No dia 13 de janeiro de 2025, o novo secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, fez declarações que receberam menos atenção do que seria esperado diante da gravidade de suas palavras. Em visita ao Comitê de Assuntos Exteriores e ao Subcomitê de Segurança e Defesa do Parlamento Europeu, o chefe da aliança militar ocidental não apenas exortou os eurodeputados a pressionarem seus respectivos governos para gastarem (muito) mais em armamentos, mas chegou ao ponto de fazer chantagens com o público presente.
Segundo Rutte, “estamos a salvo agora, mas em quatro ou cinco anos não”. Nem mesmo a meta de 2% dos orçamentos nacionais (incumprida pela maioria dos membros) seria suficiente para manter os cidadãos europeus seguros. Para ele, a necessidade de desviar recursos de outras áreas para os gastos militares seria existencial: “se vocês não fizerem isto, podem ir entrando num curso de língua russa ou ir para Nova Zelândia”; afirmou, sem medo do ridículo, perante os parlamentares europeus.

(Foto: Shealah Craighead / White House)
Não se trata de mera linguagem hiperbólica desprovida de consequências políticas, mas de uma tática consciente de sustentar paranoias coletivas que justifiquem políticas militaristas, xenófobas e chauvinistas. Rosa Luxemburgo escreveu diversos artigos sobre isso.[1] O uso do medo como arma política é, portanto, antigo, mas não por isso menos perigoso.[2] Ele mantém no poder aqueles que se apresentam como proteção para a ameaça supostamente em curso. E se até nas ditaduras esta prática é observada, nas democracias o seu estrago é obviamente maior. Não é preciso ser versado em nenhuma Teoria da Securitização para sabê-lo – mas ajuda.[3]
Ajuda porém não resolve. Pois até professores competentes de Relações Internacionais embarcaram, a seu modo, na difusão desta visão de mundo catastrofista, hoje vociferada por Rutte. Quando a guerra civil na Ucrânia foi internacionalizada, com a invasão russa em fevereiro de 2022, o autor destas linhas era professor de uma tradicional universidade europeia, onde lecionei por quase quatro anos. Espantou-me, naquela altura, a facilidade com que alguns colegas europeus reproduziam o mesmo alarmismo da OTAN, em linguagem acadêmica, como se as tropas russas estivessem em marcha rumo a Lisboa em meio a planos de dominação continental. E não apenas aqueles que constavam em alguma folha de pagamento em Bruxelas (fosse na OTAN, na Comissão Europeia ou ONGs e afins); eram principalmente os especialistas em ‘espaço pós-soviético’ que difundiam, dentro e fora da universidade, o mesmo catastrofismo obstinadamente pós-político: Putin tem que ser derrotado, ponto. Senão estaremos fritos. Ou falaremos russo.
Tal postura é uma desonra para a Teoria de Relações Internacionais, que nasceu sob a égide de figuras como Norman Angell, ícone pacifista e fervoroso ativista anti-imperialista, mesmo sendo um liberal. Já não se fazem liberais como antigamente, né?
Em sua obra magna, ele alertava sobre a grande ilusão das narrativas apocalípticas em voga no seu país, a Inglaterra, assim como em seu grande rival imperialista, a Alemanha. Os exemplos que ele trazia dos jornais da época são assustadoramente similares aos discursos anti-russos atuais. Angell publicou seu libelo pacifista originalmente em 1910, mas a guerra não tardou em estourar quatro anos depois: não por falta de corridas armamentistas, como crê a ideologia de gente como Rutte, mas justamente por causa delas, como temia Angell.[4] Não faltou, aliás, antes da Primeira Guerra, quem fizesse argumentos ‘geopolíticos’ que provavam cientificamente a necessidade de aplastar militarmente a potência-rival de turno… Deu no que deu.
É isso que perdem de vista as explicações vulgares calcadas apenas na ambição individual ou num economicismo reducionista, ou seja, aquelas que negligenciam a dimensão ideológica do problema. É claro que o complexo industrial militar faz parte da equação, sempre fará. O próprio Rutte enfatiza o ‘papel do setor privado’ em seus discursos. É claro, também, que figuras como um ex-primeiro-ministro holandês que renunciou por causa de um escândalo envolvendo programas sociais destinados às crianças em seus país, assim como suas contrapartes na União Europeia, possuem interesses pessoais em jogo (António Costa, presidente do Conselho Europeu, e Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, foram ambos acusados de corrupção em seus respectivos países e refugiaram-se em cargos europeus a fim de salvarem suas carreiras políticas).[5] Mas o pior é quando acreditam genuinamente no que falam; ou quando nos fazem acreditar. O risco ideológico é sempre maior do que o provocado pelo utilitarismo racional, por mais egoísta que ele seja. Os tecnocratas podem ser hipócritas, mas a visão ideológica de mundo que difundem é a verdadeira questão.
Na mesma semana, a Convenção de Viena foi rasgada a olho nu com os ataques coordenados às embaixadas da Venezuela em três capitais europeias. Por quem? Não sabemos. A OTAN fará algo contra esses terroristas? Estará ela mesma envolvida nos atentados? Melhor nem perguntar. A ideologia dominante no velho continente parece não conseguir superar o eurocentrismo e seu imaginário imperial-civilizatório, mesmo quando a realidade desafia seus dogmas mais queridos. Seus valores e normas ‘universais’ são desmentidos cotidianamente em cada uma de suas sociedades, todas racistas à sua maneira. Nem mesmo a destruição terrorista de suas infraestruturas vitais, por seus supostos aliados, como os gasodutos Nord Stream, os faz mudar de ideia. O perigo vem sempre do Oriente, ou do Sul.
Enquanto os líderes europeus ficam tentando amedrontar seu eleitorado doméstico com bravatas russofóbicas deste tipo, os norte-americanos seguem utilizando-os como financiadores de seu imperialismo particular, cada vez menos generoso com seus súditos de primeira-classe. E a direita radical em ambos os lados do Atlântico Norte cresce na esteira do militarismo, ao passo que toma a dianteira na recusa da guerra contra a Rússia por motivos ideológicos liberais (democracia vs. autoritarismo). Por sua vez, a esquerda europeia, com exceção dos pequenos partidos comunistas, silenciou ou vacilou sobre a guerra da Ucrânia desde o princípio, deixando a bandeira do pacifismo ser sequestrada e vendo sua relevância política minada em quase toda parte.
Em tal cenário, decerto sombrio, não podemos nos dar ao luxo cair nas paranoias coletivas a que os donos do poder nos induzem, por velhacaria ou reflexo inconsciente, a todo momento. Quem não se lembra das manchetes d’O Globo e do resto da grande imprensa acerca da “invasão haitiana” ao Brasil?[6] Mas quem havia invadido o Haiti era o Exército Brasileiro…
A lição que fica é simples: a política do medo deve sempre ser vista com desconfiança, mesmo entre quem se entende de esquerda ou progressista; e até mesmo em ocasiões de pandemia ou durante outras emergências reais. A política do medo é sempre calhorda. Geralmente é praticada por quem não tem melhores argumentos ou precisa distrair as massas. Mas funciona. E não adianta “checagem de fatos” quando os próprios fiscais já são ideologicamente determinados – pois é impossível não sê-lo.
O que sim, é possível, começa pela resistência à indução do pânico social. Mas precisa ir muito além. E esse além não será pensável, nem alcançável, mediante a exploração da paranoia de ninguém.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.