Psicologia das massas entre a influência digital e a antipolítica das redes
Em que medida naturalizamos a digitalização e seu predicamento de plataformas, e o quanto nossa imaginação política já foi sequestrada por ela?
Ao menos desde 2013, uma mudança na configuração das disputas políticas se anunciou em terras brasileiras – fenômeno com a tonalidade melódica nacional, seguindo o tempo de uma arritmia global crescente; o ritmo sofreu um efeito fetichista. Essa mudança, tão clara como foi, ofuscou e ofusca ainda hoje grande parte do campo que poderíamos chamar de democrático, no qual está uma ampla esquerda – que talvez não seja tão ampla e nem tão esquerda assim, como gostariam alguns de seus integrantes. Dentre muitas coisas, ao menos dois elementos dessa mudança parecem ser centrais: tanto os efeitos de um neoliberalismo em decadência quanto sua relação com o processo de digitalização. Nesse contexto, a influência digital na política, na cultura e, enfim, na própria sociedade ganha grande destaque.
Desde então já se percebe a crescente influência dos “meios digitais” nas próprias disputas políticas e formações ideológicas – o que é muito diferente de tentar explicar o fenômeno por uma relação causal entre mídias e protestos, como tentou-se fazer na época. Diversos termos surgem para dar conta dos efeitos desse processo: desde as câmaras de eco em “bolhas digitais” até a conhecida “pós-verdade” – eleita pelo dicionário Oxford a “palavra do ano” de 2016, após o Brexit e a vitória de Trump –, termos que parecem tentar circunscrever, de maneira mais ou menos precisa, diferentes sintomas. A captura das ruas em 2014 por uma direita radicalizada, que combina tanto traços do neoliberalismo pós-moderno quanto o tradicional sadismo colonial-militar brasileiro, forneceu novas cartas para a burguesia nacional – enfezada, diga-se, já que não via se realizar o também tradicional revezamento nacional de controle executivo da máquina estatal (isto é, com a reeleição de Dilma apontando para o quarto círculo presidencial petista consecutivo).
Vindo o golpe e as eleições subsequentes, afirmou-se a tendência de lideranças e quadros políticos que ganham notoriedade através das plataformas digitais, cultivando suas “bases” por aplicativos de mensagem, característica do que alguns têm chamado, inclusive o próprio ministro Alexandre de Moraes, em tese recém-defendida, de populismo digital. A direita tomou a dianteira em um movimento extremista, com matizes mais ou menos explícitas, como é o exemplo do MBL, surgido no final de 2014, que tenta dissociar-se do bolsonarismo colocando-o como primo feio de um mesmo processo que ambos compõem; tanto que compartilham o discurso anti-comunista paranóide, um armamentismo de traços estadunidenses, uma retórica anti-estatal junto ao cinismo anticorrupção, além de outros traços, rastreáveis até o falecido ideólogo dessa nova extrema-direita do Brasil. Bolsonaro conseguiu cooptar as tradições coloniais mais violentas do agronegócio e vetores teológicos extremistas, além da velha obscenidade policial e para-militar – semi-velada pelos porões da ditadura, explícita na distribuição racial (e, sendo assim, também classista) dos territórios subjugados pelo Estado e seus agentes, oficiais ou extra-oficiais. Mais recentemente encontramos uma atualização desse processo na figura de Pablo Marçal: coach, empresário, influencer, enfim, trambiqueiro digital que atualiza tanto características do MBL quanto do bolsonarismo, sendo algo novo em relação a ambos.
Tanto MBL quanto Bolsonaro expressavam tendências brasileiras no assim chamado neoliberalismo, esse empreendimento ontológico (pois trata de incidir sobre a dimensão do ser) que se expressa desde a imposição da austeridade estatal contra qualquer pacto social mínimo, propondo uma guerra de todos contra todos, expandindo e radicalizando a racionalidade de mercado e o princípio de concorrência para as esferas mais variadas da vida, interiorizados pelo próprio sujeito[1]. Ou talvez fosse o caso de sugerir, em um exercício diriam “pessimista”, o neoliberalismo como condição de possibilidade desses movimentos, que aparecem agora como depuração de formas candidatas à sua substituição por algo ainda pior – uma fragmentação total dos laços sociais sem qualquer gestão da barbárie para além de uma ultra-política que interpreta toda a sociedade pela perspectiva de militarização de conflitos que só podem assumir a forma do “nós versus eles”. Ou seja, o colapso da sociabilidade pela corrosão das possibilidades de reprodução social.
A digitalização entra em cena como um processo que integra perspectivas acerca dessa desintegração, ao mesmo tempo em que faz parte dela. Disposta e animada em tempo real pelos princípios do mercado global, que se refletem também na produção e circulação de conteúdos nas mais diversas plataformas, a digitalização reforça uma constante relação entre usuário e determinada interface via mediação algorítmica, onde a atenção é fator crucial para a valorização do valor. Durante a pandemia de Covid-19 – que assustadoramente, diga-se de passagem, teve seu início a quase cinco anos –, isso foi experimentado em dimensões jamais vistas antes. Talvez os sentidos radicais da pandemia ainda não tenham sido devidamente elaborados também por uma imersão global excessivamente traumática no real dos impasses mais fundamentais do contemporâneo.

Nayib Bukele e Javier Milei, presidentes de El Salvador e Argentina eleitos na onda do “populismo digital”.
(Foto: presidencia.gob.sv)
Essa economia da atenção[2] imposta pelas plataformas implica também em uma estetização da política, que reduz todo seu sentido na necessária contração do sensível pela lógica subjacente às plataformas digitais utilizadas: hiperestímulo, engajamento, extração de dados, metrificação, controle. Surgem formas culturais particulares à lógica do imaginário das plataformas, como é o caso do influencer: aquele que realiza o imperativo lógico latente e determinado pela demanda algorítmica, produzindo esteticamente a verdade formal arquitetada desde as plataformas. Elas são, para esses fins, tão somente modelos de negócios nos quais o influencer surge como derivação necessária, pela massiva difusão informática imaginária nas ruínas neoliberais junto a (novas) métricas de desempenho, sob a (velha) égide do capital. O influenciador é então alguém que consolida processos de identificação em massa, mediada pela algoritmização de demandas, tornando-se um modelo ou ideal, ao mesmo tempo em que se afirma como nova posição social: é um “produtor de conteúdo”, pode fazer disso uma fonte de renda, etc, além de adquirir um certo status social de referência para determinados nichos.
Sobretudo, o influenciador corresponde em grande medida ao ideal empresarial da produção de si, regido pelo desempenho metrificado dos dados, que governa o sujeito-empresa e é característica central do neoliberalismo. O mercado de influência digital é a realização desse sujeito que produz a si mesmo pelos imperativos expressos em suas métricas: visualização, compartilhamento, engajamento. O influenciador é a figura que expressa as formas necessárias do regime digital que envolve a todos em um “sentimento oceânico” de culto às plataformas e conteúdos. Em maior ou menor grau, somos todos potenciais influenciadores e influenciados. Um dos problemas centrais para a esquerda é pensar as consequências políticas dessa condição, e as possibilidades (ou impossibilidades) de agir politicamente nela.
Aqui, a velha conhecida psicologia das massas de Freud ainda pode nos ensinar algumas coisas. As formações de massas[3], a partir da identificação com objetos externos enquanto ideais, compõem a realidade e o processo histórico do qual fazem parte na medida em que constituem realidades psíquicas. Esse processo de identificação tem três características fundamentais: 1) é uma forma fundamental de ligação afetiva e formação, carregando consigo certa ambivalência constitutiva; 2) fornece modelos de ser e de ter para aqueles que integram determinada formação de massa; 3) e, por último mas não menos importante, afeta o exercício de contestação e prova da realidade externa. Percebe-se que a identificação coloca a questão da influência em jogo para além de algo como um contágio ou sugestionamento, na mesma medida em que o conteúdo digital é matéria não só de informação, mas de formação (por óbvio, psíquica e social).
Assim, o problema da verdade (ou da pós-verdade), por exemplo, já não é mais questão de mera factualidade; não é “simplesmente” epistemológico – o “fact checking” é importante, mas o que está em jogo aqui não é sequer a checagem, quanto menos os fatos –, mas a própria formação da realidade (psíquica) em um processo de identificação. Com os processos de automação do processamento de dados em escalas e velocidades cada vez maiores, talvez seja plausível falar de uma condição completamente inédita das possibilidades de identificação na história humana. Enquanto isso, o tom das opiniões à esquerda sobre o tema ainda parece oscilar, em termos genéricos, entre alguma regulamentação e a necessidade de “tomar” as redes como faz a direita – acontece que não há qualquer grau comum para fazer esse tipo de comparação, além de com ela vir certa assimilação estética que só serve para a direitização da esquerda. A questão que talvez devêssemos nos fazer frente a isso é a seguinte: em que medida naturalizamos essa condição, esse predicamento das plataformas, e o quanto nossa imaginação política já foi sequestrada por ela? Talvez assim possamos acordar do sono dogmático digital sem recair em qualquer tecnofobia ou tecnofilia romântica reeditada.
(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação. Ministra o curso “Fantasmas na Máquina – Inteligências Artificiais, Psicanálise e Crítica da Digitalização”
Notas:
[1] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Boitempo editorial, 2017, p. 29.
[2] BENTES, Anna. Quase um tique: economia da atenção, vigilância e espetáculo em uma rede social. 2021.
[3] Recorremos aqui às noções de identificação e ideal, relacionadas à figura do líder, desde a Psicologia das Massas freudiana. Sabemos que essa teoria apresenta a formação da massa pelo processo de identificação com um líder, modelo ou mesmo ideia, onde os integrantes colocaram tal objeto externo na posição de ideal do Eu. Essa é a fórmula fundamental freudiana de uma massa — já com um líder, mas sem a complexidade organizacional como encontramos na igreja ou no exército. Ver em: FREUD, Sigmund. Obras completas volume 15 (1920-1923): Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos. Editora Companhia das Letras, 2011.