Durante o primeiro aniversário da Guerra das Malvinas realizado durante o governo de Javier Milei foi atualizada a disputa pelas memórias do conflito bélico. Enquanto um setor do Executivo enalteceu o colonialismo, outro incorporou toda uma camada de veteranos da guerra em postos chave da administração pública. Esta nota apresenta um mapa para entender quem é quem neste revival militar.
Guerra das Malvinas: causa, guerra, “façanha”. O dia 2 de abril é uma data com muitos significados para os argentinos. Esse é o Dia Nacional do Veterano e dos Caídos na Guerra das Malvinas, dia que homenageia os heróis desse conflito. Apesar de representar a última manobra da ditadura para se manter no poder, é uma data que relembra a morte de 634 soldados argentinos, mais de 1.000 feridos, uma dolorosa série de suicídios e os efeitos posteriores na saúde mental de muitos dos que lutaram nas ilhas e que, portanto, tem forte um apelo ao patriotismo. Embora não existam números oficiais, de acordo com ex-combatentes, o número de suicídios é próximo ao de mortos em combate. Ao mesmo tempo, é a data que atualiza o compromisso nacional com a reivindicação de soberania.
Por um lado, as Malvinas são uma fratura exposta para um governo formado por diferentes campos da direita argentina, com contradições evidentes entre seu lado neoliberal (aberto às empresas multinacionais) e sua linha nacionalista e conservadora. Por outro lado, existe um grande número de militares veteranos dessa guerra que estão encarregados, nesse momento, de executar funções sensíveis de segurança nacional, inteligência e de defesa.
Dessa forma, a Guerra das Malvinas se transformou em uma referência para esses militares que querem reivindicar um protagonismo durante esse conflito, mas que também tiveram um papel importante durante a ditadura militar. Existe uma tentativa de homenagear repressores da ditadura, alguns deles condenados, como heróis da guerra das Malvinas. Uma operação de comunicação que visa limpar a imagem maculada dos militares torturadores que atuaram na ditadura.
As Malvinas como fratura entre as direitas
Conforme revelado em um perfil publicado pela revista Crisis em 2021, a atual vice-presidente da Argentina, Victoria Villarruel, tem sangue militar. Seu pai, Eduardo Villarruel, participou do Operativo Independencia, depois serviu no Campo de Mayo (zona militar localizada em Buenos Aires) durante os anos da ditadura e mais tarde lutou nas Malvinas, na mesma companhia liderada pelo ex-combatente das Malvinas e ex-deputado de extrema direita, Aldo Rico. Ele é um dos militares cujo ativismo reivindica até hoje o papel que as forças armadas tiveram nos Anos 70. Esses militares reivindicam reconhecimento por parte do Centro de Estudos Jurídicos sobre Terrorismo e suas Vítimas (CELTYV) como heróis da Guerra da Malvina. Mas o irônico é que essa organização investiga crimes cometidos durante a ditadura por esses mesmos militares. Portanto, neste ano, a data que relembra os caídos desse conflito vem carregada de uma pauta dos militares de extrema direita, que pedem esse reconhecimento público, mesmo tendo cometido violações dos Direitos Humanos em outro momento da história.
Importante referência da “família militar” argentina, especialmente entre os aposentados, a vice-presidente da Argentina, Victoria Villarruel, representa também uma tradição nacionalista de direita que questiona o globalismo de seus aliados no partido governista A Liberdade Avança (LLA, por sua sigla em espanhol). Essa contradição entre os militares e o campo político do atual presidente da Argentina ficou evidente durante a campanha presidencial, quando Milei citou a ex-primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, como uma das grandes líderes da humanidade. Esse conflito ideológico entre aliados pode ser sentido nas redes sociais, nos fóruns de discussão militar. Já nos discursos legislativos, é fácil detectar que as Malvinas são um ponto sensível em Congresso dominado pela direita, que tem como prioridade demonizar o kirchnerismo, a esquerda, o feminismo e os direitos humanos. Mas, o que podemos observar também é que no interior dessa extrema direita existem profundas contradições, entre as quais se encontra o problema da soberania.
É importante observar também como a vice-presidente da Argentina não teve influência nas escolhas dos titulares dos ministérios da Segurança e da Defesa. Os militares que assumem cargos políticos foram indicados pela ex-candidata à Presidência, Patricia Bullrich, atual aliada de Milei. Outra pessoa influente nessa área é o chefe de gabinete do presidente, Nicolás Posse. Bullrich, porém, não cumpriu suas promessas de campanha de igualdade salarial para militares e policiais, e, além disso, o governo aumentou a pressão sobre eles para que intervenham na luta contra o tráfico de drogas em Rosário.
Enquanto isso, Villarruel ficou relegada à implementação de suas pautas na esfera legislativa e dos novos gabinetes criados para trabalhar na difusão das novas interpretações ideológicas da história das Malvinas como um feito heróico, independente da estrutura do terrorismo de Estado em que ocorreu.
Em setembro de 2023, no meio da campanha presidencial, Villarruel organizou um evento na Assembleia Legislativa de Buenos Aires que tinha como convidados de honra um oficial militar acusado de tortura e maus-tratos de soldados argentinos nas Malvinas, o tenente-coronel reformado Marcelo Llambías, e o atualmente advogado de repressores, presos por crimes contra a humanidade. A co-organizadora do evento, a parlamentar Lucía Montenegro, do partido LLA, é filha de Antonio Montenegro, um oficial militar que cultivou laços estreitos com o líder dos Carapintadas, Mohammed Ali Seineldín, que comandou o 25º Regimento de Infantaria na guerra, e com o líder neonazista Alejandro Biondini.
Os Carapintadas foram um grupo de extrema-direita que organizou vários levantes militares entre 1987 e 1990 para protestar contra os julgamentos de militares por violações aos direitos humanos.
A Comissão de Parentes dos Mortos nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul é uma organização não governamental que ocupa um lugar importante na cruzada arquitetada pela vice-presidente Victoria Villarruel.
Fundada em setembro de 1982, seu primeiro presidente foi Héctor Omar Cisneros, irmão de “Perro” Cisneros, companheiro de batalha do pai de Villarruel. Cisneros renunciou à Comissão de Parentes quando veio a público que ele havia sido membro do Batalhão de Inteligência do Exército, entre 1981 e 1983, período em que a ditadura argentina matou e torturou milhares de civis.
Conforme citado pelo magistrado Alejo Ramos Padilla, juiz federal argentino e doutor em Direitos Humanos, em sua tese de doutorado intitulada “Malvinas y Derechos Humanos: disputas por la causa Malvinas”, a Comissão cresceu exponencialmente durante os governos de Menem e Macri e foi a principal fonte de oposição à investigação de tortura e tratamento cruel cometidos contra suas próprias tropas durante a guerra, bem como à identificação dos túmulos no cemitério de Darwin, com a qual eles finalmente concordaram.
Nomes da direita que encampam essa bandeira
Atualmente, a diretora dessa organização de parentes de militares das Malvinas é a atual deputada María Fernanda Araujo, irmã de Elbio Araujo, um soldado que caiu nas Malvinas. Araujo foi a terceira parlamentar mais votada da coalizão política que tinha Javier Milei como candidato. Seu partido, o Frente NOS, de extrema-direita, foi fundado por um dos membros do Carapintada, Juan José Gómez Centurión, veterano da Guerra de Malvinas, na mesma companhia do extremista Seineldín. Gómez Centurión criou esse partido ultraconservador ao abandonar o governo de Mauricio Macri, onde foi vice-presidente do Banco Nacional e diretor-geral de Bancos. Foi forçado a renunciar graças a uma manobra da então ministra de Segurança de Macri, Patrícia Bullrich, com quem manteve um intenso enfrentamento político.
A deputada nacional, Lourdes Arrieta, eleita pelo LLA na cidade de Mendoza, é filha de Tomás Arrieta, que lutou nas Malvinas como Cabo Primeiro do Regimento de Infantaria 12, e foi denunciado por retirar comida dos soldados que estavam sob seu mando. No dia de sua posse, Arrieta fez um juramento dizendo: “por Cristo nosso senhor, pelos heróis das Malvinas, pela pátria e a liberdade”. Numa entrevista recente ela disse que “Malvinas é uma causa em aberto, a questão da soberania ainda tem um papel efêmero. Mas, creio que dando segurança nacional e internacional ao povo argentino, podemos recuperar essa pauta”.
Por fim, a deputada do LLA, Juliana Santillán, de Mar del Plata, é filha do suboficial major das Forças Armadas da Argentina, Carlos Santillán. Em uma entrevista ao jornal Infobae, a parlamentar expressou claramente os sentimentos da direita nacionalista em relação ao projeto político do qual agora faz parte. “Represento com orgulho a família militar, o exército e a marinha. Estou próximo da família militar que vê em Javier Milei a escolha mais acertada para mudar o rumo da Argentina. Nós fazemos parte de uma visão de direita muito conservadora, mas, diante de todas às forças políticas de direita e esquerda, que não funcionaram no passado, nós acreditamos que Javier Milei se tornou uma opção acertada”.
Escanteada no Senado, Villarruel nomeou, em 15 de fevereiro, o jornalista e ex-correspondente de Malvinas do Canal 7 (televisão pública), Nicolás Kasanzew, como chefe da Diretoria do Legado das Malvinas, um órgão das Forças Armada da Argentina.
O Centro de ex Combatentes das Ilhas Malvinas La Plata (Cecim), uma organização formada exclusivamente por soldados que lutaram nas ilhas, repudiou essa nomeação e denunciou que Kasanzew foi o representante da ditadura no canal oficial durante a guerra, e que “ele cobriu esse conflito na condição de único jornalista no terreno, devido à censura”, sendo o porta-voz da tese “estamos vencendo”, com a qual a junta militar mentiu para a população argentina.
A Diretoria do Legado das Malvinas é a responsável pela administração do Museu das Malvinas e das Ilhas do Atlântico Sul, localizado dentro do Espaço para a Memória e os Direitos Humanos, no terreno da antiga ESMA.
O coronel aposentado Augusto Vilgré La Madrid, também veterano de guerra, foi nomeado diretor do museu. Em 1989, o oficial recém-nomeado esteve envolvido na repressão da tomada do quartel La Tablada e se gaba em suas redes de ter participado dessa operação em que o exército desapareceu com quatro pessoas, mesmo em tempos de democracia. Ele se orgulha de uma foto em que aparece caminhando sobre os corpos recém-mortos dos ocupantes. A nomeação de Vilgré La Madrid é um caso particular de avanço dos militares nos campos da memória e da educação, já que o Museu é um espaço educacional para as novas gerações, visitado todos os dias por grupos escolares.
No final de fevereiro, circulou nas redes sociais um vídeo da homenagem prestada pelo 30º Regimento de Infantaria de Monte 30, em Misiones, em que mostrava o militar Horacio Losito, como “Herói das Malvinas”. Losito lutou ao lado de Villarruel e mais tarde foi dispensado do Exército Argentino. O que não é mencionado na homenagem é que Losito foi condenado por crimes contra a humanidade pelo Massacre de Margarita Belén (1976) e por seu envolvimento em um centro de detenção clandestino na cidade de Corrientes. Além disso, em 1988, ele participou do levante dos Carapintada em Monte Caseros, foi condenado pelo Conselho de Guerra e posteriormente perdoado.
Durante a gestão da ex-ministra da Defesa, Nilda Garré, entre 2010 e 2013, durante o governo de Cristina Kirchner, as Forças Armadas suprimiram esse tipo de homenagem, assim como reconhecimentos ou exaltações públicas de pessoas que haviam atentado contra a ordem democrática e constitucional.
No entanto, o atual ministro da Defesa disse, pouco antes de 24 de março, que as “Forças Armadas foram demonizadas, vilipendiadas, difamadas, perseguidas, porque houve um viés ideológico”. Esse revisionismo tem como objetivo destacar a participação dos militares na Guerra das Malvinas e minimizar as atuações em crimes contra a humanidade e revoltas contra a ordem democrática. Agora, repressores e ex-integrantes do levante dos Carapintadas são homenageados como heróis nacionais.
As manobras políticas por parte da vice-presidente da República sobre o tema das Malvinas pareciam ter atingido seu ápice com a proposta de realizar um desfile histórico em 2 de abril: uma grande marcha militar do Congresso até a Praça de Maio, em frente à Casa Rosada. Porém, após os anúncios pomposos de Villarruel, o Poder Executivo informou que “não havia dinheiro”, e o desfile foi adiado para 9 de julho, uma data em que as referências histórico-políticas e militares são diferentes, e que, portanto, serão outras as lideranças que as poderão capitalizar em cima desse evento.
As verdadeiras forças do céu
Não é apenas Villarruel que se relaciona com as forças armadas; Bullrich e o setor mileista têm suas próprias alianças políticas com os militares. O avanço militar não responde à estratégia de um bloco orgânico e monolítico à maneira de um partido militar, mas assume a forma de um “militarismo civil” que incentiva a participação na vida política. Para entender o mapa político desse ativismo militar, é necessário atentar para as diferenças entre militares ativos e aposentados, para a competição entre forças (exército, marinha e força aérea), para a classe militar (especialmente, estar atentos a detalhes como o ano da formatura dos grupos que estão chegando ao poder), os batalhões que lutaram nas Malvinas. Essas são linhas que estabelecem afinidades, competições e desconfianças.
A Corporación América (CA), o enorme conglomerado de empresas do qual Milei foi funcionário por muitos anos, assim como diversos funcionários de seu governo, tem, por meio de seu proprietário Eduardo Eurnekian, uma conexão financeira, política e emocional especial com as Ilhas Malvinas. Eurnekian, que pediu para ser enterrado nas Malvinas, recebeu a medalha de Oficial da Ordem do Império Britânico por sua contribuição para promover o relacionamento entre o Reino Unido e a Argentina. O empresário tem um discurso centrado nos valores da paz e da reconciliação.
Além disso, a reforma do cemitério de Darwin foi um episódio central desse vínculo: em 2004, Eurnekian doou um milhão de dólares para realizar a obra por meio de um acordo com a embaixada britânica na Argentina. Ele também financiou viagens de familiares de militares combatentes das Malvinas às ilhas.
O já mencionado deputado Araujo, membro de um dos principais grupos familiares de militares, é a pessoa que faz a mediação da relação entre Villarruel e a empresa América. Mas, o principal elo entre a CA e o universo das Malvinas é um funcionário sênior da Eurnekian: o ex-capitão naval e veterano de guerra Roberto Curilovic, responsável pela segurança aérea e gerente de desenvolvimento de negócios e programas internacionais da Aeropuertos Argentina 2000, a principal empresa da Corporação, cujas operações exigem vínculos permanentes com as forças armadas. A concessão dos aeroportos, renovada há dois anos, remonta a 1998, quando Carlos Menem decretou a privatização de todos os aeroportos que faziam parte do Sistema Nacional de Aeroportos.
Além dos casos já mencionados, há pelo menos dois militares aposentados que estiveram nas Malvinas e que hoje atuam na direção da agência que coordena o sistema nacional de inteligência do país. Um deles é Celestino Mosteirin, encarregado da Secretaria de Produção de Inteligência Nacional. Em 1982, aos 19 anos de idade, ele era segundo-tenente e serviu como segundo comandante da Seção de Apoio, Companhia B, do 12º RI, com sede em Mercedes, Corrientes. Ele era cadete da Turma 113, conhecida como “Ilhas Malvinas”, porque eles iniciaram o Colégio Militar em 1979. Os já mencionados Marcelo Llambías e Augusto Vilgré La Madrid pertenciam à mesma classe. O Contra-Almirante aposentado Oscar Patricio González, que chefia a subdiretoria de Doutrina da AFI e pertence à 106ª classe, esteve nas Malvinas como membro do Batalhão de Artilharia e Campo. Assim como Llambías, ele recebeu a medalha de Honra em Combate.
Após 42 anos do fim da guerra, a questão das Malvinas aparece como um campo de disputa política. Como o verso da canção de La Mosca, que fala de “los pibes de Malvinas que jamás olvidaré” (os meninos das Malvinas que nunca esquecerei), a temática das Malvina reúne uma comunhão patriótica transversal, muito poderosa e altamente relevante. Não é de surpreender, portanto, que ela seja uma fonte privilegiada de significados e disputas. Enquanto os atuais detentores do poder acumulam e disputam com esses materiais simbólicos, os setores comprometidos com a democracia popular não conseguem ter nenhum grau de influência nas comemorações que envolvem a Guerra das Malvinas, e não conseguem dar a ele um significado diferente. Essa retomada militar, por outro lado, vem acompanhada de novos ataques aos direitos das maiorias, como ocorreu durante a ditadura. A luta material contra os planos de ajuste do governo de extrema direita e a sensação de impotência por não poder se defender de todos os ataques aos setores sociais não podem impedir a participação em um debate fundamental sobre o significado histórico de eventos tão significativos como os das Malvinas.
(*) Artigo produzido pelo Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) e pela Equipe de Pesquisa Política (EDIPO). (*) Publicado originalmente pela Revista Crisis, da Argentina.
(*) Tradução: Fania Rodrigues