Francisco e Milei, duas Argentinas
Enquanto mundo espera escolha do próximo Pontífice após morte do papa latino-americano, uma anti-versão sombria e pervertida de Francisco governa a Argentina
“Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem traça nem ferrugem corroem e onde ladrões não minam nem roubam: Para onde está o teu tesouro, aí estará o seu coração também. Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamón” (Mateus 6:19–24)
Há muito ainda o que se dizer sobre o papado do argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Em um ciclo de doze anos, ele defendeu os pobres e oprimidos, foi uma voz ativa na defesa dos palestinos, se mostrando também aberto às demandas da modernidade – na contramão de um mundo que viu a extrema-direita reaparecer. Mas na Argentina de Francisco, o atual governo, sob Javier Milei, equivale a um duplo antagônico seu.

(Foto: Presidencia de la República Mexicana / Wikimedia Commons)
O paradoxo do legado de Francisco na sua terra natal nos leva, obviamente, a pensar a situação mais geral da América Latina em tempos de desfazimento ou transmutação do império americano – no qual democratas e republicanos polarizam sobre nosso destino, com os primeiros dizendo que somos seu frontyard [o jardim, a entrada] e os últimos bradando que somos o backyard [o quintal, os fundos] deles.
A Argentina é um raro caso de país latino-americano que chegou a ser rico, mas entrou em uma lenta, dolorosa e dramática agonia. Francisco e Milei se tornaram a expressão extrema dos dois caminhos radicalmente diferentes, em relação aos quais, talvez em muito pouco tempo, os argentinos terão de se decidir. Mas essa bifurcação esconde determinados elementos sutis e determinantes.
De um lado, o que será o próximo Conclave é central. O legado de Francisco será continuado ou se tornará um ponto fora da curva no catolicismo? E como isso pode impactar na atual Argentina? Por outro lado, a terapia de choque de Milei colapsará ou terá o mesmo destino daquelas que fizeram Margaret Thatcher, no Reino Unido, ou Ronald Reagan, nos Estados Unidos, que normalizaram a ordem neoliberal?
A crise da burguesia nacional argentina
Como um PIB per capita na casa de 60% do americano antes da Primeira Guerra, a Argentina viu seu esgotamento econômico vir não só na forma da crise de seu modelo, mas também pelo bloqueio geopolítico do eixo anglo-americano, que interveio generosamente no país, apoiando e sendo apoiado pela fração entreguista da burguesia – não sem um levante da burguesia nacional em um complexo arranjo de classe que arrebentou no peronismo.
O racha da burguesia argentina contribuiu para a crise dos anos 1930, mas o surgimento de um bloco nacionalista heterogêneo pôde tomar forma efetiva, nos anos 1940, com a liderança do general Juan Domingo Perón, ainda que sob cerrada oposição que o derrubou e exilou nos anos 1950. Mas a história argentina a partir dali será uma sucessão de golpes militares e ingovernabilidade crônica.
Nos anos 1970, a solução encontrada é o retorno do próprio Perón, que ressurge como uma panaceia para a Argentina. O velho general, depois de um longo exílio na Espanha franquista, tricotava com as duas mãos, mas agora tinha de unir duas alas radicalmente opostas de seu próprio movimento – que ia da extrema direita à esquerda revolucionária, cujos militantes, literalmente, se matavam nas ruas enquanto reivindicavam a liderança de Perón.
É a ala direita do peronismo que orquestrará a última, e brutal, ditadura militar do país e sofrerá a vergonhosa derrota militar nas Malvinas, levando o país ao caos. Assim como será o peronismo a introduzir o neoliberalismo no país nos anos 1990 com Raul Menem – mas é, ironicamente, o mesmo peronismo que assume o país depois da crise de 2001 e empreende reformas sociais antineoliberais sob a forma do kirchnerismo.
Sob a liderança de Nestor Kirchner, a Argentina sai do buraco e se alinha às iniciativas progressistas do continente, com destaque para Hugo Chávez na Venezuela e Lula no Brasil. Nestor é sucedido pela esposa, Cristina; depois ele falece ainda muito jovem, quando ela se reelege. Mas quem se elege papa em 2013 foi o então cardeal Bergoglio, opositor do kirchnerismo, principalmente pela agenda de costumes avançada da então presidenta.
A transformação do cardeal Bergoglio no papa Francisco em 2013 produziu, ironicamente, um giro progressista nele próprio, o que poderia favorecer o kirchnerismo que, no entanto, é atropelado pelas circunstâncias: em 2015, Cristina não consegue sequer pautar exatamente um candidato orgânico seu, enquanto a direita propriamente dita, o bloco burguês entreguista, vence no voto com Macri em um prenúncio dos anos posteriores.
Um adeus aos anos dourados do século XXI
A agenda reformadora do papa Francisco foi surpreendente e positiva. Ela mais parecia uma consequência natural da América Latina do século XXI, como polo da inovação e progresso social integral, mas sua chegada contrastou com a maré de reação às reformas sociais de anos antes. A vitória de Maurício Macri em 2015 é o primeiro grande triunfo eleitoral que atesta esse movimento.
Enquanto cardeal, Bergoglio tomou uma posição intermediária, de defesa da doutrina social da Igreja, mas matizada com posturas duras contra a agenda de costumes generosa do kirchnerismo, o que levou a embates consideráveis com o governo de Cristina – já enquanto papa, Francisco adotou um discurso tolerante e aberto, ainda que tenha sentido a dificuldade prática de fazer grandes reformas estruturais.
A agenda de Macri no poder retomou políticas semelhantes às ditaduras, ou às eleições semi-farsescas dos anos 1960 na Argentina, só que ali pelo voto. Havia um grau de civilidade política nos modos que Macri, um ultraconservador com maneirismos de aristocrata italiano, tinha de manter no contexto do seu partido hiperburguês, povoado com sobrenomes das elites argentinas.
Macri foi, no entanto, derrotado nas urnas em 2019, depois de quatro anos de oposição cruenta; mas com uma nova recomposição na qual o bloco centrista do peronismo apresentou o candidato Alberto Fernández, dessa vez com Cristina de vice – ex-chefe de gabinete de seu marido e um político próximo à centro-direita neoliberal, Fernández foi reinventado, porém, como um perfeito progressista latino-americano.
A pandemia, os erros e bizarrices de Fernández o tornaram um melancólico presidente de um mandato só, mas num cenário em que o macrismo não se reapresentou na alternância de poder. Ali, a figura neurótica, descontrolada e mal-educada de Javier Milei aparece, com seu peculiar anarcocapitalismo, a antipolítica e a defesa radical do privatismo que toma para si a indignação das massas.
Longe de simplificações, Milei não é apenas o “Trump argentino”, mas uma dissimulada mistura de showman com administrador de massa falida, cuja performance hipnotiza seus compatriotas enquanto lança mão de uma política radical de defesa dos credores argentinos – tudo enquanto mantém a máquina viva, costurando com democratas e republicanos americanos, que intermediam empréstimos incalculáveis do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Milei e o feitiço de Mamón
No olho do furacão do endividamento, a conta da Argentina simplesmente não fecha. O processo atual de empréstimos do FMI ao país serve para o pagamento de credores, gerando uma dívida com o órgão internacional, coisa que os argentinos conhecem bem: condições impossíveis, exigências de cortes na área social e desinvestimento, o que não tem outro caminho senão o empobrecimento.
Milei, no entanto, se equilibra sob as promessas de enriquecimento individual, ataques ao “sistema” e uma fúria iconoclasta voltada aos marcos da civilização. É um clamor bárbaro, e ao mesmo tempo ocultista, estranho ao iluminismo, mas também a Francisco – e nada mais estranho e contrastante ao tipo de cristianismo praticado e professado pelo papa Francisco, principalmente como pontífice.
Enquanto isso, o bloco de oposição argentina parece paralisado, exceção feita a Axel Kicillof, o jovem governador de Buenos Aires, das raras figuras a destoar do coro de catatônicos – mas um fato é verdadeiro: o antigo arranjo policlassista, sob a liderança da burguesia nacional, que sustentou o peronismo nos seus giros está, na melhor das hipóteses, em coma e a explicação para isso é básica; a fração nacional da burguesia colapsou.
O próximo Conclave se iniciará em poucos dias para católicos de todo o mundo, enquanto este ano na Argentina haverá eleições legislativas, nas quais um terço do Senado e quase metade da Câmara serão renovados. Ambas as disputas serão duríssimas, mas a universalidade católica terá repercussões no cenário particular da Argentina, cuja eleição de meio de mandato será um interessante teste de forças internacional.
Não foram poucos os crimes cometidos sob o nome de Deus na história, muito embora seja impossível negar que parte do legado de resistência veio da ala progressista da Igreja, com sua perspectiva teológica centrada na libertação dos pobres. Em tempos de adoração internacional a Mamón, um dos Sete Príncipes do Inferno na tradição, cujo sumo-sacerdote na Argentina é Milei, essas duas disputas se entrecruzam.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.
