Em 17 e 18 de setembro de 2024 a política social genocida praticada pelo Estado sionista contra o povo palestino na Faixa de Gaza há 11 meses foi ampliada. Uma sequência de brutais explosões de pagers (no dia 17) e de aparelhos de comunicação walkie-talkies (no dia 18) em várias regiões do Líbano onde há predominância de população vinculada ao islã político inauguraram uma nova forma de prática genocida. Não há cem por cento de certeza de que as explosões atingiram (ao menos em sua maioria) os militantes armados pelo islã político. Estes equipamentos são largamente utilizados pela população civil em geral, entre eles profissionais da área de saúde. O Estado sionista (possivelmente) se superou, colocando em mãos de todo o tipo de cidadão uma espécie de mina pessoal seletiva com detonação programada.
Tais atos inusitados, apontados pela mídia como precedentes ao início de severos bombardeios em inúmeras cidades libanesas, podem ter sido provocados nestes dois dias (e não no momento exato do início do que tem sido chamado de “A 3a. Guerra do Líbano“) por detecção da sabotagem nos aparelhos por membros do islã político local. Ao que parece, a decisão de acionar de pronto os explosivos inseridos nos equipamentos de comunicação se deu em função da perspectiva de perder a vulnerabilidade psicológica caso estas explosões não ocorressem. Mesmo assim, o timing da surpresa das explosões de equipamentos previamente sabotados não foi perdido, pois o ataque ao interior do Líbano foi iniciado no dia 19.
Uma análise distinta avalia que a detonação dos dispositivos não tem relação direta com os fatos acima alinhados. O acionamento do mecanismo de detonação pelos serviços de inteligência do Estado sionista teria sido uma reação virulenta do poder militar sionista, que sofreu um ataque poderoso e certeiro dos mísseis do Hezbollah em 12 de agosto. Estes alcançaram a Unidade 8200 (na base de inteligência Gillot), sede do principal órgão de inteligência sionista. A efetividade e os danos provocados por este ataque não foram divulgados, mas a renúncia do seu dirigente demonstra que a crise derivada do ataque foi grave. Caberia à esta mesma Unidade 8200 evitar o que ela sofreu. A detonação dos dispositivos de comunicação, fruto de inteligência eficiente e sofisticada, teria sido uma resposta direta aos métodos de ação muito bem elaborados e desenvolvidos pelo Hezbollah, que produziram o alvejamento da unidade de inteligência dos sionistas. Estes deram a sua resposta ao Hezbollah via população civil.
Aqui ressaltamos o papel que estas ações de inteligência espetaculosas que os sionistas são eficientes e habilíssimos em produzir. Elas são invariavelmente realizadas em meio a uma tentativa de ação de alto impacto no moral dos seus inimigos. Tornam-se tais atos, que misturam infiltração de inteligência consorciada com equipamentos de alta tecnologia, uma suposição messiânica de que a causa sionista é legítima devido ao fato de serem produzidos com perfeição atos cinematográficos muito bem articulados. Assim, as explosões inusitadas tornaram-se aos olhos de incautos e dos sionistas uma forma de induzir a percepção de que foi algo divino o que interferiu e prejudicou a realidade material dos inimigos do Estado sionista.
Os meios de comunicação mainstream de uma forma geral têm caracterizado este novíssimo tipo de ataque seja como um ato de guerra seja como um ato terrorista (de Estado). De nossa parte, como já apontamos no início desta análise, temos em conta que se tratou de instaurar nas zonas de controle político e social de partes do Líbano pelo Hezbollah, e até de partes não controladas por ele, uma reaplicação da política social genocida que vem sendo praticada na Faixa de Gaza. Sendo assim, continuaremos a tratar o tema da aplicação da política social genocida pelo Estado sionista na Faixa de Gaza como uma prévia do que pode estar acontecendo no país vizinho.
O Líbano é visto pelo Estado sionista como um novo ambiente para instauração da política social genocida. Este país possui algumas características sociais, ideológicas e políticas próximas das que existem na Faixa de Gaza: a forte presença do islã político, um Estado fraturado por denominações religiosas e lutas políticas variadas, um contingente expressivo de população palestina (no sul do país) e uma base de ação para atacar o território do Estado sionista. A única diferença com a situação da Faixa de Gaza é que estas características são externas ao território dominado pelos sionistas, pois a sua fronteira norte, apesar conflagrada, é tomada de forma pragmática como real. De qualquer forma, constatamos que existe um mimetismo intrínseco do Estado sionista que transfere a aversão do seu “sionismo interno” (da Faixa de Gaza) para o “sionismo externo” (do Líbano).
A relação do Líbano com o problema palestino é longa e complexa, não cabendo neste momento desenvolvê-la longamente.[1] Apenas lembramos que a presença de população palestina no sul do país, sem direitos de cidadania formal, como na Jordânia, provocou o aumento numérico da população muçulmana no país. Isto ajudou a catalisar a cisão entre as duas denominações religiosas e suas divisões internas, que dividiam o poder conforme a modelagem do Estado libanês deixada pelos franceses ao fim do mandato legado pela Liga das Nações. Dentro deste grande contingente de muçulmanos sunitas palestinos é que surge a ação do islã político na década de 1980, em meio à Guerra Civil Libanesa (1975-1990). O Hezbollah (Partido de Allah ou Partido de Deus) desenvolveu-se em meio às carências materiais e de segurança da população palestina desterrada, mesmo sendo uma organização de orientação xiita. O Hezbollah também é uma forma de organização do tipo Irmandade Muçulmana que visa atender a população libanesa mais pobre, que são os muçulmanos xiitas.
Assim, o Líbano possui um “Estado dentro do Estado” num ambiente que a literatura clássica de estudos internacionais chama de “Estado falido”. O Líbano, conhecido pela sua prosperidade e ocidentalização nos anos 1950 e 1960, um verdadeiro porto financeiro global, viu rapidamente sua condição de bem-estar ser corroída pelas disputas religiosas e ideológicas, agravadas pelas transformações do poder mundial em favor da hegemonia norte-americana, do enfraquecimento da Europa e, internamente, da estrutura confessional da constituição do seu Estado. Esta situação tornou-se limíte na Guerra Civil (1975-1990) e na destruição causada pelo vizinho sionista em duas guerras e invasões ao país. O Líbano decididamente não obtém sucesso na construção de um Estado burguês laico e republicano.
Dentro deste molde institucional, o Hezbollah reconfigurou a correlação de forças do Oriente Médio quando do seu surgimento na década de 1980. Ele passou a compor o quadro de proxies ligados à política externa iraniana na região. Isto não ocorreu, no entanto, apenas pela afinidade com as demandas defensivas contra o imperialismo, que estão presentes nas orientações de política externa do Estado persa. Existe um componente interno na vida política e social libanesa que produziu, como em muitos outros lugares no Oriente Médio, a ação pró-ativa do Irã na região. A principal delas, certamente, são as contínuas, destrutivas e certeiras intervenções e/ou guerras do Estado sionista contra o Líbano (mas também na Jordânia, na Síria, Egito e muitos outros países dentro e fora do Oriente Médio) que, desta forma, transformou o país em candidato ou a incorporação como uma área de influência daquele (sob o manto da pax israelensis) ou como um território incorporado ao do Estado sionista no interior do projeto do Grande Israel. Constatei estas tendências em entrevista de um político sionista na mídia, que afirmou com todas as letras, analisando a atual conjuntura de ataque à soberania do país vizinho: “O Líbano não existe”! Estas duas tendências são exploradas em vários artigos anteriores a este, publicados neste Opera Mundi.
Como uma configuração possível do resultado final e imediato da conflagração contra o islã político na Faixa de Gaza, e agora no sul do Líbano, indicamos que vislumbramos uma dupla incorporação territorial: no norte da Faixa de Gaza (a partir do centro do enclave, delimitado pelo corredor Netzarim) e no sul do Líbano (na parte do sul do Rio Litani). Sob a desculpa de evitar ameaças à população ocupante das terras palestinas, ambas as regiões poderão se transformar no futuro próximo em áreas de ocupação sionista. É similar ao que já ocorre com as Colinas do Golã, tomadas da Síria em 1967 após a Guerra dos Seis Dias.
Um ponto referencial para a análise da nova fase da atual crise, e que modela um eventual encaminhamento do conflito do Líbano, é a Resolução No. 1.701 do Conselho de Segurança da ONU, de 11 de agosto de 2006. Após o fim da segunda conflagração entre o Estado sionista e a população palestina no país, iniciada com o sequestro de soldados sionistas para a troca de prisioneiros, a invasão do Líbano foi consubstanciada. A sua expulsão deu-se pela forte oposição do poder militar desenvolvido pelo islã político. Este se tornou o maior poder militar não-estatal existente no mundo contemporâneo. O Estado sionista não teve sucesso na invasão terrestre, dado o bom preparo e disposição da já expressiva força armada sob o comando do Hezbollah. Também é digno de nota a desorganização e falta de organicidade da força militar do Estado sionista naquele momento, tomado, segundo análises da época, pela implantação de medidas neoliberais radicais que afetaram o desempenho das forças terrestres sionistas. O que restou ao Estado sionista, dada esta perda de eficiência, foi o início da filosofia de bombardeamento massivo de cidades densamente habitadas como forma de combater o islã político, sem consideração com os danos colaterais sobre a população civil. Este proceder foi iniciado em 2006 e transposto para a Faixa de Gaza; retorna agora ao conjunto de ameaças que o Líbano enfrenta.
O que é mais significativo como produto desta crise é o resgaste da resolução da ONU citada acima, que está sendo colocada novamente como pauta para a resolução do atual conflito pelo Estado sionista. Este retorno para o que foi tornado documento legal 18 anos atrás exige que o Hezbollah recolha suas tropas e armamentos para o norte do Rio Litani, estabelecendo-se na fronteira política entre os dois países a chamada “Linha Azul”. Este termo foi concebido na primeira retirada do exército sionista do Líbano em 2000. Isto criaria uma zona vazia entre a Linha Azul e o Rio Litani que ofereceria segurança ao norte do Estado sionista e sua população, que abandonou a região desde o início dos confrontos em outubro de 2023, pois estariam no alcance dos foguetes e mísseis lançados do lado libanês. O Estado sionista já havia dado publicidade meses atrás desta demanda, recebendo do governo libanês a resposta de que uma distância equivalente da fronteira fosse tomada pelo poder militar sionista. De fato, o Estado sionista não foi obrigado a respeitar a distância acordada para distanciamento da “Linha Azul” equivalente à distância que o Hezbollah deveria tomar do Rio Litani. No entanto, é de conhecimento público que ainda havia em 7 de outubro de 2023 a presença de poderio militar sionista no interior do território libanês, na mesma região que agora o Estado sionista demanda o esvaziamento. Foi nesta área que se iniciaram os bombardeios do islã político em 8 de outubro de 2023 (e não no interior do território do Estado sionista). Como a resposta sionista veio no sentido de expandir a área de bombardeamento no interior do território libanês para além do que ele estava ocupando, o islã político também ampliou a extensão da sua artilharia, agora alcançando a parte norte do Estado sionista. De ampliação em ampliação da extensão da capacidade de alcance, da aviação sionista e dos foguetes e mísseis lançados pelo islã político, a situação foi se agravando, até chegarmos ao ponto de que o Estado sionista decidiu abrir mais uma frente na guerra contra a insurgência nas sua área de influência.
Todos os elementos analisados nesta nossa sequência de artigos sobre a política social genocida do povo palestino moveram-se para o outro lado do Estado sionista, na sua fronteira norte. A perspectiva é a mesma, tomadas as devidas proporções, como já ficou claro com o ocorrido com as explosões nos aparelhos de comunicação distribuídos entre a população civil libanesa. A verdadeira tara dos sionistas em jogar os adversários na “idade da pedra”, destruindo fisicamente as construções civis, a infra-estrutura e atingindo brutalmente a população civil desarmada, não envolvida na luta política, já estão se reproduzindo neste novo contexto. O bombardeio do Líbano “profundo” já está em marcha pelo poder aéreo sionista. Até mesmo no norte do Líbano, longe da Linha Azul, onde não existe a presença de membros ativos e militarizados ou apoiadores em grande número do islã político, está sendo bombardeada. A propaganda sionista está a todo vapor a demonstrar que somente os subúrbios no sul de Beirute, a região em volta do Rio Litani e o o Vale do Beeka – áreas de predominância xiita, presumidos apoiadores incontestes do islã político –, estão sendo alcançadas pelo mesmo tipo de bombas que são lançadas sobre o povo palestino da Faixa de Gaza.
O clima de guerra já é apontado como presente pelas duas partes. Os sionistas entraram com poder total, ameaçando crescer ainda mais a devastação. Por outro lado, lentamente, o islã político no Líbano vai ampliando o raio de ação dos seus projéteis lançados, aumentando a distância e o poder destrutivo destes. As barreiras de censura do Estado sionista sobre os resultados dos bombardeios oriundos do Líbano impedem o conhecimento pleno do que está acontecendo, mas os danos já devem estar a se fazer sentir. O islã político deve estar esperando o desgaste lento e contínuo tanto da economia quanto do grau de adesão da população do Estado sionista à continuidade do conflito.
Muitas vozes no interior do Estado sionista já se levantam contra esta extensão da guerra. Sem resolver a questão dos cativos na Faixa de Gaza, continuando os massacres diários de população civil desarmada no enclave, ampliando estes mesmos princípios para o interior do Líbano, o atual governo sionista não considera demandas sociais ou restrições políticas nacionais ou internacionais às suas ações. De vento em popa, Benjamin Netanyahu e seu staff político e militar avança celeremente fazendo funcionar o deep state do Estado sionista em direção à expansão territorial e acúmulo de poder político.
As limitações econômicas e sociais apontadas tanto pelos críticos internos do governo quanto pelo islã político vão na mesma direção. Elas flutuam sobre a realidade que querem alterar, sem condições políticas e ideológicas de quebrar a couraça do poder político da “geração dos assentamentos”. No suporte ao argumento de que uma crise se desenvolverá, os críticos tratam a economia israelense como sendo aquilo que ela não é: um caso bem sucedido de empreendedorismo e aplicação da ciência avançada em métodos produtivos inovadores. Temos como pressuposto de que a visão romântica da “crise” econômica do Estado sionista em função das duas guerras não é crível pelo simples fato (já avaliado anteriormente) de que existe um “convite” do chamado “ocidente coletivo” para o Estado sionista fazer o que ele faz. Dentro deste pacto não escrito está o fornecimento ilimitado de armamentos e munições de última geração. Mas, cremos que aí também devem estar incluídos todos os bens e serviços necessários à reprodução da vida material de uma sociedade urbana-industrial: alimentos, medicamentos, matérias-primas, peças e sobressalentes de todo o tipo, bens de consumo, etc. Não podemos desconsiderar (e deixar de mensurar matematicamente se possível) as ajudas financeiras e outras formas de transferência de rendas e benefícios in natura para viabilizar o funcionamento da sociedade sionista da forma como ela é. Esperar uma crise econômica inibidora da ação do Estado sionista na busca desesperada, como uma espécie de “vôo da coruja” que a economia sionista se abriga para viabilizar as duas guerras, é um convite para esperar sentado durante décadas. A crise econômica certamente não virá e os números contabilizados da balança de pagamentos negativa, na queda dos índices de cotação das ações, ou no crônico déficit público não são elementos que devam ser considerados ao pé da letra nesta situação excepcional.
De outro lado, como nos informam os meios de comunicação, o Estado sionista está promovendo passeios de barco para os interessados visitarem o norte da Faixa de Gaza pelo mar. Os interessados em usurpar estas terras palestinas estão visivelmente embriagados com a possibilidade de mais uma vez se aproximar da sua divindade, visualizando o que pretendem transformar futuramente na sede de novos assentamentos e numa fortificação militar poderosa. Desta forma, em meio à devastação física e psíquica da população palestina, existem criaturas capazes de projetar melhoras subjetivas nas suas condições de vida nas terras da população que foi usurpada.
Custa crer que faltará base social interna para a política social genocida e a expansão territorial em busca do Grande Israel. Outro erro de avaliação dos críticos, basicamente os da “geração kibutz”, é considerar apenas a questão política do poder do atual governo, sem se atentar que este (além das eleições) possui uma base social sólida e em expansão. Esta foi criada na aplicação de uma política que aponta para o futuro planejado para o Estado sionista como ele foi pensado na sua origem. Criticar a ação do atual governo não pode, em nosso ponto de vista, se limitar a uma crítica ao atual governo! Deve-se considerar a expansão exponencial da base de sustentação destes governantes, sedimentada na expansão dos assentamentos na Cisjordânia a partir da sua conquista em 1967. Mesmo com a vitória de partidos de centro ou esquerda nas próximas eleições, os críticos atuais (e eventuais futuros governantes) não terão condições de governabilidade garantida, pois não alcançarão a maioria ou mesmo um número robusto de cadeiras no parlamento que os permita liderar a formação de um novo governo com autonomia e independência. As alianças espúrias serão inevitáveis e, após inúmeras concessões, acabarão se tornando cópia frágil do governo que eles criticam. Além disso, lidar com a delicada questão palestina para estes críticos da “geração Kibutz” não é tarefa fácil. O que eles fariam ao chegar ao poder? Denegar a existência da usurpação palestina? Não reconhecer o papel dos partidos de esquerda sionista nesta usurpação?
Nestes quinze dias desde a publicação da última coluna, o eixo de devastação produzida pela política social genocida reinicia um novo movimento. Agora são dois alvos. Na Faixa de Gaza continuam os bombardeamentos e a deterioração das condições de vida da população desterrada. Como enfatizam todos os meios de comunicação, baseados em dados fornecidos pelas autoridades de saúde que administram a Faixa de Gaza, as maiores vítimas são as crianças e as mulheres. Isto por si só demonstra que o alvo central do Estado sionista não são os militantes armados do islã político. A muito custo, os agentes de saúde locais conseguiram eficiência na vacinação da população infantil contra a poliomielite. Já há vozes sionistas alegando que o Estado deles foi quem viabilizou esta vacinação. Filas de vacinação também foram atingidas por bombardeios e atiradores snipers. Aliás, esta figura sinistra é uma verdadeira obsessão dos sionistas. Eles se jactam em atingir seres humanos (civis e desarmados) sem condições de se proteger ou se defender. Isto diz muito do que eles estão fazendo e do que eles são em sua essência. Que D’s os perdoe… se é que ele existe!
(*) Bernardo Kocher é Professor História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense