A recente reunião do Grupo dos 20 propiciou o ambiente para que se retomassem as discussões acerca de sua legitimidade e competência, vez que o Grupo é percebido em alguns círculos como um concorrente da Organização das Nações Unidas. O próprio Presidente Barack Obama proclamou o G20 como o “ponto focal para a coordenação internacional”, relegando o mandato da ONU sobre direitos humanos, igualdade de gênero, boa governança e manutenção da paz à competência do Grupo.
Sem aprofundar a dinâmica das relações entre o G20 e a ONU, a percepção do G20 nas discussões sobre os direitos humanos parece bastante conveniente, vez que propicia a oportunidade de abordar a temática entre países de concepções filosóficas diferenciadas, fora do âmbito institucional da ONU. Num momento em que a necessidade de diálogo intercultural entre as nações mostra-se urgente nas agendas domésticas e internacional, propiciar aos intelectuais de países não ocidentais voz mais ativa, em foro que emergiu da iniciativa de países em desenvolvimento, resta no mínimo interessante.
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Os atentados de 11 de setembro tornaram incontestável a urgência do diálogo intercultural. De imediato, foi nas culturas que se buscou respostas para compreender as razões que levaram ao ocorrido. Paralelamente ao discurso do “choque de civilizações”, houve quem afirmasse que se trataria sim de um “conflito de indiferenças” de culturas que jamais dialogaram, ou que pelo menos não dialogaram o suficiente para a construção de um caminho de tolerância e respeito. Inseridas num contexto de globalização econômica, é quase inimaginável a existência de culturas intocáveis e protegidas de influências externas, sendo que em muitos casos as identidades culturais mesclam-se e transformam-se. Em outros casos, porém, a imposição universal de valores inerentes aos países dominantes no cenário econômico internacional, provoca repulsa em determinadas culturas, contribuindo para o fortalecimento dos fundamentalismos.
Vandana Shiva, importante intelectual indiana na área dos direitos humanos, afirma que os atentados terroristas são fruto da erosão das formas de identidade múltiplas. Aqueles que são vulneráveis e “disponíveis” a ser alistados, pagos ou explorados pelos extremistas para cumprir ações de terrorismo são aqueles que foram afastados à força da sua terra, que foram considerados supérfluos e “excedentes” com relação às próprias sociedades; ou aqueles que foram mobilizados e recrutados por meio da construção fictícia de identidades que se excluem umas às outras com base em maniqueísmos como “ou isto ou aquilo”. Acrescenta que nunca deve ocorrer “ou isto ou aquilo”, mas sempre um “isto e aquilo”, e que só será possível desconstruir a idéia das identidades incompatíveis cultivando a responsabilidade de cada um com relação ao seu lugar de origem e junto com a consciência de que cada um forma parte de uma humanidade comum, que compartilha o mesmo planeta. Nessa perspectiva, há uma íntima conexão entre sustentabilidade ecológica e justiça social.
Para as classes rurais, os recursos naturais e ecológicos constituem a fonte principal do seu sustento. Por isso, quando esses recursos são objeto de apropriação indevida pelas grandes corporações transnacionais, chega-se a uma situação de insustentabilidade ecológica e, conseqüentemente, à injustiça social e econômica.
Por outro lado, a sustentabilidade ecológica e a justiça social estão conectadas à paz, porque é justamente da injustiça social e do crescimento da desigualdade que o fundamentalismo se alimenta. A história da paz e da guerra na humanidade é resultado da gestão de diálogos entre coletivos diversos, e essa história nos revela a proximidade entre a coesão e a ruptura social, entre a tolerância e o fundamentalismo. De mais a mais, não é por acaso que a quase totalidade dos conflitos armados existentes ocorre em países do mundo em desenvolvimento.
Vandana Shiva combate a idéia simplista de que a classe pobre é composta daqueles que demonstraram incapacidade de enquadrar-se nas regras capitalistas. Para a ativista, os pobres são aqueles que ficaram excluídos de qualquer possibilidade de integrar-se no sistema, uma vez que a eles impediu-se o acesso aos próprios recursos de um sistema econômico que destrói o controle público sobre o patrimônio biológico e cultural. Nesse sentido, defende a necessidade de preservar os bens comuns do avanço desenfreado da globalização neoliberal, impedindo a exclusividade das formas de vida e de conhecimento e construindo o que foi denominado de “democracia ecológica”. Trata-se de uma democracia que visa à proteção da biodiversidade, e ao reconhecimento dos vínculos inquebráveis entre sustentabilidade ecológica e justiça social.
O conceito de biodiversidade, por sua vez, pode ser comparado ao de diversidade cultural. A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da Unesco, adotada no imediato pós-11/09/2001, reconhece a “diversidade cultural” como “patrimônio comum da humanidade”. A preservação dos ecossistemas depende diretamente da variação de seus elementos, sendo que a perda de um desses elementos pode implicar transformações catastróficas para outros. Da mesma forma, a diversidade cultural é o alicerce da permanência e da evolução das culturas.
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No século XXI, o modelo de Estado que deve prevalecer é o do Estado Democrático, Social e Ambiental, aquele que projeta sua ênfase no valor da dignidade humana, envolvendo-se na proteção dos direitos fundamentais compreendidos como “bloco indivisível de direitos”, em que a proteção dos direitos civis e políticos exige a proteção dos direitos econômicos sociais e culturais, e todos eles pressupõem o respeito aos direitos coletivos, onde insere-se o direito de proteção ao meio-ambiente. O G20 pode ser um importante foro de discussão para a formação de verdadeiros consensos interculturais acerca das concepções de direitos humanos.
*Larissa Ramina é Doutora em Direito Internacional pela USP e Professora da UniBrasil e da UniCuritiba. Artigo publicado originalmente no site Carta Maior.
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