Estamos próximos do anunciado ataque do Estado sionista e seus aliados europeus e EUA à República Islâmica do Irã. Mesmo que não se saiba ainda o momento exato desta agressão, já paira no ar nos meios de comunicação e pronunciamentos das autoridades diretamente envolvidas sinais de que o início do ataque é iminente. Existem sinais claros de que todos os preparativos materiais, tanto da agressão ao país persa quanto da defesa do Estado sionista à resposta iraniana, foram adequadamente equacionados. Não restam divergências sobre quais os alvos e meios a serem utilizados no futuro ataque. As decisões mais cruciais de logística para alcançar os objetivos pré-determinados já se sedimentaram em planos concretos.
Mesmo o vazamento dos detalhes que foram acordados pelo Estado sionista e EUA, que previa a ação em 15 e 16 de outubro, adiaram a ação, mas produziram a percepção clara de se fazia mais do que necessário informar ao público o que irá efetivamente ocorrer. Intuímos que esta aparente indevida divulgação não acordada do que fora combinado entre as partes atacantes reflitam, como ocorreu em outros episódios, uma manifestação do deep state norte-americano. Esta comunicação para o público exterior de documentos ultra secretos indicaria que, face à posição irredutível do Estado sionista (contra a posição do governo Biden) em tornar toda a infraestrutura iraniana em alvo legítimo (inclusive as instalações nucleares e os poços de petróleo), que as eleições norte-americanas têm prioridade sobre as necessidades imediatas da pax israelensis. Ou seja, um eventual ataque com resultados politicamente desastrosos poderia influenciar o resultado das eleições nacionais norte-americanas que se realizarão em 5 de novembro. Daí, talvez, o sinal enviado seja o de que o ataque está liberado, mas somente após o pleito. Outra versão sobre o vazamento indica que ele foi intencional e pactuado pelos que vão bombardear o Irã. Nesta visão, o alerta dado provocaria uma movimentação em solo do poder militar deste país, o que forneceria informações confiáveis sobre a posição dos equipamentos voltados para a defesa aérea iraniana.
Em termos de nosso tema central nesta série de artigos aqui no Opera Mundi, esta confrontação que se anuncia, com o provável estabelecimento de uma guerra regional, nos parece ser crucial. As autoridades sionistas têm insistido assertivamente que toda a estrutura que o islã político utiliza para contestar as agressões do sionismo contra o povo palestino, e agora ao povo libanês, são provenientes de proxies (Hamas e Hezbollah) mantidos pelo Irã. A estratégia foi construída para produzir fragilidades (por pequenas que sejam) no imenso poderio militar do Estado sionista. Daí, espera-se que em algum momento no futuro haverá uma fenda maior na defesa e/ou na vida social do Estado sionista, produzindo desgaste que poderia levar a algum eventual erro que possa ser cometido pelo aparelho militar dos sionistas. Hamas e Hezbollah possuem tensões próprias e intrínsecas na sua confrontação com o sionismo, mas articulam-se política e materialmente à política externa iraniana, compondo-se na confrontação regional contra o sionismo externo.
Parte significativa de nosso ponto de vista do que representa o Irã para o contexto da aplicação da política social genocida que está sendo praticada pelo contra o povo palestino foi analisada em artigo anterior a este. É saliente em nossa visão sobre o assunto que todo um conjunto de relações políticas internacionais que afetam a região dependem, do ponto de vista do Estado sionista, de um enfrentamento claro e aberto com a política externa iraniana para o mesmo contexto regional. Trata-se, numa linguagem gramsciniana, de um confronto de dois hegemons. Anteriormente definimos que existiria uma visão “geo-sionista” projetada para a consecução de uma obra de aplacamento definitivo da oposição à dominação sionista sobre o Oriente Médio. Este é, em nosso entendimento, o papel que é atribuído ao Estado sionista pelo chamado Ocidente coletivo, notadamente pelos EUA. Mais uma vez consideramos: o Estado sionista é um instrumento sub-imperialista do imperialismo “maior” dos EUA e da Europa Ocidental.
O intento do “geo-sionismo” é o de constituir na região uma projeção de poder para controlar, direta ou indiretamente, os demais Estados Nacionais do Oriente Médio. Egito, Jordânia, Marrocos, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Bahrein já se encontram incorporados nesta espécie de “pacto” pró-hegemônico em favor do sionismo. Eles lidam com a delicadíssima relação com o Estado sionista operando em diferentes níveis de aceitação, adesão e/ou questionamentos do papel deste no Oriente Médio. Palestina, Líbano, Síria e Irã não aderiram a esta concertação. Estes quatro atores possuem focos de tensão contra o hegemonismo sionista oriundo de governos ou de grupos políticos internos a estes Estados Nacionais que, grosso modo, possuem a orientação do islã político. Os dois primeiros países, tomando-se em conta um eventual Estado palestino, estão sob imensa pressão dos ataques da aviação e de tropas terrestres dos sionistas. A Síria está em uma guerra civil inconclusa desde que a Primavera Árabe (2011) eclodiu naquele país. Sua integridade territorial está profundamente abalada e, por isto, o poder de um governo central não se faz efetivo como em um Estado Nacional com vida cotidiana normalizada. Até mesmo uma base militar norte-americana, sem autorização do governo sírio, está instalada, com cerca de novecentos soldados em solo sírio.
O Irã possui uma dinâmica muito própria e definidora de todo este conjunto complexo de relações anti-sistêmicas no Oriente Médio. Possuindo um Estado Nacional sólido e consolidado, com uma burocracia de Estado com eficácia administrativa e unidade política, com reservas consideráveis de petróleo e um parque industrial razoavelmente atualizado, ele é um forte candidato a se converter numa espécie de “Alemanha do Oriente Médio”. Esta posição de autonomia de sua produção industrial, estimulada pelos obstáculos de embargos econômicos e viabilizada por políticas estatais, perdura há quarenta anos. A hostilidade continuada ao poder exercido por um sistema político orientado pela religião forçou o Irã a implementar uma política de defesa adaptada às suas necessidades: se preparar em território externo para defender sua soberania e autonomia. Suas relações com a Europa ocidental são frias e expostas às intempéries das contínuas crises por que passa o Oriente Médio e a adesão majoritária da União Europeia à pax israelensis. Com China e Rússia, também membros de uma espécie de “eixo” contra-hegemônico, as relações econômicas são muito boas e as políticas normais. Em termos de defesa militar conjunta, sabemos que existe intercâmbio de equipamentos, mas não há precisão de até onde os dois gigantes econômicos irão se envolver para defender o Irã no conflito regional que se anuncia. Sabe-se da existência de fornecimento de produtos militares (drones, munição balística, radares e sistemas de defesa aérea) mas não há conhecimento público preciso do poder militar que foi transferido para o país persa pelos dois parceiros. Avaliamos que as limitações da guerra na Ucrânia e as tensões sobre os destinos de Taiwan inibem que China e Rússia se transformem no curto prazo em atores pró-ativos no Oriente Médio.
Sendo assim, o Irã encontra-se sozinho no contra-hegemonismo contido na pax israelensis. Não consideramos que ele possua necessidade de se embrenhar em formar um projeto hegemônico próprio, pautado por uma espécie de “pan-xiismo”. É preciso aqui delimitarmos com mais precisão a razão desta situação. Como exportador de primeira linha de energia fóssil, a economia iraniana é capaz de produzir superávits na balança comercial e de pagamentos. Este poder é transferido diretamente para o desenvolvimento de uma variante de “capitalismo organizado”, na mesma clave do que foi descrito por Rudolf Hilferding[1] para as condições econômicas alemãs no século XIX. Em termos de economia política, diríamos que este superávit oriundo da renda obtida com a venda de petróleo pode estar sendo utilizado para compensar a “tendência decrescente da taxa de lucros”, tal como definida por Marx. Por outro lado, os aportes financeiros de seu comércio externo são a base da formulação de políticas públicas indutoras da industrialização, da produção de armamentos, do desenvolvimento tecnológico, da estabilidade macroeconômica, etc. A Guarda Revolucionária é, neste contexto, um instrumento potente do Estado iraniano em desenvolver esta organização econômica, sem afetar diretamente os interesses corporativos da burguesia. Tal insulamento dá ao Estado e suas políticas industriais e de defesa uma estruturação sólida e independente do mercado, permitindo a contínua produção de bens e serviços voltados para a defesa e soberania do Estado.
Tal como se encontra a situação política atual, o país persa é o único com condições materiais e imateriais de se interpor entre a pax israelensis e os demais países vizinhos, pois possui projeção de poder militar (via mísseis e drones) o suficiente para sustentar a formulação e implementação de um projeto político sólido oposto ao que pretende o sionismo externo. Dada esta característica de ser um hegemon regional em posição de defesa – já que não desenvolve um projeto hegemônico a altura de seu poderio econômico e militar, dentre eles a produção de uma bomba atômica, por motivos religiosos –, indicamos que, no caso iraniano, em contraposição ao “geo-sionismo”, desenvolveu-se nos últimos quarenta anos o “geo-xiismo”. Neste caso, entendemos que esta percepção não envolve, até o presente momento, um projeto expansionista e imperialista, mas uma ação de defesa da soberania e autonomia do Estado Nacional iraniano.
No Irã não poderá ser acionada uma política social genocida, tal como ocorre na Faixa de Gaza e no Líbano. Lá o islã político possui distância física razoável dos agressores, o que impede a entrada de tropas terrestres. Mesmo assim, a sinergia entre o que está para ocorrer obedece à mesmíssima lógica de tentar combater o islã político através da Doutrina Dahyia. Ou seja, o ataque que virá tem a intenção de promover a destruição física (como diriam os sionistas: “levar o país para a idade das pedras”) com vistas a produzir algum tipo de modificação na estrutura de poder que governa o país. Apesar de distante, esta possibilidade algo delirante deve ser tomada a sério. Somente com a consecução do ataque, e posteriormente do contra-ataque iraniano, é que poderemos avaliar o quão sólida é a posição do Irã neste confronto de hegemons.
Na Faixa de Gaza continua o processo de limpeza étnica, agora focado na aplicação de muita atenção para a parte norte, da fronteira com o Estado sionista até o Corredor Netzarim. Focamos anteriormente nesta área a que se dedicará o Estado sionista, no sentido de implantar o complexo militar/assentamentos/econômico, eliminando o mais possível aglomerações humanas não pertencentes ao projeto sionista. A tripla função atribuída pelos invasores a esta larga área – a de moradia, a de instalação de recursos militares e de proteção do eventual futuro Canal Ben Gurion –, está em franco desenvolvimento, produzindo o horrível massacre que ora está em marcha. O foco é o acampamento de Jabalia, que está isolada e sem acesso a recurso materiais para a sobrevivência da população e de comunicação. É o “genocídio dentro de um genocídio” que, para a surpresa de zero pessoas, são expostas com muito júbilo por muitos de seus agentes (os soldados) em vídeos postados em plataformas de comunicação social. Chama a atenção de qualquer pessoa crítica à política social genocida ora em curso o prazer com que esta tarefa de eliminação da vida alheia e de condições de infra-estrutura para a sua existência é apresentada por homens jovens. Dentro desta gente má haverão muitos que comporão a futura geração de líderes sionistas.
No Líbano, dada as especificidades da luta de extermínio contra o Hezbollah, também está em curso a estratégia de “destruição antes da luta” que a Doutrina Dahyia implantou. Também ali o trabalho perfeito da inteligência infiltrada no campo produz resultados efetivos na detecção de alvos físicos e lideranças dos grupos políticos em confronto com a invasão sionista. Também ali a utilização de farto aparato de inteligência (drones, bombas guiadas, software de reconhecimento) está em plena execução. Mas também ali existe a resistência à invasão do seu território e a solidariedade com a Faixa de Gaza.
Pouca viabilidade existe no momento de que a pretensão do Estado sionista em fazer “state building”, instituindo um presidente da República (cargo ora vago) pró EUA e Estado sionista. A pretendida construção de uma oposição ao islã político “por dentro” do Estado libanês não aparece no horizonte de curto prazo como uma solução que permita colocar o sionismo externo numa zona de conforto. A visita do representante diplomático norte-americano, Amos Hochstein, em 21 de outubro, oferecendo uma proposta de paz ao presidente do Parlamento, o xiita Nabi Berri, expôs a verdadeira agenda EUA-sionismo para o Líbano. A formação de um Estado laico e pró-ocidente e, de imediato, a adoção de uma nova pactuação, a adoção da resolução da ONU 1.701 (de 2006) acrescida com mais exigências sobre o esvaziamento do sul do Líbano de forças para-militares. A chamada “1.701 plus” também traz a exigência de espaço aéreo libanês franqueado para vôos da força aérea sionista.
Como não conseguem entrar com tropas terrestres no sul do país, a prática da Doutrina Dahyia fornece uma sensação de vitória (nada desprezível) ao sionismo externo. Assim que a rejeição do presidente do parlamento libanês à proposta trazida pelo enviado do governo dos EUA se concretizou, iniciou-se um pesado bombardeamento dos bairros onde vive a população xiita não vinculada ao Hezbollah, mas ao partido AMAL, do qual Nabi Berri é ligado.
Este cenário não poderá ser replicado com o Irã. A possibilidade de estabelecer algum tipo de dissuasão contra o poder quase ilimitado da aliança “ocidente coletivo + EUA + Estado sionista” dependerá da capacidade militar, econômica, política e social do governo iraniano em manter unidos suas capacidades estratégicas acumuladas nos últimos quarenta anos e sua população.
(*) Bernardo Kocher é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF)