Damasco caiu. Essa foi a notícia que despertou Beirute hoje, 8 de dezembro de 2024. O governo de Bashar Al Assad foi deposto na Síria.
Em 12 dias, uma coalizão de combatentes da oposição lançou uma grande ofensiva contra as forças pró-governo e tomou o país das mãos da família Assad, que governou a Síria por mais de cinco décadas.
Cenas de pessoas sendo libertadas de prisões onde passaram a última década sendo torturadas pelo regime sanguinário de Assad invadiram a internet. A revolução síria, que teve início em 2011, parece finalmente ter chegado ao fim.
No entanto, ao tentar compreender as dinâmicas no Oriente Médio, é essencial abrir mão do maniqueísmo e lançar um olhar mais desconfiado quando se trata de revoluções.
Há 14 anos, a Síria vive sob as sombras do que o ocidente apelidou de Primavera Árabe. O nome Primavera faz referência à Primavera dos Povos, revoluções europeias de 1848. Não é surpreendente que o termo Primavera Árabe tenha sido cunhado pelo Ocidente para descrever um processo revolucionário na região, considerando que a própria expressão Oriente Médio também é uma construção ocidental. Esse nome reflete uma visão eurocêntrica, definindo semanticamente a região com base em sua posição geográfica em relação à Europa.
Em 2011, uma onda de protestos se iniciou na Tunísia após a autoimolação do vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi. As manifestações levaram à queda do ditador Ben Ali e se alastraram pelo norte da África até o Oriente Médio.
Nas ruas de Trípoli, Cairo, Damasco, Sanaa e Manama, milhares foram às ruas. Pessoas comuns, cidadãos como eu e você, clamando por melhores condições de vida e liberdade.
Acontece que levantes como aqueles nem sempre são o prenúncio de tempos mais democráticos, além de serem frequentemente sequestrados pelo Ocidente para servir a seus próprios interesses. A exemplo da Tunísia, Líbia e Egito, onde a tal Primavera Árabe pareceu, em um primeiro momento, bem sucedida, regimes com novas doses de tirania se instalaram.
Nesses mais de 50 anos no poder, o regime da família síria Assad aprisionou, torturou, brutalizou, assassinou, e desapareceu com centenas de milhares de seus cidadãos. Isso sem mencionar o uso de armas químicas contra sua própria população.
O fim da tirania Assad, portanto, significa o reencontro de pessoas que foram separadas de suas famílias; o respiro de liberdade daqueles que foram arbitrariamente presos; a esperança de gerações que foram amordaçadas por demandar publicamente o fim de uma era de repressão.
Mas assim como outras revoluções no Oriente Médio, a revolução síria está intrinsecamente ligada a interesses que vão muito além daqueles do povo sírio. Para além de suas demandas legítimas, há articulações complexas envolvendo grandes potências e suas agendas imperialistas.
Os Estados Unidos, que de democráticos e liberais em suas invasões e intervenções no Oriente Médio não têm absolutamente nada, são verdadeiros especialistas em direcionar os levantes árabes para caminhos que favorecem a sua agenda política. E com a Síria não poderia ser diferente.
Bashar Al-Assad não era apenas um líder autoritário. Sob seu controle, a Síria funcionava como um elo estratégico no fornecimento de apoio direto do Irã ao Hezbollah, o grupo xiita baseado no Líbano que resiste à ocupação sionista de Israel, que por sua vez é apoiado pelos Estados Unidos.
O desmantelamento do regime de Assad pode resultar, portanto, no estrangulamento logístico do Hezbollah, enfraquecendo significativamente sua posição na região e possibilitando, assim, a maior efetividade de um avanço israelense.
Não por acaso, a tomada de cidades sírias pela coalizão opositora começou exatamente no dia 27 de novembro de 2024 – dia em que entrou em vigor, no Líbano, o cessar-fogo entre Hezbollah e Israel.
Hoje, enquanto o governo Assad caía em Damasco, Israel avançava na Síria para além das Colinas de Golã, território sírio ocupado pelos sionistas na guerra dos seis dias, em 1967.
Estas não são coincidências, mas indicativos de como as dinâmicas locais estão interligadas às disputas regionais e globais. Assim, o que parece uma revolução nacional é, na verdade, o campo de batalha de interesses externos que moldam o destino de povos inteiros.
Enquanto continuarmos usando o Ocidente, com suas políticas e denominações impregnadas de orientalismo, como lente para interpretar o Oriente Médio, estaremos longe de compreender o que realmente acontece na Síria e na região como um todo.
É certo que a liberdade dos povos árabes tem muitos ditadores na lista de inimigos. Mas o maior deles encontra-se além-mar e se dizem os guardiões dos valores do estado democrático de direito – contanto que esta mesma democracia e este mesmo direito não sejam gozados por aqui.
(*) Giovanna Vial é enviada especial de Opera Mundi a Beirute, capital do Líbano.