Uma situação grave inundou o noticiário do Estado sionista nesta semana que passou: a descoberta dos corpos de seis cativos em túneis na Faixa de Gaza. Esta situação foi causada pelo desastre que se tornou a operação de resgate destes, depois de duas incursões bem sucedidas, em 8 de junho e em 21 de agosto. O impacto de tal fracasso conseguiu até mesmo tirar do noticiário a expectativa da retaliação do Irã e do Hezbollah pelas mortes de Ismail Haniyeh e Fuad Shukr. A primeira operação foi realizada em meio à intensa mortandade de civis, o que produziu cerca de duzentos e setenta mortos palestinos; a segunda não teve vítimas, já que o cativo estava sozinho em um recinto no interior da rede de túneis.
A derrota na terceira operação de liberação de cativos aguçou o confronto entre os familiares destes e seus apoiadores contra a política oficial adotada pelo atual governo sionista, de obtenção da libertação de seus cidadãos através de operações militares contra o islã político e da política social genocida contra a população civil indefesa. O chefe de governo foi obrigado a se pronunciar devido ao impacto da onda de manifestações contrárias à política de não negociar com objetividade para promover a volta dos cativos. Em pronunciamento público, o primeiro-ministro chegou mesmo a pedir desculpas pelo fracasso da tentativa frustrada de recuperação dos cativos. Manifestações massivas estão ocorrendo em todo o país promovidas pelos representantes do que viemos chamando de “geração kibutz”. Estes exigem uma negociação centrada na volta dos seus com a contrapartida da libertação de cativos palestinos em poder do Estado sionista. Mas os pronunciamentos do governante denegam esta demanda, alegando, em primeiro lugar, que assume a responsabilidade formal pelo fracasso da operação militar e, ao mesmo tempo, em segundo lugar, reafirma a orientação de confronto adotada desde outubro de 2023.
Esta situação nos remete à necessidade de analisar todo o processo da relação do poder exercido pela “geração dos assentamentos” (e não do chefe de governo isoladamente) em sua relação com a população palestina e com a oposição massiva expressada nas manifestações públicas da “geração kibutz”. Estas são tratadas pelo establishment político no poder, de certa forma, do mesmo modo: desconsiderando solenemente as perspectivas políticas e existenciais tanto da oposição interna quanto do povo palestino e, por outro lado, reafirmando o projeto do Grande Israel como o centro da política atual do Estado sionista para o Oriente Médio. É óbvio que esta situação não iguala de forma nenhuma o tratamento dado ao povo palestino com o que é dispensando aos cidadãos do Estado sionista que estão na oposição.
Este stress político (não uma crise política) denota uma metamorfose na construção ideológica que o sionismo realizou ao longo da sua História. Para ilustrarmos aqui este novo patamar de como o sionismo no Oriente Médio está sendo implementado no momento, lembraremos uma frase lapidar da primeira-ministra Golda Meir (1969-1974). Seu governo estava envolvido numa gama de crises políticas nacionais e externas que corroíam a legitimidade do Estado sionista no sistema internacional. Mas muitas vezes ela enfrentava as adversidades de forma quase poética, sendo conhecida pela formulação de várias frases de efeito que ilustravam o seu pensamento e sua orientação política. A frase dela, que ilustra uma lógica na construção do sionismo no Oriente Médio ao seu tempo, é a seguinte:
“Nós podemos perdoar os árabes por matarem nossos filhos. Nós não podemos perdoá-los por forçar-nos a matar seus filhos.”
Aqui está exposta uma operação cognitiva significativa, usualmente utilizada pelos diversos governos sionistas para tratar da questão palestina: a transposição dos conflitos políticos para o campo das emoções e das relações familiares. Um conflito de direitos – na realidade o confisco de direitos do povo palestino sobre o seu território – foi transformado em uma pretensa constatação de que tudo está sendo feito com generosidade pelo invasor, cabendo ao povo espoliado parar com suas reclamações descabidas e recompor seu equilíbrio emocional. A frase indica que a orientação dos sionistas é que o povo palestino vá cuidar da sua vida e da sua família! Caso contrário, ao se envolver em contestações políticas à dominação sionista, os invasores agirão como um pai que utiliza a violência física para corrigir os erros dos filhos. Aí a pena capital será aplicada sem dó nem piedade.
Uma segunda pérola (sic) de pensamento político/emocional elaborada pela primeira mulher a governar o Estado sionista – representando com perfeição a pieguice que os sionistas desenvolveram com arte e persistência para tentar emular e tentar convencer a todos (e a eles mesmos) de que a usurpação do povo palestino de seus direitos é aceitável – pode ser vista abaixo.
“Nós somente teremos paz com os árabes quando eles amarem seus filhos mais do que nos odeiam.”
O ponto que queremos levantar aqui, tentando compreender de forma exagética o argumento apontado acima, é que a crise dos cativos em Gaza fez com que houvesse uma rotação das culpas que os sionistas (via Golda Meir) apontam como sendo o problema do que eles pensam que os palestinos cultivam de forma psicótica. Ficou exposta na tentativa frustrada de libertação de seis cativos (e sem decisão política de libertar as dezenas de outros que ainda restam) que o Estado sionista preferiu matar seus filhos ao invés de negociar a libertação dos cativos palestinos em seu poder. Não precisamos nem nos estender na pertinência desta situação dramática que encontra respaldo na concepção conhecida como “Doutrina Aníbal” (ou “Protocolo Aníbal”) adotada pelas forças armadas sionistas; a preferência de desdenhar e sacrificar a vida dos nacionais em detrimento de uma negociação/concessão com/aos captores está sendo aplicada sem nenhum pudor.
As forças militares fizeram uma operação de altíssimo impacto sobre a população civil palestina em 8 de junho, alcançando a vitória e resgatando quatro cativos. Neste momento pareceu que a orientação política de confronto e a política social genocida eram os caminhos certos a serem adotados para tratar a questão. Mais uma vez obtiveram êxito em 21 de agosto, liberando um cativo com o uso exclusivo de inteligência. Mas em 27 de agosto o que era previsível tornou-se realidade. Os episódios que cercam a morte dos seis cativos não estão claros. O Hamas indica que houve bombardeios que alcançaram os cativos, fato que pode ser avaliado como possível, já que um deles, em gravação divulgada, indicou o perigo desta situação. O Estado sionista indica o assassinato dos seis pelos militantes do islã político, ocorrido horas ou dias antes, quando a ameaça de resgate se anunciava. De qualquer forma, este episódio tem que ser visto mais pelo seu resultado do que pela forma como ocorreram as mortes dos cativos.
Seguindo com precisão o raciocínio da primeira-ministra Golda Meir, os sionistas de hoje, ao insistirem de forma pusilânime na posição – indefensável pelo decorrer dos fatos de que ocorrerá a liberação dos cativos pelo confronto e pela política social genocida –, estão preferindo odiar mais os palestinos do que amar os seus próprios filhos. Também não querem mais perdoar os “árabes” (como na predisposição indicada por Golda Meir), e sim eliminá-los. Sua ira se volta enviesadamente para o islã político, caracterizando-os como simplesmente “terroristas”, utilizando sobejamente o grupo Hamas como para-raios deste ódio. Mas o que lhes interessa mesmo é a limpeza étnica da Faixa de Gaza, removendo o obstáculo populacional e a temida ameaça de segurança interna do Estado sionista para justificar a construção do Grande Israel. Os cativos, que eles chamam de reféns, são vistos pelo governo sionista atual como uma peça menor nos tabuleiros político e de argumentação de defesa da política de “guerra”. Eles preferem legitimar discursivamente a implementação da limpeza étnica e da política social genocida a ceder em qualquer negociação.
As manifestações de rua massivas no Estado sionista na última semana, como nunca haviam ocorrido até então, demandam uma mudança da posição do governo, mas não indicam caminhos viáveis para que seus projetos sejam materialmente alcançados. A única tese posta na mesa é a realização de novas eleições, na esperança de que a corrosão pessoal e política do primeiro-ministro e seu partido, o Likud, seja suficiente para mudar a composição do Knesset e criar um outro governo. Esta é uma proposta de lançar uma “bomba democrática” sobre a coalizão de poder para produzir uma outra maioria e um outro governo.
Esta ótica de atuação já estava presente nas manifestações dos opositores no início da crise e desde então o seu fracasso está sendo escrito a cada manifestação. Seus únicos poderes de pressão sobre o governo têm sido o fechamento de vias de trânsito urbano – que são duramente reprimidas pela polícia – e a repetição das manifestações massivas em pontos específicos, como as residências dos governantes e parlamentares que os apoiam. A proposta de greve geral defendida pela central sindical Histadrut não foi adiante. Todos estes três mecanismos de pressão utilizados até o momento demonstram mais desejo do que possibilidade de alcançar um êxito real no embate político nacional.
As limitações destes manifestantes, que foram analisados em artigos anteriores, quando os caracterizamos como sendo a essência da “geração kibutz”, são marcantes. Suas ligações históricas com as mesmas práticas de exclusão da vida social do povo originário da Palestina são exatamente iguais aos dos atuais governantes. Daí, como já demonstrou por várias vezes o escritor israelense Gideon Levy, a desconsideração com a questão palestina é total por parte deste grupamento.[1] Por este caminho as manifestações de rua contra o governo e sua política de guerra (na verdade uma política social genocida) possuem intrinsecamente uma armadilha para os manifestantes: eles estão figadalmente envolvidos nesta conduta, daí não obterem nenhum resultado prático para o impasse que estão sustentando. Em outras palavras: eles fazem parte do problema e não da solução do problema, já que não alcançam que a pressão a ser feita contra o governo deveria ser o abandono da expansão territorial e o estabelecimento de acordos de paz com os vizinhos. Aí sim surgiria uma verdadeira diferença de proposta para a solução do problema que eles colocam. Mas se assim o fizessem teriam que reconhecer toda uma cadeia de acontecimentos que eles não querem tornar totalmente públicos (ou sequer terem consciência disto), pois eles também participaram no passado a massacrar o povo palestino. Assim, cremos, eles correm o risco de que suas manifestações se tornem… espuma.
Uma outra questão sensível que está em andamento são as negociações entre o governo sionista e o islã político mediado por Egito, Catar e EUA. Segundo informações dadas pelo governo dos EUA e pela mídia cerca de 90% do texto está pronto, restando questões sensíveis como a relação de nomes de cativos palestinos a serem libertados e a presença dos sionistas no Corredor Filadélfia. Ora, são justamente estas as questões de fundo que estão sendo disputadas. Sendo assim 90% do texto aprovado consensualmente não representa absolutamente nada na prática. O principal a ser tratado no acordo é o controle do Corredor Filadélfia, que em nosso entendimento definirá completamente o destino futuro da população palestina da Faixa de Gaza. Curiosamente o outro corte transversal no território da Faixa de Gaza, o Corredor Netzarin, não está sendo lembrado pela mídia como parte deste mesmo processo de negociação que envolve centralmente o Corredor Filadélfia.
Abordamos estas duas situações em artigo anterior a este artigo e voltamos agora a tratar deste assunto, dada a relevância desta situação na evolução conjuntural da política social genocida praticada pelo Estado sionista. É justamente nestas duas faixas de terra perpendiculares do território do enclave que, possivelmente, estarão o cerne da futura política de controle da insurgência palestina. Se observarmos com atenção a geografia da invasão sionista, os dois corredores formam um novo enclave, menor do que o original. Assim, pela formatação de duas estradas que servirão de contenção para a limitação da movimentação da população apenas dentro deste novo enclave, poderão ser desenvolvidas formas de novos partilhamentos da população. Desta forma, tal como já ocorre na Cisjordânia, onde predomina a fórmula do “queijo suíço”, a população palestina subsistirá em meio às difíceis tentativas de reconstrução em um ambiente de desunião, sem contatos físicos, talvez cortados por novas rodovias secundárias que interligam os dois corredores numa nova estrada. Nossa suspeita é que esta divisão populacional em uma espécie de bantustões dividiria o controle da região em vários mini-governos que ficariam competindo por manter a ordem e reconstruir os meios de vida da população. Tal situação diminuiria sensivelmente a identidade e oposição à ocupação sionista. Nem mesmo o contato físico e social seriam viáveis (ou permitidos) pelos ocupantes sionistas na Faixa de Gaza.
O Corredor Netzarin literalmente empurraria o grosso da população palestina mais para o sul. Por este caminho o norte da Faixa de Gaza estaria perdido para a ocupação do povo palestino e ganho para a ocupação de novos colonos. Presenciaremos, caso tal situação se consolide, a implementação de uma tradicional invenção sionista para alocação da população palestina em regiões diminutas para criar as condições de quebra da sua identidade, resistência e convivência social.
Esta é a nossa hipótese que sustenta a ideia de que qualquer negociação tanto com o islã político quanto a “geração kibutz” não serão viáveis, a não ser que a política dos EUA para a região seja alterada. Também é nossa hipótese de que tal mudança não ocorrerá. O anúncio oficial deste projeto está, certamente, na espera do resultado das eleições presidenciais norte-americanas.
A ideia de que o primeiro-ministro sionista está prolongando a guerra para defender-se política (extensão do seu governo) e judicialmente (temor de prisão por julgamentos pendentes) é frágil perante a consistente (re)aplicação da mais sofisticada forma de contínua gestão sionista de limpeza étnica: a divisão e redivisão da população palestina com o fim de produzir a perda de laços e identidades coletivas que sustentem a ideia de construção da nação palestina. Também é tosca considerações que subestimam a capacidade logística do Estado sionista, consideração que o conflito alimentado por este “não possui tanto uma estratégia quanto um plano de ação”
Enfim, a política social genocida praticada pelos sionistas contra o povo palestino não deverá encontrar o seu fim ao se encerrar a ocupação militar mais pesada que ora existe. Ela terá continuidade ao longo dos anos que virão através de um modelo que de certa forma já está em operação na Cisjordânia. Assim, a presença militar em menor escala (crescendo se necessário) produzirá uma gestão também militar da sociedade palestina que habita a Faixa de Gaza, um nítido governo externo sobrepondo-se a mini-governos de várias origens.
Apesar de hipotético este conjunto de procedimentos, reafirmamos que tamanha pujança deste projeto de “engenharia política” não pode ser confundido com caos econômico, crise militar ou preocupações em se tornar um paria no sistema internacional. Trata-se aqui, como temos analisado, de formatar as bases de uma futura expansão territorial, a formação do Grande Israel. Neste sentido, o Estado sionista não está de maneira nenhuma em uma posição de fraqueza mas sim de força, (re)definindo os parâmetros do funcionamento do sionismo (na verdade do sistema sionista) aos novos tempos e à correlação de forças políticas internas e internacionais.
Internamente, supomos que a sociedade sionista viverá sob a hegemonia estreita mas consistente de uma gama enorme de partidos de direita e extrema-direita, sendo eles laicos ou não. Para isso, pressupomos, um verdadeiro “mar de eleitores” foi internalizado no Estado sionistas através dos assentamentos na Cisjordânia. Por não controlarem com objetividade esta ocupação ilegal, segundo a legislação internacional, a “geração kibutz” está pagando a conta através de uma competição desigual entre sua base social e a nova base social emigrada recentemente, que passa a compor a “geração dos assentamentos”. Temos a impressão de que a “geração kibutz” não quer se dar conta de que esta situação nasceu da vitória na Guerra dos Seis Dias (1967) e o fracasso dos Acordos de Oslo – quando possuíam grande parte do poder do Estado e poderiam ter evitado esta situação. Mas seus conceitos sionistas “de esquerda” preferiam municiar os assentamentos a partir de 1967, informando aos negociadores palestinos nas negociações em Oslo que não havia possibilidade de demarcar (e respeitar a demarcação) das áreas de controle palestino porque os governantes não queriam quebrar a unidade do povo judeu na ocupação de Eretz Israel. Ou seja, antes de resolver os conflitos com os palestinos a “geração kibutz” preferia resolver os (insolúveis) problemas com os novos assentamentos. Eis a origem da estreiteza política que a “geração kibutz” se colocou.
Encerramos nossa análise mais uma vez relembrando fatos e personagens pertinentes ao contexto histórico dela. Nos dias 5 e 6 de setembro de 1964 o ativista político norte-americano Malcolm X visitou a Faixa de Gaza, na sua segunda visita à região (a primeira foi em 1959, quando foi a Jerusalém). Na sua estada em Gaza, Malcolm X alcançou com clareza a dimensão da questão palestina. Ele visitou um campo de refugiados em Khan Younis. Também se encontrou com o poeta Harun Hasem Rashid, que descreveu ao ativista norte-americano como escapou do massacre de centenas de civis inocentes, promovido pelo exército sionista em Khan Younis, quando da sua passagem por Gaza dirigindo-se ao Canal do Suez, em 1956. O Estado sionista apoiou Inglaterra e França na tentativa de retomar o controle do Canal do Suez, nacionalizado pelo governo egípcio.
Malcolm X deixou a Faixa de Gaza vivamente impressionado, elaborando um pequeno texto analítico sobre a questão. O nome do texto é “A lógica sionista”, publicado em setembro de 1964 na Gazeta Egípcia. Nele o autor demonstra o processo de usurpação do povo palestino e, o que considero fundamental, a natureza cognitiva de emulação desta situação. Para o autor o sionismo é um desdobramento direto e de continuidade do colonialismo. Além de argumentos triviais e piegas utilizados para esta imposição cognitiva Malcolm X desnuda os instrumentos materiais para que esta tarefa tenha sido bem sucedida, o “dolarismo”, novo instrumento de dominação colonial. Além deste pequeno texto Malcom X, em último pronunciamento escrito elaborado horas antes do seu assassinato, tratou por escrito da questão palestina. Respondendo a nove questões elaboradas pelo Diretor Geral do Centro Islâmico de Genebra ele mais uma vez, de forma ainda mais contundente, desnudou a dimensão ilusória da legitimidade e pregação cognitiva do sionismo ao instalar seu Estado em terras palestinas.
“Aqueles que mais beneficiam (da ideologia anti-islã na África) são os antigos senhores coloniais que agora suplantaram o odiado colonialismo e o imperialismo pelo sionismo. Os Sionistas ultrapassaram todos os outros grupos de interesse na atual luta pelo nosso Continente Mãe. Eles usam uma abordagem tão benevolente e filantrópica que é muito difícil para as suas vítimas perceberem os seus esquemas. O sionismo é ainda mais perigoso do que o comunismo porque se tornou mais aceitável e, portanto, mais destrutivamente eficaz.”
(*) Bernardo Kocher é Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense