Eleições 2024: por uma vida além do empreendedorismo de ruínas
Na contramão do empreendedorismo de ruínas de figuras como Marçal, Rick Azevedo se elegeu no Rio de Janeiro com a bandeira da redução da jornada de trabalho
Passado o primeiro turno das eleições municipais, já é possível fazermos um balanço de tendências políticas no Brasil que se expressam pelas urnas. Uma delas é bem representada na figura do derrotado candidato à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal.
Diferente do que alguns pensam, Marçal não representa uma continuação do bolsonarismo, mas uma outra dinâmica de disputa – que atualiza os modos de organização da propaganda política pelo marketing digital plenamente identificado com a lógica de plataformas e a extrema performance do coachismo cultural –, onde elementos antigos são mantidos (basta notar sua retórica anticomunista intencionalmente delirante) mas outros novos são lançados. Vale notar que Marçal, apesar de ter flertado com o bolsonarismo, promoveu um verdadeiro racha na extrema direita do país.
Um desses novos elementos, como já foi argumentado em outro texto, é seu empreendedorismo de ruínas que, diferente do ódio neoconservador do bolsonarismo influenciado pela escola ideológica olavista, passa a oferecer um certo tipo de esperança em um capitalismo de terra arrasada. Uma esperança peculiar, um tanto grotesca e cínica, que brotou dessa própria terra seca, onde a vida se converteu em uma guerra de todos contra todos, sem ninguém que não seja controlado pela abstração absoluta que se encarna no dinheiro – e onde, ao menos na fantasia, todos poderiam alcançar a riqueza. Marçal é uma espécie de tipo ideal desse espírito neoliberal, encarnado como coach e influencer, numa síntese pela bandidagem empresarial do capitalismo tardio brasileiro. Poderíamos resumir em poucos termos seu novo modelo de candidatura, e um deles com certeza teria que ser o corte. Ou melhor, os cortes: tanto os cortes orçamentários (“reduzir o Estado”, como bem repete o jargão neoliberal) quanto os cortes para viralizar nas mídias digitais. Gerar conteúdo, produzir cortes e… postar!
Aliás, não deixa de ser impressionante a sua consistência: mesmo sem horário eleitoral na televisão e após a antológica cadeirada, seguida de sua reação ridícula e vitimista à mesma, além, é claro, da falsificação de um laudo médico para atacar Boulos; mesmo com todo esse espetáculo e exposição ao ridículo, Marçal saiu de 10% das intenções de voto nas pesquisas iniciais para confirmar 28,14% nas urnas. Todos esses elementos somados não dão conta da complexidade do fenômeno, que não se reduz à simples figura de Marçal, mas perpassa um novo modo de antipolítica que tem como “solo” a dimensão intangível do digital, em sua automação de processos identificatórios pela própria arquitetura das plataformas e sua algoritmização da vida – de uma vida, diga-se, cada vez mais entre escombros.
Entretanto, se o saldo desse primeiro turno definitivamente não foi satisfatório para a esquerda, vale também celebrar algumas vitórias que deveriam ser melhor observadas e apontam para caminhos interessantes e promissores – desde que o campo da esquerda se atente para isso. Um desses casos é a vitória de Ricardo Azevedo em sua primeira corrida eleitoral, disputando o cargo de vereador no Rio de Janeiro. Nascido em Tocantins e morador da cidade do Rio por dez anos, Rick, como é conhecido, ganhou destaque nas mídias digitais em setembro do ano passado, ao fazer uma postagem viral convocando a “classe trabalhadora” a se revoltar contra a “escravidão” da escala 6×1, teve profunda adesão dos usuários e levou enfim ao que se tornaria o movimento Vida Além do Trabalho (VAT), que ganhou expressividade e já coloca no debate contemporâneo e no horizonte político a implementação da jornada 4×3.

São Paulo (SP) 06/10/2024 – Movimentação de eleitores na 1ª Zona Eleitoral no bairro da Bela Vista, EMEF Celson Leite Ribeiro Filho.
(Foto: Paulo Pinto/Agencia Brasil)
Já tendo organizado uma petição pública contra a jornada de trabalho predatória, alcançando mais de um milhão e trezentos mil assinaturas, Rick Azevedo e o movimento VAT conseguiram, em um ano, tanto sua eleição para a câmara dos vereadores do Rio quanto a atualização de um debate urgente, radicalizando uma perspectiva verdadeiramente de classe – discurso e agenda que, para alguns comentaristas de luxo da política e pretensos coachs de esquerda, estariam supostamente ultrapassados. Sendo o candidato a vereador mais votado do PSOL – com quase 30 mil votos, 12º dentre todos os candidatos da cidade, mesmo tendo uma das campanhas menos financiadas pelo partido (a com menos verba dentre os quatro vereadores eleitos da legenda, que caiu de sete para quatro cadeiras na cidade). Sua campanha, que tem origem em um movimento com pautas de classe gestado nas mídias digitais e passa a integrar a propagação por esses espaços com sua presença pela cidade, revela que há possibilidades de disputa e política servindo-se dessas plataformas, mas não somente isso: mostra também a necessidade de insistir e radicalizar a pauta verdadeiramente de classe, voltada à realidade cotidiana dos trabalhadores.
Não só a eleição de Rick, mas especialmente sua trajetória com o movimento pela Vida Além do Trabalho, sua capilaridade popular crescente – mesmo entre pessoas que não se identificam enquanto esquerda – revelam que muito longe da necessidade de “aprendermos” com coachs e afins, a resposta que a esquerda precisa fornecer para os problemas da condição deletéria de nossa realidade contemporânea precisa ser a partir de uma lógica completamente distinta das respostas fornecidas pela direita, seja vinda de seus influencers, capitães ou coachs.
Em nosso predicamento social melancolizado, onde cada vez menos conseguimos vislumbrar alguma perspectiva de futuro enquanto seguranças mínimas são diluídas e direitos arrancados, as respostas do mercado se revelam em estímulos digitais “matemágicos”, cada vez mais personalizados em seu automatismo algorítmico, onde somos empurrados para fantasias de enriquecimento fácil materializadas por coachs e influencers, com seus tigrinhos, tradings e bets – enquanto o trabalho segue sendo digitalizado (e a digitalização se revela, cada vez mais, uma forma de driblar qualquer legislação trabalhista).
A esperança de Marçal dialoga com isso e oferece um certo cinismo que, além de ser diferente do ódio bolsonarista, tem uma data de validade maior e serve como lastro para viver num mundo onde o futuro foi cancelado. Já o movimento Vida Além do Trabalho e sua conquista com a eleição de Rick Azevedo revelam que, mesmo frente ao anticomunismo delirante da extrema direita, as pautas voltadas à realidade concreta dos trabalhadores e suas condições de vida possuem grande capacidade de mobilização, inclusive pelas mídias digitais, revelando-se alternativa real e efetiva não só à extrema-direita, mas também às demagogias liberais que tomaram grande parte da esquerda já por tanto tempo.
(*) Cian Barbosa é flamenguista e morador do Rio de Janeiro. Bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação. Ministra o curso “Fantasmas na Máquina – Inteligências Artificiais, Psicanálise e Crítica da Digitalização”