Quinta-feira, 10 de julho de 2025
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No léxico político da União Europeia, há uma palavra mágica chamada “consenso”. Sempre que se fala em “consenso europeu” desce um manto de inevitabilidade sobre os cidadãos e os Estados-Membros, conferindo às decisões um caráter de imperativo categórico que transcende o debate público. Há muitas dúvidas sobre como se formam estes consensos mas, uma vez instalados, são implacáveis. O presente momento histórico assiste à emergência de um novo e determinante consenso europeu: a priorização estratégica do rearmamento. Mas, antes de lá chegar, pode ser útil uma análise retrospectiva. 

Na primeira década do século, com o alargamento a leste e a circulação de uma nova moeda (o euro), o consenso europeu clamava pela coesão econômica, por investimentos em infraestruturas e pelo endividamento nacional sem peso na consciência. Contudo, a introdução de uma moeda única em economias com assimetrias estruturais significativas, na ausência de mecanismos de reequilíbrio fiscal, teve consequências desastrosas para os países do sul da Europa. A perda de soberania monetária e orçamental deixou países como Portugal expostos aos “mecanismos de ajustamento” impostos por tratados pouco democráticos e ajustados aos interesses do eixo franco-alemão. Foi assim que Portugal se precipitou na crise financeira de 2008: endividado, vulnerável à especulação sobre as dívidas soberanas e submetido ao novo mantra de que tínhamos vivido “acima das nossas possibilidades”. A austeridade era o novo consenso — cruel, autoritário e premonitório dos ventos neofascistas.

Coletiva de imprensa do Secretário-Geral da OTAN, Mark Rutte, após a Cúpula da OTAN de 2025, em Haia. (Foto: NATO North Atlantic Treaty Organization / Flickr)

Coletiva de imprensa do Secretário-Geral da OTAN, Mark Rutte, após a Cúpula da OTAN de 2025, em Haia.
(Foto: NATO North Atlantic Treaty Organization / Flickr)

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Desse consenso fazia parte uma senhora chamada Maria Luís Albuquerque, ministra das Finanças de Portugal durante o governo de direita que aplicou a austeridade. Em Portugal, foi responsável por cortes brutais no Estado Social, nos salários e nas pensões. Em Bruxelas, agora nomeada Comissária dos Serviços Financeiros e da União da Poupança e dos Investimentos, exige que o dinheiro dos pensionistas europeus sirva para capitalizar a indústria de defesa. É impossível não reconhecer a coerência sistémica: o sacrifício social de ontem é instrumentalizado para legitimar os imperativos securitários de hoje.

Está instalado o novo consenso europeu: a corrida ao armamento. A Cúpula da OTAN, realizada em simultâneo com o genocídio em curso na Palestina, o ataque ilegal de Israel ao Irã e a continuação da agressão russa à Ucrânia, deixou exposta a natureza imperialista deste consenso: a submissão europeia a Trump. A sua agenda agressiva de supremacia no Oriente Médio, com Israel como protagonista e assente na doutrina neoconservadora da “mudança de regime” e no genocídio do povo palestino, parece ter sido adotada sem reservas. A adesão da União Europeia a esta agenda comprova um alinhamento sem precedentes, em contraste até com a história recente da oposição da França e da Alemanha à agressão ilegal ao Iraque em 2003.

A humilhação atingiu o seu auge na recepção diplomática oferecida pela OTAN a Donald Trump. Foi vexante ver os líderes europeus vestidos a rigor para um jantar de gala onde se estendeu o tapete vermelho à “Sua Majestade”, como o bajulou Mark Rutte, Secretário-Geral da OTAN. Numa mensagem que Trump se apressou a tornar pública, Rutte escreveu-lhe: “As suas ações no Irã foram verdadeiramente extraordinárias e algo que mais ninguém se atreveu a fazer. Isso torna-nos a todos mais seguros”. “Donald, conduziu-nos a um momento muito, muito importante para a América, a Europa e o mundo. A Europa vai investir (em defesa) em grande escala, e deve fazê-lo, e será a sua vitória. Vemo-nos no jantar de Sua Majestade!”

Depois de conhecidas as suas mensagens de desprezo, só cabia aos líderes europeus virar as costas e preservar alguma dignidade. Mas ficaram de fantoches na festa de Trump. Esta atitude assinala uma reconfiguração das relações de forças. Se alguém sonhou em contrapor a autonomia estratégica europeia a uma OTAN nas mãos de Trump, enganou-se. Ela será completamente secundarizada numa entronização subserviente ao líder norte-americano da extrema-direita.

A materialização deste consenso traduz-se em metas orçamentárias concretas. A proposta avançada pelo secretário-geral da OTAN para que os Estados-Membros aloquem 5% do seu PIB à defesa – um valor que, no caso português, excede o orçamento da Educação – levanta questões fundamentais. Em nome desse número, também ele consensual, já há quem admita cortar no Estado Social para investir em armas. O complexo industrial-militar clama por dinheiro público com o mesmo vigor com que o sistema financeiro reclamava salvação há uns anos.

O discurso oficial legitima esta transição com o argumento de que existe um “perigo existencial” para a Europa. No entanto, o enquadramento desta ameaça merece um escrutínio rigoroso. É paradoxal que se alerte para uma ameaça russa enquanto se normalizam relações com atores como Trump, seu aliado confesso. Além disso, o argumento ignora as reais capacidades bélicas europeias. Mas, mais importante, a invocação deste perigo serve para marginalizar os perigos existenciais realmente existentes.

Perigo existencial é a aniquilação de um povo, o genocídio palestino, e a isso os líderes europeus assistem impávidos e até se dão ao luxo de exportar armas para Israel. Esta catástrofe representa a falência sistêmica do direito internacional e dos valores humanistas que a Europa professa.

Perigo existencial é a emergência climática, uma ameaça global e cientificamente comprovada à sustentabilidade da vida no planeta e da própria humanidade, cujas soluções exigem investimentos maciços que são agora preteridos em favor da despesa militar.

Perigo existencial é a ascensão do extremismo político interno, a degradação do contrato social e o aumento das desigualdades que constituem um terreno fértil para a violência neonazi e movimentos de extrema-direita.

A presente corrida ao armamento transcende a mera resposta a uma difusa ameaça externa. Corresponde, em larga medida, a uma estratégia de revitalização de um modelo econômico capitalista em crise, que encontra na indústria da defesa um novo motor de crescimento. Serve igualmente a interesses políticos que instrumentalizam o medo para consolidar o poder e desviar a atenção de falhas de governação internas. Num mundo de hienas, bichos carnívoros e oportunistas, a Europa passeia os seus fascistas sem perceber que carrega em si todos os perigos existenciais.

Este consenso não é nosso. É mais um consenso das elites. Este é o consenso do negócio da guerra. Cá estaremos para lutar contra ele.

(*) Joana Mortágua foi deputada da Assembleia da República de Portugal e é dirigente nacional do Bloco de Esquerda.