A proximidade do 30 de agosto, instituído pela ONU como Dia Internacional de Vítimas de Desaparecimento Forçado, traz ao debate público duas principais posições políticas antagônicas sobre o tema: por um lado, aqueles que assumem a linha da “página virada”, ilustrada na censura dos atos em denúncia aos 60 anos do golpe militar no Brasil; por outro, os bravos movimentos populares que seguem na luta por memória, verdade, justiça e reparação pelos crimes do Estado contra o povo brasileiro. Como se sabe, as consequências da primeira posição são nefastas, pois implicam na deformação da memória popular e criam um solo fértil para a disseminação da ideologia fascista.
Por esse motivo, escolhemos o lado daqueles que lutam por justiça em toda a América Latina e nos somamos à campanha “¿Dónde está Lichita?” que exige respostas sobre o desaparecimento forçado de uma criança pelo exército paraguaio.
Eram apenas meninas
Em 2 de setembro completam-se quatro anos de um crime bárbaro cometido pelo Estado do Paraguai e que segue sem respostas: a Força Tarefa Conjunta (FTC), um destacamento de operações especiais das Forças Armadas criado para aniquilar o Exército do Povo Paraguaio (EPP), torturou, assassinou e enterrou em vala comum duas crianças argentinas de apenas 11 anos, María Carmen e Lilian Mariana Villalba. Na mesma emboscada, outras três crianças conseguiram fugir para a Argentina, mas Carmen Elizabeth Oviedo Villalba, “Lichita”, com 14 anos, foi sequestrada e está desaparecida desde 30 de novembro de 2020.
Lichita e sua irmã gêmea, Tamara, nasceram na prisão, filhas de Carmen Villalba e Alcides Oviedo, presos políticos desde 2001 por serem dirigentes do EPP. Viviam exiladas na Argentina, mas na ocasião estavam no Paraguai para reencontrar a família.
Os movimentos populares e organizações latino-americanas de direitos humanos denunciam que o crime se trata de uma retaliação pelo fato das crianças serem parentes de líderes da guerrilha. Após as manifestações, o exército foi obrigado a exumar os corpos das meninas que estavam enterrados dentro de caixas de papelão numa vala comum e entregá-las à família. Em toda a região, o povo exige respostas sobre o paradeiro de Lichita, bem como que o Estado paraguaio seja responsabilizado pela morte das crianças Villalba.
Herança maldita da ditadura
A ditadura militar de Alfredo Stroessner no Paraguai durou 35 anos e foi responsável por bárbaras violações de direitos humanos. A Comissão da Verdade e Justiça denuncia que ao menos 450 pessoas foram executadas pelo regime e outras 20 mil foram presas, torturadas ou submetidas ao exílio forçado. Com o fim da ditadura, em 1989, entretanto, não houve reparação e justiça. Os documentos oficiais dos “Arquivos do Terror” comprovam todos os crimes cometidos pelo Estado paraguaio e sua relação com a Operação Condor, mas não foram suficientes nem mesmo para responsabilizar os militares e grandes empresários beneficiados pela ditadura.
Criada em 2013, a Força Tarefa Conjunta (FTC) é uma continuidade dessa política de militarização do Estado e repressão que se expande no norte do país hoje, nas regiões de Concepción, San Pedro e Apampay. Com o argumento do combate ao terrorismo, as tropas atuam com violência, sequestros, assassinatos e torturas contra as organizações de resistência à exploração da terra e do povo do campo. São a tropa de choque do latifúndio e usam toda forma de brutalidade contra mulheres e crianças.
Um milhão por Lichita
Organizações em defesa dos direitos humanos, partidos políticos de esquerda e movimentos sociais mobilizam um abaixo-assinado internacional com meta de um milhão de assinaturas pela vida de Lichita, que deve ser entregue nas embaixadas paraguaias em 30 de novembro. Essa ação é também uma denúncia contra a perseguição e violência que sofrem a família Villalba e lutadores camponeses na região. É mais um grito de resistência do povo latino-americano que nos lembra as palavras do poeta alemão: “do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
(*) Isis Mustafa é dirigente do partido Unidade Popular pelo Socialismo e 1ª vice-presidente da UNE.