Comecemos com números, que são a maneira mais usual de “normalizar” mistificações. Dos 720 membros do Parlamento Europeu, a extrema-direita “oficial”, aquela que ainda será descrita como extrema durante mais alguns meses, dividida entre ID (Identidade e Democracia) e ECR (Conservadores e Reformistas), elegeu 131 eurodeputados, o que faria deste o terceiro maior grupo do Parlamento, atrás do Partido Popular Europeu e dos Social-Democratas. No entanto, há ainda no mínimo mais trinta eurodeputados de extrema-direita nos “não-alinhados” e nos “outros”. Destes, se destacam os 15 eurodeputados do AfD na Alemanha, os dez do Fidesz na Hungria, os cinco da AUR na Romênia. A extrema-direita é a segunda força do Parlamento Europeu, mesmo que não esteja toda no mesmo grupo.
O partido com mais eurodeputados em todo o Parlamento Europeu é o Rassemblement National de Marine Le Pen, com 30. O terceiro partido com mais eurodeputados é o Fratelli d’Italia, com 24. O quinto é o PiS, da Polônia, com 20 (empatado com o PD italiano e o PSOE espanhol). Na Alemanha, o maior país da UE, a extrema-direita foi o segundo partido mais votado. Excluindo coligações, a extrema-direita foi o setor mais votado em oito países: França, Itália, Polônia, Holanda, Áustria, Bélgica, Hungria e Letônia.
Se a informação anterior não fosse suficiente, há perguntas essenciais a fazer sobre os restantes partidos. Programas políticos de todo o espectro político foram atraídos para o buraco negro do ódio da extrema-direita. Por isso surgiram aberrações políticas como a chamada Aliança Sahra Wagenknecht, partido com um programa racista e nacionalista que se apresenta como “esquerda”. O governo alemão, liderado pelo Partido Social-Democrata (teoricamente de centro-esquerda) e Verdes, governa com uma política de direita e extrema-direita em quase todas as áreas – do ambiente às migrações, passando obviamente pela chacina na Palestina. A resposta nas eleições colocou-os abaixo de qualquer dos partidos de direita: por que votar na imitação quando há fascistas que não têm vergonha de o ser?
Também na França a virada de Macron à direita não travou a ascensão do Rassemblement National (RN), que teve mais que o dobro dos votos do seu partido neoliberal. Na sequência do chamada de eleições, o líder dos Republicains, antigo partido de Nicolas Sarkozy, já declarou que apoiaria um governo francês de extrema-direita liderado pelo RN. Não existe nenhuma linha vermelha.
Mas uma política de extrema-direita é mais do que o número de deputados reconhecidamente de extrema-direita. É preciso ser claro que os programas eleitorais da esmagadora maioria dos setores do Partido Popular Europeu, o partido de direita “vencedor” oficial das eleições, com mais de 180 eurodeputados, são programas de extrema-direita. Os programas são anti-migrantes, nacionalistas, contra trabalhadores, advogando regressos ao passado e aos ódios históricos dos europeus – contra mulheres, contra muçulmanos, contra judeus, contra negros e outras minorias étnicas, contra a comunidade LGBTQ. E, obviamente, são programas negacionistas da ciência, e, por consequência, negacionistas da crise climática, disfarçando o seu serviço às grandes multinacionais como “realismo econômico”.
A política da União Europeia será, portanto, uma política de extrema-direita, em que se manterão os preceitos neoliberais deixando cair quaisquer máscaras. A União Europeia serve para manter as empresas europeias dando lucros aos seus acionistas e dirigentes. E se queremos ser honestos, é o que a União Europeia sempre fez, embora no passado com algum esforço de maquiagem.
O que muda, portanto? As instituições continuarão a utilizar os seus vários ramos – legislativo, executivo, judicial, coercivo e midiático – para impedir que se trave a crise climática e para garantir o colapso da Humanidade, como faziam até agora. No entanto, a aliança que governa a Europa recebeu luz verde para a aplicação da violência institucional (policial e militar) e para a disseminação do ódio a partir do topo, incentivando uma desagregação ainda maior das já frágeis sociedades existentes na crise estrutural do capitalismo na sua fase neoliberal. Um primeiro teste chegará em breve, com o regresso das regras fiscais do semestre europeu, que significará nada mais do que o regresso da austeridade cruel que bem conhecemos, aplicada à França, Itália, Espanha, Alemanha, Bélgica e Holanda. Mas o martelo pneumático da crise climática não parará: é uma autêntica guerra provocada por governos e empresas contra a sociedade, que já mata milhares de pessoas todos os meses por todo o mundo. Nos próximos anos, só vai piorar. A ascensão da extrema-direita, previsível perante a ausência de uma esquerda disruptiva, traz novos exércitos para essa guerra contra a humanidade.
Os recentes apelos à união das esquerdas institucionais, sem análise crítica às suas políticas, às suas estratégias e às suas táticas que também levaram a esta situação revelam apenas desespero. Uma união abstrata para salvar os formalismos do capitalismo comatoso, empurrando tudo para o centro, serve apenas como seguro de garantia da extrema-direita, tornando-a o centro de toda a política. Esse apelo parece basear-se na análise de que a legitimidade só deriva de atos eleitorais e que estes cristalizam o poder nas sociedades, ignorando tudo o que a extrema-direita fez durante a última década e ignorando principalmente o que a esquerda não fez durante a última década. Será que agora, quando a estabilidade do nosso planeta e das nossas sociedades oscilam como nunca, agora que até as veneradas instituições dos capitalismos nacionais, europeus e globais começam a cair nas mãos do fascismo, se manterá o foco nas instituições e no regresso ao passado pré-extrema direita?
A política real não é simplesmente a soma de pequenos aglomerados de ideias, mas sim de programas políticos concretos. Que há várias crises já se sabe, mas qual é o programa político que responde às questões políticas essenciais do nosso tempo? Terá a esquerda a coragem de assumir que o capitalismo declarou, através da crise climática, uma guerra até à morte contra a Humanidade? Reconheceremos que o capitalismo está a recrutar ativamente uma parte cada vez maior da sociedade para matar a outra através da política da extrema-direita? Se sim, aceitamos organizar-nos para ganhar esta guerra?
(*) João Camargo é doutor e pesquisador de mudanças climáticas do ISCTE em Portugal e trabalha contra o lobby do agronegócio em Bruxelas. É militante do movimento Climáximo.