Segunda-feira, 9 de junho de 2025
APOIE
Menu

Em meio a uma campanha pública para reverter os cortes e bloqueios no orçamento das universidades federais, grandes jornais empresariais do país aproveitaram para, mais uma vez, atacar as universidades públicas brasileiras, descritas por eles como caras, ineficientes ou, pior, espaços de privilégio, em função da supostamente injustificada estabilidade dos seus servidores, especialmente professores/pesquisadores/as.

Para quem acompanha o debate intelectual do país desde a redemocratização, nenhuma surpresa. Já passam das dezenas os trabalhos que analisam, de modo sistemático, o movimento orquestrado pela mídia empresarial (Folha de S. Paulo à frente) para atacar o que ela entende como uma legitimidade exagerada das universidades no espaço público brasileiro (Ver, dentre outros: Chiaramonti, 2015; Chiaramonti & Hey, 2018; Meirelles, 2021, 2024; Niementz, 2017).

Trabalhadores da educação fazem ato em frente ao MEC. (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
Trabalhadores da educação fazem ato em frente ao MEC.
(Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

No caso específico da Folha de S. Paulo, os ataques assumem diferentes facetas que incluem, por exemplo, a publicação da tecnicamente equivocada “lista dos improdutivos” da USP em fins dos anos 1980, como modo de “provar” a ineficiência da universidade pública; a contratação, como colunistas de destaque do jornal, de polemistas como Olavo de Carvalho, Luiz Felipe Pondé e Reinaldo Azevedo, que alvejavam prioritária e grotescamente as universidades públicas; a tentativa reiterada de deslegitimar intelectuais simbólicos da universidade, como Marilena Chauí e Francisco de Oliveira; a eterna campanha pela cobrança de mensalidades; o ataque sistemático às políticas de cotas; a criação de um ranking universitário (RUF) que sobrevaloriza critérios afins ao ensino superior privado; uma linha editorial de reportagens permanentes contra as universidades públicas; além de mais de uma centena de editoriais que apresentam de maneira requentada os mesmos argumentos a um só tempo elitistas, privatistas e, mais recentemente, negacionistas.

Receba em primeira mão as notícias e análises de Opera Mundi no seu WhatsApp!
Inscreva-se

As razões desse ataque permanente são variadas e complexas. Vão de interesses empresariais mais imediatos, ligados à legitimação de um mercado midiático de opiniões que, no espaço universitário, se acessa de graça, até interessantes econômico-políticos mais estratégicos, ligados à consolidação do neoliberalismo financeiro no país, do qual as famílias-proprietárias desses jornais são beneficiárias diretas, passando pelo sempre presente preconceito de classe, raça e gênero dos donos e financiadores desses jornais.

Esses proprietários, marcados socialmente, olham com quase desespero para a mudança estrutural do espaço intelectual brasileiro produzida pela democratização do acesso à universidade pública a partir de 2003. Não custa lembrar que todos os grandes jornais do país, sem exceção, são de propriedade e/ou direção de homens, brancos e titulares de fundos financeiros que, hoje, constituem a parte mais rentável dos seus negócios (Nunes, 2021).

É compreensível que esses sócios privilegiados do neoliberalismo brasileiro, que remuneram seus investimentos com “serviços da dívida pública”, sejam defensores ferrenhos da política de juros exorbitantes do Banco Central “independente” e, ao mesmo tempo, detratores dos “altos custos” da universidade pública e dos “privilégios” de seus professores. Além de concorrentes socialmente mais legítimos na disputa pelo orçamento público, as universidades são um espaço importante de crítica ao recrudescimento financeiro e neoliberal e ao negacionismo que lhe é caudatário.

Um exemplo disso está num exercício analítico simples, de caracterização das principais posições do debate sobre a Emenda Constitucional 95 (então Teto de Gastos). Tomando como objeto justamente articulistas desses jornais empresariais, é possível demonstrar que a controvérsia em torno da constitucionalização do ajuste fiscal opôs, de um lado, os muitos articulistas favoráveis, todos eles praticamente caracterizados por uma trajetória de formação fora do país e um histórico de atuação em centros privados de conhecimento (escolas superiores privadas, think tanks empresariais e centros de análise de empresas) aos poucos críticos formados, basicamente, por economistas de formação nacional e atuando como professores/as de universidade públicas do país (Carlotto,  2018). Outros exercícios parecidos chegaram a conclusões semelhantes (Meirelles & Chiaramonte, 2019). 

Nesse quadro, em que os custos do Teto de Gastos – agora denominado Novo Arcabouço Fiscal – e os juros exorbitantes – resultado do Banco Central “independente” – começam a ficar altos demais, não surpreende que o amálgama político formado pela mídia empresarial, pelos centros privados de conhecimento e pelo neoliberalismo financeiro que lhes dá suporte queiram atacar justamente um dos poucos espaços que, calcado na democratização do acesso, no pluralismo de vozes, corpos e experiências sociais e na autonomia conferida pela estabilidade de carreira, ousam se levantar contra um arranjo neoliberal e financista que ameaça inviabilizar um projeto democrático de país. É pela sua capacidade de crítica e dissidência que as universidades públicas são, mais uma vez, alvo. 

Por isso, não surpreende, também, que os editoriais que atacam a universidade pública silenciem justamente sobre o essencial, a saber, que:

1 – As universidades públicas, especialmente federais, operam há uma década com sérias restrições orçamentárias, que só não inviabilizaram o seu funcionamento porque elas gozam de uma gestão eficiente e, sobretudo, democrática e transparente. 

2 – Com um orçamento nos mesmos patamares de 2008, as universidades federais seguiram expandindo seu alunado, passando de 564.911, em 2005, para praticamente 1,5 milhões de alunos em 2023, incluindo graduação e pós-graduação.

3 – Essa expansão se fez com democratização do acesso, de modo que a maior parte do alunado dessas instituições é composta por jovens oriundos das classes trabalhadoras, com destaque para as mulheres, negras, egressas de escola pública, hoje o principal grupo demográfico presente nas universidades federais do país (Carlotto, 2021).

4 – Por fim e não menos importante, a carreira do magistério superior teve o pior reajuste salarial de todo o funcionalismo público federal no governo Lula III, não obstante terem os professores e professoras universitários do país passado a última década empenhados na sua tarefa constitucional de defender, veementemente, a democracia, o meio ambiente, a saúde pública, as políticas públicas baseadas em evidências, dentre outros pilares do nosso Estado Democrático de Direito, como nenhuma outra carreira de Estado e por meio da realização da sua missão de ensino, pesquisa e extensão.

Por tudo isso, a recomposição orçamentária anunciada ontem (27), pelo Governo Federal aponta na direção correta, mas é preciso ir além:

O governo precisa confirmar a revogação ou modificação do Decreto nº 12.448/2025, que reduz de 1/12 para 1/18 o orçamento mensal. A medida é grave, dado que impacta diretamente o pagamento mensal de bolsas e de outras políticas de assistência estudantil, hoje a cargo das universidades e que, diferentemente de contas de água e luz, não podem esperar, sem altos custos sociais, a liberação integral do orçamento em dezembro. 

É preciso avançar, ainda, na consolidação de uma política substancial e permanente das universidades públicas que vá além do MEC e envolva outros órgãos públicos. Isso porque, além da  função essencial de ensino, as universidades federais são responsáveis por praticamente toda a pesquisa científico-tecnológica do país, ainda que sua agenda nem sempre esteja vinculada aos interesses populares mais importantes (Dagnino, 2008; 2024); por parte importante da política de memória e preservação de patrimônio, por meio da manutenção de casas de cultura e museus; por uma política importante de extensão e prestação de serviços à comunidade; para não falar dos hospitais universitários que, em muitos estados da federação, respondem sozinhos pelos atendimentos de alta complexidade, constituindo pilar fundamental do Sistema Único de Saúde. 

Por fim, é preciso retomar urgentemente um processo de revalorização da carreira de magistério superior, por meio de medidas como a aprovação de uma política de aposentadoria integral para todos e reenquadramento de aposentados, a aprovação da entrada lateral da carreira, a manutenção de direitos adquiridos, como o auxílio transporte, e um plano de recomposição salarial que recupere integralmente as perdas dos governos Temer e Bolsonaro, reaproximando o magistério superior de outras carreiras do funcionalismo federal.

O governo acertou ao se afastar das vozes que querem o fim da universidade pública, para quem nunca haverá cortes que cheguem ao ponto. Acertou, mas é preciso ir além. O governo Lula III, em coerência com a história da política universitária dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, deve, no curto prazo, rever suas medidas de restrição do empenho orçamentário das universidades públicas, especialmente o Decreto nº 12.448/2025, bem como as medidas de fragilização da carreira de magistério superior, a começar pela morosidade com que tem implementado os acordos não salariais das greves e outras medidas como a restrição ao acesso ao auxílio transporte. No médio prazo, deve consolidar uma política permanente e interministerial de financiamento público às universidades federais e reestruturar e revalorizar a carreira de magistério superior. 

 Valorizar a universidade pública e os seus professores é parte fundamental da defesa de um projeto de país democrático e soberano, que vai na contramão do que se vislumbra, há décadas, nos editorais da imprensa empresarial do país. 

(*) Maria Caramez Carlotto é professora da UFABC, presidenta da Associação dos Docentes da UFABC e coordenadora do Grupo de Pesquisa Neoliberalismo, Democracia e Mudança Estrutural do Espaço Intelectual Brasileiro. Foi candidata à secretária geral da Associação Nacional de Docentes de Ensino Superior – Sindicato Nacional.


Referências:
CARLOTTO, Maria Caramez. O espaço internacional como fonte de legitimação dos especialistas brasileiros da área de economia: uma análise do debate em torno da PEC dos Gastos. In: 42º Encontro Anual da ANPOCS, 2018, Caxambu. Anais do 42º Encontro Anual da ANPOCS GT10/Elites e formas de dominação, 2018. 
CHIARAMONTE, Aline Rodrigues. Lutas simbólicas e doxa: jornalistas e acadêmicos no caso da ‘lista dos improdutivos’ da USP. 2015. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
CHIARAMONTE, Aline Rodrigues. & HEY, Ana Paula. Que a USP descanse em paz! Disputas simbólicas entre jornalistas e acadêmicos em fins dos anos de 1980. Revista Política e Sociedade, v. 17, p. 250-276, 2018.
DAGNINO, Renato. Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico: um debate sobre a tecnociência. Campinas: Ed. Unicamp, 2008. 
DAGNINO, Renato. A educação na periferia do capitalismo: construindo um novo pacto. Universidades, n. 100, v. 75, p.59-75, 2024.
MEIRELLES, Allana & CHIARAMONTE, Aline Rodrigues. Os economistas-colunistas no debate sobre as reformas no Brasil. Estudos de Sociologia, v. 24, p. 137-170, 2019.
MEIRELLES, Allana. Opiniões à venda: oposições políticas e divisão do trabalho intelectual na mídia. 2021. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. 
MEIRELLES, Allana. A corte sem nobreza: polemistas e anti-intelectualismo na mídia. Tempo Social, v. 36, p. 239-262, 2024.
NIEMIETZ, César de Lima. Nova República, novo jornal: disputas pela legitimação do jornalismo da Folha de S. Paulo na redemocratização. 2017. Dissertação (mestrado em Sociologia) -, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
NUNES, Dimalice. Ecalada da precaridade das mulheres jornalistas: transformações do trabalho e subjetividade. Florianópolis: Editora Insular, 2021.