Quinta-feira, 10 de julho de 2025
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Nos últimos dias, o Irã resistiu, respondendo ao brutal ataque de Israel – e não “se rendeu incondicionalmente” mesmo após o ataque americano ao seu grande complexo nuclear, em Fordow. Diante da possibilidade de o Irã alvejar as bases americanas no Oriente Médio e trancar o estreito de Ormuz, por onde passa boa parte do petróleo do mundo, restaria a Donald Trump assumir uma longa guerra de atrito ou pôr fim ao conflito. Eis que o Irã venceu.

Mesmo que todos os lados tenham proclamado a vitória, os israelenses sabem muito bem que Netanyahu mente: com a destruição massiva de edifícios estratégicos e áreas inteiras, o país se vê economicamente exaurido, enquanto a confiança quase religiosa no Iron Dome, a fabulosa defesa antiaérea israelense, foi abalada talvez para sempre – mas nada disso se compara ao que se passou com as relações israelenses-americanas.

Benjamin Netanyahu com Donald Trump no aeroporto Ben Gurion, em Israel. (Foto: Amos Ben Gershom GPO)

Benjamin Netanyahu com Donald Trump no aeroporto Ben Gurion, em Israel.
(Foto: Amos Ben Gershom GPO)

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E esse é o grande mistério que deve ser desvendado aqui: o que foi essa guerra no contexto interno dos Estados Unidos – e o que ela nos diz para o futuro. Principalmente no que envolve os gestos tão pirotécnicos quanto errantes de Donald Trump, um presidente com problemas demais para resolver, muitos dos quais criados por ele próprio. E isso passa a ser chave para compreender o próprio futuro do sionismo.

Sim, Trump se provou o bravateiro de sempre, mas não o Make America Great Again, o MAGA, seu movimento-slogan dentro do Partido Republicano: seus quadros mantiveram, mesmo sob forte pressão, um discurso antiguerra que não foi dobrado por nenhum culto à personalidade. Nem um Tucker Carlson nem Steve Bannon adaptaram seu discurso. O que se esconderia por trás disso?

 O MAGA contra Trump: muito além do culto à personalidade

Nos últimos meses, em diversas ocasiões – inclusive no primeiro e único debate presidencial com Joe Biden – o mesmo Trump declarava que os democratas estavam levando o mundo à Terceira Guerra Mundial, seja por um misto de incompetência negocial ou comprometimento com os piores interesses possíveis. Trump apontava que só suas habilidades poderiam salvar os Estados Unidos de uma nova “guerra eterna”, dessa vez contra o Irã.

Tudo muito natural, afinal Trump construiu grande parte da sua mitologia política pela denúncia do belicismo dos democratas – sem poupar mesmo os republicanos tradicionais. Mas nas últimas semanas, como sabemos, ele mandou pela janela tudo o que sempre disse e, logo, partiu para cima do Irã em um ataque sem o aval do Congresso, tudo para acudir o aliado Israel – que, surpreendentemente, atacou primeiro, ficando em previsíveis apuros logo em seguida.

Se de um lado o mundo constatou o espírito bufão de Trump, por outro, muitos devem ter se surpreendido com o fato de que o MAGA não é, exatamente, a plataforma seguidista que se imaginava. Com muitos dos seus quadros originários de órgãos de inteligência – Bannon veio da Marinha, Peter Thiel tem ligações públicas com a CIA –, o MAGA fez, simplesmente, disputa pública para evitar uma guerra com o Irã.

Isso tudo em um momento em que Trump, ele próprio, tentava convencer o grande público de que uma guerra contra o Irã não seria uma nova Guerra do Iraque – de fato não era; dessa vez, a diretora da CIA, Tulsi Gabbard, nomeada pelo próprio Trump, afirmou a verdade em testemunho: o Irã não tinha armas atômicas, nem estava perto de desenvolvê-las caso mudasse de ideia, um gesto que faltou em 2003, quando foi forjado o conflito mentiroso do Iraque.

Enquanto democratas do establishment silenciavam, e só a esquerda socialista democrata ousava criticar Israel, os aderentes do MAGA no governo apontavam as incongruências de uma eventual mega-guerra contra o Irã. Carlson levou ao seu programa um neonconservador, adversário interno e histórico desafeto de Trump: o senador texano Ted Cruz, que foi simplesmente destruído e humilhado – e isso se espalhou para o mundo inteiro. 

Trump deve ter odiado ver que o seu giro o levou para perto de Ted Cruz – a quem ele só não chamou de santo nas primárias de 2016 e que agora se opõe ao tarifaço trumpista no Senado. Enquanto pesquisas de opinião marcavam novas quedas na popularidade de Trump, as pesquisas sobre o conflito tampouco eram alentadoras. Dias antes do ataque, um idoso Bill Clinton quebrou o silêncio e surgiu para criticar o papel de Israel na agressão ao Irã. 

Bombardeio a Fordow e a resistência incondicional do Irã 

Logo depois do ataque americano ao complexo nuclear de Fordow, no último domingo – que foi antecipado pelo icônico jornalista Seymour Hersh – Trump se viu em meio a uma encruzilhada: havia perdido apoio dos seus quadros mais fiéis, tinha dado um cavalo de pau no seu discurso, mas os iranianos não haviam derrubado o aiatolá Khamenei ou se rendido – e a grande massa americana não apoiava o seu gesto bélico, nem mesmo os republicanos.

Enquanto isso, o analista militar israelense Yossi Melman, tuitando de um bunker, apontava que boa parte de Tel Aviv foi destruída – e, por tabela, tudo rumava para uma longa guerra de atrito contra o Irã. Ainda segundo Melman, Israel havia, de fato, conseguido assassinar líderes importantes, mas não destruir a cadeia de comando iraniana; Teerã ainda tinha mísseis suficientes para muito tempo de guerra, apesar de muitos lançadores terem sido destruídos. 

Por sinal, semanas atrás, a mídia chinesa dava conta que as bombas antibunker dos Estados Unidos não seriam suficientes para provocar um estrago em Fordow. E, para a sorte da humanidade, ou a avaliação da mídia chinesa se provou acertada ou os iranianos já haviam tido a presença de espírito de retirar o urânio enriquecido de lá – evitando um desastre nuclear de proporções incalculáveis.

Trump, contudo, já tinha uma explosão para chamar de sua e, assim, uma deixa para se retirar do conflito alegando vitória – o que parecia necessário, graças ao cenário interno caótico, inclusive com a adesão, surpreendentemente grande, às manifestações convocadas nos Estados Unidos contra o envolvimento americano em uma guerra em larga escala. Trump precisava se safar de uma guerra arriscada demais pela frente.

Na segunda-feira à noite, horário de Brasília, Trump informou via redes sociais que haveria um cessar-fogo entre as partes. A declaração vinha após uma reportagem da mídia israelense de horas antes, via Canal 11, a qual dava conta que Israel desejava interromper as hostilidades – com o governo ou o Alto Comando do país aparecendo sob a máscara do sujeito coletivo, vago e sem rosto, talvez acusando o custo de uma guerra que não terminaria cedo

Com a manutenção das hostilidades nas horas seguintes, Trump enquadrou Israel e, ato contínuo, o premiê daquele país, Benjamin Netanyahu, determinou que os caças que atacavam Teerã retornassem – horas depois, o presidente americano apareceu novamente na mídia, sorridente e aliviado, enquanto partia para a Europa com a missão de enquadrar os “aliados” da Otan para aumentar seus gastos militares – com equipamentos americanos, obviamente.

O Grande Jogo do nosso tempo: Trump e a tendência multipolar

Entre os dois giros bruscos de Trump e o cessar-fogo, houve, além da resistência e resiliência de Teerã, rodadas de conversação de Trump com o presidente russo Vladimir Putin e posicionamentos firmes da China. A capacidade do regime iraniano resistir a Israel e, ainda, o poder de travar defensivamente o comércio global, via Ormuz, tendo por único culpado o regime sionista, representava o caminho para a derrota de Netanyahu.

A China, pelo seu lado, conseguiu um feito: não ser atraída para a guerra e, indiretamente, fazer esforços nas sombras que preservaram um aliado-chave do seu jogo global – as relações sino-iranianas envolvem não apenas abastecimento energético iraniano, mas também a construção de vastas redes de infraestrutura no país, que permitem a Pequim depender menos dos mares para fazer comércio, desviando-se da marinha americana.

Com a eventual guerra, Trump iria enfrentar um novo forte vendaval econômico, ainda mais após a queda do PIB no primeiro trimestre deste ano. Seus esforços para reduzir os juros iriam por água abaixo e sua administração sofreria o desgaste por isso – mas antes, os efeitos quase automáticos de levantes antiguerra nos Estados Unidos pareciam politicamente mortais para o presidente americano. 

E se Trump se mostrou completamente não confiável e imprevisível, por outro lado, ele demonstrou estar sujeito a fatores reais de poder que interpreta bem – ainda que de forma oportunista, mas isso mostra que seu pragmatismo não consegue escapar da maldição dos seus discursos anteriores: a recusa às guerras eternas é popular entre as antigas classes médias rurais, brancas e empobrecidas, sua base mais fiel que tem inúmeros veteranos de guerras recentes.

A jogada totalmente audaciosa de Netanyahu, de forçar a entrada americana no conflito, ignorou as relações reais de poder dentro dos Estados Unidos, contrariando a máxima de que o premiê israelense é um grande leitor da conjuntura americana. A realidade de desgaste econômico das massas, e traumas variados de veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão, estabeleceu limites reais para o poder interventivo americano.

Como aponta José Guilherme Pereira Leite em seu As guerras dos velhos, o desespero dos jovens: “o plot da mixórdia levantina, no presente, não é o sofrimento prévio do povo judeu, mas sim a transformação da elite dirigente de Israel em uma casta de prepostos do tecnofascismo, tensionando a fronteira do Ocidente com a China” – só fazemos o adendo de que sustentar uma fronteira requer um equilíbrio que o fascismo raramente entrega.

Por dentro dos Estados Unidos: o MAGA como projeto político da inteligência americana

Sim, nas últimas semanas, a esquerda do Partido Democrata voltou ao jogo, com a eleição de Zohran Mamdani, socialista, muçulmano e crítico de Israel para candidato a prefeito de Nova Iorque – o que foi aclamado por várias lideranças, inclusive mais à direita do partido, ainda que Barack Obama, misteriosamente, tenha silenciado. Se isso acende uma luz no final do túnel, temos de considerar que a disputa à direita dentro do Partido Republicano só começou.

Com o MAGA mostrando vida – e projeto próprio –, temos um conflito inevitável dele contra os neoconservadores – os direitistas republicanos “tradicionais” – que ocupam inúmeras secretarias na atual administração. Isso não é só uma disputa sobre o governo Trump, mas pela sucessão de sua presidência também – enquanto ela vive uma crise de popularidade resiliente e seu grande projeto econômico, a One Big Beautiful Bill, patina na opinião pública.

Sem sequer a poeira ter baixado no Oriente Médio, nos parece que a tentativa de Trump de batizar o conflito como Guerra dos Doze Dias talvez seja ousada e otimista demais. Iranianos foram às ruas comemorar o que leram como vitória e seu regime, ao invés de derrubado, se vê fortalecido – conforme atesta em artigo para o jornal francês Le Monde a antropóloga e dissidente iraniana em exílio Fariba Adelkhah, insuspeita de simpatias pelos aiatolás.

Israel, por seu lado, se vê às voltas com a autodeclaração de vitória de Netanyahu, mas a receita federal israelense registra o desafio inglório de indenizar cidadãos por mais de 40 mil danos a edifícios e automóveis no atual contexto – enquanto se fala em dezenas de bilhões em perdas, a ponto de analistas do Haaretz, como David Rosenberg, qualificarem que tratou-se de uma guerra para a economia local, diante do exaurimento econômico pelo conflito.

Passado tudo, o fato é que sem conseguir avançar na atual rodada bélica, mas sem prescindir de um estado de guerra permanente, Israel se vê diante de limites que ele não encontrava há tempos. Netanyahu, talvez mais do que o próprio Trump, está surpreso com o cenário interno nos Estados Unidos. Pela primeira vez em muito tempo, não conseguiu tudo o que quis – e se vê em um cenário no qual a emigração aumenta, o que lhe pode ser mortal.

A grande manchete desses doze dias que abalaram o mundo é que essa rodada de luta política – agressiva, perigosa e desesperada – nos Estados Unidos só começou, e ela também é interna à administração Trump, que passa longe de ser um borrão homogêneo. O MAGA parece emular o que eles supõem ser o projeto russo, com velhos – ou pretensos – atores da comunidade de informações querendo o posto de messias da salvação nacional.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.