haddad poderia continuar fazendo o que já vem fazendo com muito sucesso: cobrar mais impostos dos ricos. Mas o arcabouço fiscal impõe cortes contra direitos dos trabalhadores (e alguns cortes de emendas e supersalários do Judiciário, que já estão sendo desidratados pelo Congresso). Mesmo a trajetória de longo-prazo dos gastos públicos poderia ser balanceada por uma tributação justa dos super-ricos, que hoje pagam muito poucos impostos.
Se o problema não é fiscal, qual é o problema? Primeiro, há um momento de grande incerteza mundial. A China está tendo dificuldade de cumprir sua meta de crescimento do PIB de 5% (que inveja…). Os Estados Unidos estão às vésperas do início do governo Trump, que ninguém sabe quanto vai cumprir de suas promessas de tarifas e outras insanidades. O resultado da incerteza é a valorização do dólar, com investidores se refugiando nos ativos mais seguros. O DXY, índice que mede a valorização do dólar contra a moeda de outros países ricos, está no maior valor desde outubro de 2022.
Internamente, nosso único problema real no momento é uma inflação acima da meta do Banco Central. Hoje, temos uma inflação de custos mais alta, causada pelo aumento do dólar e por problemas climáticos (excesso de seca e de chuva ao mesmo tempo). Essa inflação afeta mais os mais pobres que, pela primeira vez no governo Lula, voltaram a viver com inflação mais alta que os ricos.
Contudo, contra essa inflação os juros altos são ineficazes. A solução aqui seria o uso de estoques reguladores e política de preços setoriais, mas essas palavras são detestadas por dez em cada dez economistas do mercado financeiro. Além disso, o problema aqui é, na verdade, que a meta de 3% é muito baixa, mas essa conversa fica para outro momento.
Além da inflação de custos mais alta, hoje temos uma inflação de demanda crescente. Essa inflação se expressa nos preços dos serviços, que também estão crescendo acima do limite de 4,5% da meta do Banco Central. Essa é a inflação “do bem”: ela tende a favorecer os mais pobres, pois aumento de preços de serviços, na prática, significa que o cabeleireiro, a diarista e o garçom estão ganhando mais. Tolerar um pouco dessa inflação nos permite aproveitar os frutos do crescimento de longo-prazo.
Fora o pequeno problema da inflação – que é pequeno mesmo, abaixo da média do Brasil desde a implementação do sistema de metas de inflação – o outro problema “real” é que a economia está indo muito bem. Por “economia” entenda-se o bem-estar econômico da maioria dos brasileiros, trabalhadores e trabalhadoras. O desemprego está na mínima histórica, a renda do trabalho está crescendo, as greves estão ganhando aumentos acima da inflação, a pobreza e a pobreza extrema estão no menor patamar em mais de dez anos.
No entanto, a economia que importa estar bem é um problema para o andar de cima. Não por que eles estão perdendo dinheiro, muito pelo contrário. Como escreveu o economista Michael Kalecki, o problema é que um mercado de trabalho sem trabalhadores desesperados ameaça o poder dos capitalistas e de seus representantes políticos. Ainda que o governo seja de frente ampla e disposto a conciliar até o que não deveria, o fato de um partido de centro-esquerda estar no poder e liderar uma economia pujante ameaça o controle dos capitalistas sobre a economia política. Essa combinação pode levar a uma reeleição em condições políticas mais confortáveis, por exemplo.
E se existe uma coisa que os capitalistas gostam mais do que lucro, esta coisa é o controle do poder político. Um capitalista pode até tolerar prejuízos, mas ser forçado a vender e ganhar dinheiro é demais para eles.