Em artigo anterior deste Opera Mundi, argumentei que a invasão de Rafah representaria um timing muito específico em todo o processo da política social genocida aplicada contra o povo palestino. A ocupação do Corredor Filadélfia (ponto mais distante da fronteira da Faixa de Gaza com o Estado sionista, além de fronteira com o Egito), em tese, apontaria que fisicamente a tomada de todo o território pretendido pela ocupação encerraria a agressão. Tal fato ainda poderia dar a entender que não seria mais necessária nenhuma nova ação militar, já que os objetivos iniciais da ocupação teriam sido alcançados. O tempo tem demonstrado, no entanto, que o timing que apontamos tempos atrás está se explicitando, tornando a ocupação física do território palestino apenas uma fase de transição para possíveis novas e mais profundas operações do sionismo na implementação do holocausto do povo palestino.
A invasão de Rafah deveria representar o fim da retaliação insana do sionismo contra o povo palestino. Mas, ao contrário, dadas as condições internas e internacionais, a situação política do momento atual está se tornando apenas um “rito de passagem” para uma ação ainda mais vigorosa na conquista do Grande Israel pelo Estado sionista. Este é, enfatizamos, o problema a ser analisado, e não a busca de estabilidade e segurança do Estado sionista como seus porta-vozes e defensores propalam mundo afora. É por este motivo que não encontramos pacificação, já que, por outro lado, ao não permitir o encerramento do conflito, o Estado sionista promove a continuidade das tensões, gerando não o êxito da guerra travada, mas sim a formação de um estresse político no sionismo interno.
Um primeiro fator a ser considerado nesta, digamos, “transição”, é o fato de que o fim da ocupação do território do enclave palestino pode representar o início de um segundo momento no atual cenário: a extensão do holocausto palestino para o Líbano. Nesse país encontram-se duas características idênticas ao que ocorre na Faixa de Gaza: a) a existência de um agrupamento fundado no islã político, calcado no modelo da Fraternidade Muçulmana egípcia, o Hezbollah; e b) uma parcela da população palestina (que teve suas propriedades roubadas e foram expulsas de sua terra natal) concentrada no sul do país. Essa combinação de fatores induziu à solidariedade militar do Hezbollah ao povo da Faixa de Gaza, iniciada logo no começo da invasão sionista do enclave. Dada a infinita superioridade militar do Hezbollah em relação ao Hamas, percebemos que está sendo gestado pelo governo sionista um cenário que se torne adequado à legitimação do acionamento dos mecanismos de guerra; fato diferente ocorreu na Faixa de Gaza, quando este estímulo veio do islã político.
O cenário de guerra já está “contratado” pelas partes, muito embora tenhamos como consideração essencial que será o Estado sionista que iniciará a guerra formal. O Hezbollah tem afirmado que somente ataca a fronteira norte do Estado sionista em solidariedade à população da Faixa de Gaza. Sua liderança máxima, Hasan Nasrallah, anunciou publicamente que aceitaria qualquer acordo feito pelo Hamas e que encerraria os ataques com foguetes, drones e mísseis ao território do Estado sionista assim que fosse acordado o fim do conflito na Faixa de Gaza.
Há algumas semanas que esta guerra poderia ter começado, mas o que transcorreu neste período foi a escalada contínua das tensões, mas não ao ponto de iniciar a guerra ou torná-la irreversível. Essa demora do Estado sionista em acionar a máquina de guerra contra o povo libanês é produto de uma gama variada de elementos que podem (ou não) viabilizar o início da guerra Israel x Líbano. O primeiro deles é a exaustão física, o desgaste moral e o questionamento de parte das tropas e comandos sobre a pertinência de se reiniciar o processo genocida na fronteira norte. Fatos agravantes para essa perspectiva é que nem o islã político foi tornado inoperante na Faixa de Gaza e, em consequência, nem os cativos desde 7 de outubro foram libertados. Assim, já que a vitória total está fora de alcance (pelo menos num curtíssimo prazo), o que era propagado no início da política social genocida contra o povo palestino se transformou: agora a única solução para a liberação dos cativos é a negociação. Esta foi negada e renegada pelo governo, mas o que temos constatado é que mais uma vez aparecem notícias de que estão ocorrendo contatos diplomáticos mediados pelo Egito e pelo Catar visando viabilizar o fim do conflito e do cativeiro dos cidadãos sionistas. Devemos aguardar para saber se realmente existe disposição por parte do governo sionista em encerrar o conflito na Faixa de Gaza ou se o gabinete irá mais uma vez inviabilizar o acordo. Notamos também, contraditoriamente, que os ataques imotivados aos civis e as ordens de evacuação da população palestina continuam, tornando-se até mais sanguinários do que vinha ocorrendo. Aqui, certamente, devido às exigências de negociação pelo lado do Hamas, o Estado sionista deverá também libertar os cidadãos palestinos sequestrados.
O contingente militar sionista perdeu grande número de soldados, se comparado com as perdas que usualmente ocorreram nos conflitos anteriores, com menor duração. Sendo assim, essas perdas representam um número desconfortável para o nível elevado de consumo da sua população e para o padrão típico de participação do país em conflitos com os vizinhos. Dentro deste quadro, insistir na continuidade da guerra é demandar que uma juventude que usufrui de altíssimo padrão de vida se disponha a enfrentar um exército muito melhor equipado, treinado e experiente do que o Hamas. Ou seja, a perspectiva de que o número de baixas seja mais expressiva enfraquece o espírito de guerra dos soldados sionistas e também de parte da sua sociedade civil. No entanto, é justamente a continuidade da guerra sem a libertação dos cativos desde 7 de outubro a demanda que tem sido feita (ou imposta) pelo governo à sociedade. O significado desta orientação governamental não é a segurança ou a vingança, mas a implementação de um movimento ousado de tentar realizar de pronto as bases de um novo ciclo de expansão territorial para alcançar o projeto do Grande Israel.
A oposição a essa orientação governamental está em crescente acumulação de forças. Grandes e crescentes manifestações de rua percorrem o país exigindo o fim da guerra. Os comícios têm ensejando um tipo de repressão por parte do Estado sionista similar a que tem sido praticada contra o movimento estudantil ou as manifestações públicas de indivíduos ou coletivas na Europa, Estados Unidos da América e Canada. Diferentemente do que ocorre no exterior (onde a solidariedade ao povo palestino é a tônica), as palavras de ordem dessas manifestações são sempre focadas na questão da negociação para a libertação dos cativos de 7 de outubro de 2023, sem se preocuparem de forma objetiva com a política social genocida que o Estado sionista está praticando. O tom delas é de empatia quase exclusiva com os seus nacionais, o que as torna uma espécie de “solidariedade de classes”, já que a massa de cativos é proveniente do mesmo estrato social dos manifestantes.
Dado o esgotamento físico e a escassez de tropas depois de nove meses de combate, uma solução de ampliação do número de soldados no médio e longo prazo é a convocação dos jovens oriundos das comunidades religiosas. Aqui se abre um segundo foco de tensões que podem inibir a decisão do governo sionista em iniciar a guerra contra o Líbano. Isentos há décadas de inúmeras obrigações civis (entre elas o serviço militar) cerca de 13% da população dessas “bolhas teológicas” desfrutam de privilégios que estão se tornando inaceitáveis face à nova fase de perspectiva de expansão do Estado sionista. Além de serem mantidos pelo Estado (sem a obrigação de comparecerem ao mercado de trabalho) os grupos religiosos dispõem para o serviço militar ativo cerca de três mil jovens anualmente. Isto é, certamente, um certo alívio para a máquina de guerra sionista, muito embora o adestramento desses soldados deva ser problemático dado o nível de insubordinação explícita da sua comunidade com o papel civil e laico que o Estado sionista possui.
Ao mesmo tempo, a incorporação desse contingente cancelaria um privilégio inaceitável aos olhos dos que são obrigados a se engajarem nas forças armadas e já passam a contabilizar (ou mesmo pressentir) dificuldades típicas de uma guerra convencional devido ao crescimento da capacidade militar do islã político. Essa contabilidade nunca havia sido feita pela sociedade sionista dado o caráter superior do seu poderio bélico, sempre imobilizando meteoricamente e contundentemente os adversários. A nova diretriz de convocação obrigatória dos jovens religiosos não foi uma decisão do governo ou do parlamento, mas do poder judiciário, resolvendo uma pendência que durava décadas. O fato de essa questão ser decidida neste exato momento diz muito sobre o papel da guerra para a sociedade sionista.
Essas situações descritas acima demonstram o estresse (não uma crise política) tanto do governo quanto do “sistema” sionista. Elas ocorrem em meio a um conflito de fundo no sionismo interno, mas não questionam os fundamentos desse, pois todos os envolvidos nesse estresse estão conjugados de uma forma ou de outra na defesa da expropriação das terras palestinas para a formação do Estado sionista. Se alguma das forças presentes no cenário político nacional questionasse o papel usurpador que o sionismo exerceu (e exerce), aí sim teríamos uma crise instalada.
O governo e seus aliados no parlamento defendem de pronto a expansão territorial, em busca do Grande Israel. Aproveitando-se da superioridade militar e material demonstrada com a adoção da política social genocida após o ataque do islã político em 7 de outubro de 2023, essas forças sociais mobilizam ao paroxismo tanto os irreais sentimentos de fragilidade do país quanto o fantasioso mito do reavivamento do anti-semitismo. Atrás desse biombo fortalecem o poder militar da sua “defesa”(sic) e apontam para um avanço sobre as terras palestinas e as dos vizinhos. É o que podemos depreender sobre as vendas (?) de terras da população palestina na Cisjordânia realizadas na Europa Ocidental, nos Estados Unidos da América e no Canadá. Uma futura guerra com o Líbano, e quem sabe contra o Irã, daria cobertura política para a execução do expansionismo territorial ou até mesmo (em nome da defesa) promoveriam a incorporação de novas terras fora do mapa atual do Estado sionista. Apesar de distante, essa tendência não pode ser descartada como não factível ou fantasiosa. Basta considerar que a própria criação do Estado sionista, que partiu do zero em termos de presença sionista na Palestina, vem incorporando terras usurpadas ao longo de cem anos.
A outra corrente em conflito no interior do estresse que o sionismo interno atravessa, que caracterizamos no artigo anterior a este como sendo a “geração kibutz”, possui um horizonte político de manutenção e normalização do já alcançado na espoliação sionista do povo palestino, mas não se dispõe a continuar a expansão territorial. Chegam a dar a impressão de que não são (nem nunca foram) sionistas! Cremos que, no momento, os manifestantes contra o governo (que possuem como palavras de ordem a negociação para a libertação dos cativos e a realização de novas eleições) têm como objetivo imediato um “freio de arrumação” no sionismo interno, em busca de um governo “normal”. Incompatibilizados desde sempre com o atual primeiro-ministro e seu bloco de sustentação no parlamento, construíram um ideário de que o seu sionismo é o que está fundado em razões humanitárias, diferentemente daquele que está sendo implementado pelo atual governo, pertencente à “geração dos assentamentos”. Esse é acusado de incentivar o reavivamento do anti-semitismo (mais do que combatê-lo) ao utilizar a violência e o recurso de argumentos míticos para legitimar a expansão territorial do país por uma orientação desconexa com a a realidade. O objetivo do atual governo, para os críticos da “geração kibutz”, seria apenas o expansionismo territorial. O pretenso humanitarismo baseado em tradições judaicas desse seguimento também desconsidera sonoramente as razões do povo palestino; expressam apenas sua contrariedade com a “guerra sangrenta” que está sendo travada na Faixa de Gaza. Não realizam (e nem têm capacidade para tal) uma verdadeira autocrítica do papel do “seu” sionismo na construção do que está ocorrendo neste momento.
Na atual conjuntura de curtíssimo prazo, notamos que existe nessa disputa política um resultado parcial: ela aponta como predominante o lado da continuidade governamental, e não o da ruptura da atual política expansionista do Estado sionista. Mas, malgrado a maior coerência com a realidade que governa, o atual governo possui seus limites. Uma nova guerra (agora sim uma guerra formal, e não um massacre sem freios) com o Hezbollah no Líbano trará um desgaste muito maior do que o que está ocorrendo na Faixa de Gaza. Aqui, depois de nove meses, ainda existe a perspectiva de que o Hamas seja uma força política local determinante. O que esperar, então, de um conflito com uma força militar mais estruturada como o Hezbollah? Dado esse quadro, o ideal para o Estado sionista passa ser a conflagração total no Oriente Médio, o que forçaria à delimitação dos papéis de todos os governos da região e, invariavelmente, colocaria o Eixo da Resistência (Irã e seus proxies) no polo oposto no conflito. Os demais países e movimentos políticos teriam que se aliar ao sionismo e, caso não o fizessem, sofreriam as pesadas consequências da reação desse e de seus aliados imperialistas.
Mas tal situação de guerra regional geral só será possível de ser implementada pelo Estado sionista se os Estados Unidos da América participarem diretamente no conflito, o que em meio à campanha eleitoral é impossível de se ter como factível. Enquanto esse quadro não se torna viável (talvez esperando a vitória do candidato republicano), o sionismo externo aciona o mais que pode mecanismos de fustigamento dos três principais adversários regionais: o Irã, a Síria e o Hizbullah no Líbano. Utilizando a tática de “guerra pontual”, sempre atuando de forma a eliminar lideranças e alvejando outros pequenos pontos do território desses países, o Estado sionista busca fazer crescer sua orientação para construir a pax israelensis através do insuflamento de pequenos conflitos que passam a alimentar a perspectiva de se criar um maior.
Nesse quadro regional aparentemente caótico, mas totalmente compreensível dentro da perspectiva da construção do Grande Israel pelo atual governo sionista, não poderíamos deixar de nos solidarizar com a população da Faixa de Gaza. As agressões e violações de direitos básicos (inclusive os que regem a guerra) estão sendo totalmente desdenhados e tidos como irrelevantes por governos, mídia e vastos segmentos sociais do chamado “Ocidente coletivo”. A situação se perpetua, já que, no atual momento, nota-se que a vitória total sobre o islã político será impossível, muito embora sua capacidade operacional tenha se reduzido. Como vingança ou estratégia, a política social genocida se esmera em infligir perdas e dor ao povo palestino. Além disso, ao que tudo indica, a libertação dos cativos desde 7 de outubro de 2023 só será alcançada por meio de negociações. Essa situação sempre foi a única perspectiva realista na interpretação dos episódios ocorridos com o ataque do islã político ao território sionista. Se isso pode ser palpável a qualquer analista de bom senso, fica a questão: por que a utilização da política social genocida contra o povo palestino na Faixa de Gaza? Qual o seu significado? Destruir, mesmo que seja (aparentemente) sem sentido e contenha um alto custo humano, sempre foi a diretriz máxima do sionismo enquanto ideologia formadora do seu Estado no Oriente Médio.
(*) Bernardo Kocher é Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.