Chegamos ao quarto e penúltimo escrito da nossa série sobre Guerreiro Ramos e a questão racial. No texto anterior, debati o que considero o ponto alto da formulação do sociólogo baiano: sua teoria da estética social alienada e eurocêntrica vigente no Brasil. Depois de O problema do negro na sociologia brasileira, os escritos do autor perdem o brilhantismo e mostram sinais de regressão na formulação teórica. Vamos analisar os demais textos da coletânea Negro Sou e concluir o debate sobre o livro. No último escrito dessa coluna, busco oferecer um arremate geral e apontar o que considero atual e superado na obra do sociólogo baiano.
O negro desde dentro é um escrito do mesmo ano que O problema do negro na sociologia brasileira, 1954. Nesse texto, o sociólogo inicia a formulação teórica destacando a negativação do ser negro como sinônimo de tudo de ruim, feio, demoníaco, e a brancura como o antônimo positivado. Depois de apresentar reflexão já conhecida, o autor direciona para essa conclusão: “eis por que é digna de repulsa toda atitude que, sob a forma de folclore, antropologia ou etnologia, reduz os valores negros ao plano do ingênuo ou do magístico. Num país de mestiços como o nosso, aceitar tal visão constitui um sintoma de autodesprezo ou de consciente subserviência aos padrões estéticos europeus” (RAMOS, 2023, p. 199).
Depois desse trecho, aparece um elemento de novidade. Guerreiro Ramos, finalmente, aborda a questão da mulher na sua reflexão sobre relações raciais no Brasil. Diz que a força da “brancura” – ou da estética social alienada – é tão forte que domina até os nossos melhores pensadores e cita como exemplo a forma como a “negrura aí aparece como subalterna” e essa subalternidade, no caso das mulheres [negras], acaba resumindo-as ao “puramente dionisíaco” como se isso fosse tudo na “sua especificidade”. Cita como exemplo um verso de Vinicius de Moraes que diz:
“E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma moça que dava.”
Guerreiro afirma que podemos encontrar problemas semelhantes, a despeito das “melhores das intenções”, em Mário de Andrade, Jorge de Lima, Nicolás Guillén e a “legião de seus imitadores” (RAMOS, 2023, p. 199). O sociólogo diz que é frequente o estereótipo “branca para casar, negra para cozinhar, mulata para fornicar!”. Contudo, sua reflexão sobre a mulher negra termina aqui. Ele não debate, por exemplo, o papel da mulher negra na divisão social do trabalho – o que traria muitas dificuldades para sua tese sobre a grande mobilidade social da população negra – e passa a citar pensadores como Luiz Gama e os intelectuais do movimento negritude de matriz francófona que debatem a mulher negra e sua beleza/corporeidade fora desses estereótipos negativadores.
A empolgação de Guerreiro com o movimento negritude é aberta e declarada. Ele fala de “uma verdadeira revolução poética” antes de citar versos de Aimé Césaire, por exemplo. Para o autor, a negritude representava uma contestação crítica e radical ao eurocentrismo e à estética social alienada imposta pelo colonialismo, mas sem fechar-se numa identidade fetichista e reificada de sentido contrário. Ou seja, em figuras como Aimé Césaire, o autor encontrava um verdadeiro caminho da universalidade, onde a negação do racismo deságua num humanismo integral.
Essa perspectiva aparece explícita quando diz que “a rebelião estética de que se trata nestas páginas será um passo preliminar da rebelião total dos povos de cor para se tornarem sujeitos de seu próprio destino”. Essa “rebelião”, contudo, não é “racismo às avessas”. Mas sim uma contestação total às formulações do negro desde fora, olhando como mero objeto, não-sujeito – em suma, as abordagens que Guerreiro Ramos chama de o negro como “problema” ou como “tema” (RAMOS, 2023, p. 204). O resultado final do processo será a realização da autenticidade, uma estética social fincada na realidade brasileira e a superação dos padrões eurocêntricos do tecido social.
Assim conclui a reflexão. Como vimos, trata-se tão somente de continuar pontos do seu ensaio anterior, tendo como novidade “aplicar” a teoria da estética social alienada para a questão da mulher negra e da poesia/literatura. O escrito seguinte da coletânea Negro Sou é uma entrevista intitulada A descida aos infernos, onde o autor, na parte mais importante para nosso tema, anuncia que lançará sua teoria da “patologia social do ‘branco’ brasileiro” – e dispara várias alfinetadas para Gilberto Freyre (RAMOS, 2023, p. 209-210). O tema das críticas de Guerreiro Ramos contra Gilberto Freyre será abordado ao final deste texto.
1954 termina sem Guerreiro Ramos apresentar a tão prometida teoria sobre a patologia social do branco brasileiro. No ano seguinte, publica um texto sobre a Semana do Negro de 1955, onde continua sustentando que a questão negra é tão somente uma “situação de superestrutura” (RAMOS, 2023, p. 212) e não tem fundamento nas relações de produção e na divisão social do trabalho; também lança – em abril de 1955 – um artigo intitulado Nosso senhor Jesus Cristo Trigueiro. O escrito sobre o Jesus Trigueiro é importante porque nele, finalmente, Guerreiro debate o papel da religião cristã no racismo e na alienação estética brasileira. Vimos em textos anteriores o autor desprezar as religiões de matriz africana e recomendar aos negros converte-se ao cristianismo, considerando-a a religião mais adequada à dinâmica concorrencial do sistema capitalista.
A Igreja Católica, a instituição mais duradoura da história brasileira, não é abordada como um dos fundamentos do racismo brasileiro, e a relação entre cristianismo, colonialismo e eurocentrismo é deixada nas sombras. Foi depois de um incidente com sua filha de cinco anos (à época) na escola que o sociólogo enfim abordou a relação entre cristianismo e racismo. O autor faz um debate histórico sobre a imagem de Jesus e os efeitos da idealização de Cristo como louro de olhos azuis. Depois de argumentar amplamente sobre o Jesus Histórico, lança uma reflexão-síntese que abarca identidade nacional, educação, formação das crianças e soberania nacional. Diz o pensador baiano:
“A nossa corrente idealização do Nosso Senhor, como homem louro e de olhos azuis, reflete uma alienação estética, um autodesprezo, uma atitude de subserviência, na qual renunciamos a um critério comunitário e imediato do belo e do excelso em favor de um critério estranho à vida nacional. Jesus Cristo, em sua representação natural no Brasil, não poderia nunca ser loiro nem de olhos azuis, se desejamos ser autênticos. Os chineses e os japoneses, povos de grande caráter, o representam à sua semelhança. É tempo de desembaraçarmos a imagem do Filho de Deus da inconveniente subalternidade dos que, no Brasil, o pintam louro e de olhos azuis. É tempo de desimisculí-la dessa sutil agressão que, nos colégios e em outros lugares, se comete todos os dias ao brasileiro, um tipo antropológico escuro por excelência. Uma agressão que se serve das crianças e que, muitas vezes, as submete a dolorosas ambivalências quando confrontam a idealização do Deus-Homem e dos santos com a realidade natural dos seus pais” (RAMOS, 2023, p. 219).
Nesse ponto, é preciso indicar um aspecto curioso na obra do sociólogo baiano. O movimento comunista nasceu com um centro político, teórico e institucional: a União Soviética. O peso dos soviéticos na Internacional Comunista ou Terceira Internacional, e por consequência no partido comunista (PC) de cada país estimulou vários pensadores a considerar os PCs como meros satélites de Moscou, simples correias de transmissão da política da URSS. Guerreiro Ramos afirmava que o PCB era uma instituição alienada da realidade brasileira, dado sua dependência das diretrizes e do marxismo-leninismo emanado de Moscou.
O pensador nunca considerou a possibilidade de um marxismo-leninismo à brasileira, deitando raízes na nossa realidade nacional. Uma das razões para o caráter intrinsecamente alienado do movimento comunista no Brasil – afirmava o sociólogo –, era a própria estrutura organizativa do movimento comunista com o peso da União Soviética. Contudo, no tema do cristianismo, é patente como o autor ignora em Nosso senhor Jesus Cristo Trigueiro a dinâmica organizativa global da Igreja Católica e como, a despeito das particularidades nacionais da igreja em cada país, existia um centro de comando no Vaticano que, dentre outras coisas, dizia globalmente qual era a imagem “correta” de Jesus.
O debate de Guerreiro é refundar as imagens e representações do cristianismo, parte do esforço de forjar uma nova estética social brasileira, mas desconsiderando o poder e a influência da ossatura institucional do cristianismo em nosso país, materializado na Igreja Católica. No caso do movimento comunista, a dinâmica organizativa internacionalizada impede uma nacionalização do marxismo-leninismo; no caso do cristianismo, o tema não é considerado.
Mais do que buscar uma “incoerência” na abordagem do autor, o que nos interessa é compreender como vai se configurando uma aversão ao conflito, à luta aberta. O sociólogo, de maneira consciente ou não, apresenta a necessidade de refundar os padrões estéticos de um dos elementos centrais da nossa idade nacional, mas sem conflito declarado com a Igreja Católica e tudo que ela representa. Ele chega a escrever que “não acredito que a iniciativa, posta nestes termos, venha a inspirar reservas” (RAMOS, 2023, p. 220). Vejamos como essa tendência de aversão ao conflito se configura naquela que seria a mais inovadora reflexão de Guerreiro Ramos sobre a questão racial (pensada nesses termos pelo próprio autor).
Na metade de 1955, o sociólogo lança o tão aguardado Patologia Social do “branco” brasileiro. Para fazer o debate sobre o escrito, vamos abordar ponto por ponto, incorrendo em algumas repetições, considerando o escrito anterior desta coluna. O exame exaustivo e até enfadonho em citações é indispensável para demonstrar a nossa hipótese central: a teoria da patologia social do branco de Guerreiro não tem inovação teórica se comparado com as formulações de O problema do negro na sociologia brasileira e, na dimensão política, apresenta sintomas de regressão. Vamos ao texto.
Guerreiro abre o ensaio com um dos temas mais recorrentes nas suas reflexões sobre a questão racial: atacando a ideia do “negro-tema”, olhado e visto “ora como ser mumificado” e “ora como ser curioso” e defende, em contraponto, a perspectiva do “negro-vida”, sujeito multiforme, sem versão definitiva, e arredio a formalizações esquemáticas (RAMOS, 2023, p. 225). Em seguida, critica como de hábito os estudos sociólogicos e antropológicos em curso sobre o negro, destaca sua disfuncionalidade para compreensão da realidade nacional e aponta que “há hoje uma contradição entre as ideias e os fatos de nossas relações de raça. No plano ideológico, é dominante ainda a brancura como critério de estética social. No plano dos fatos, é dominante na sociedade brasileira uma camada de origem negra, nela distribuída de alto a baixo” (RAMOS, 2023, p. 226).
O autor repete formulações já conhecidas, como a desatualização das ideias correntes sobre raça no Brasil com a realidade dos fatos objetivos da economia nacional e a noção de que temos negros e negras em todos os estrados da sociedade brasileira. Uma noção, repito, de ampla mobilidade da população negra, não mais confinada, essencialmente, ao papel de classe trabalhadora (nas suas diversas frações). Depois disso, o autor cita o Teatro Experimental do Negro e suas inovações teóricas no campo em estudo, a impossibilidade de apoiar-se na literatura sociólogica e antropológica feita por brasileiros – “os nossos especialistas nesse domínio têm contribuido mais para confundir do que esclarecer” – e faz um alerta de cunho abertamente político. Diz o autor:
“Por outro lado, receio que alguns leitores, impressionados com os aspectos verbais aparentes deste estudo, nele descubram intenções agressivas. A esses leitores asseguro, com sinceridade, que o meu propósito é, ao contrário, generoso e pacifista” (RAMOS, 2023, p. 226 – grifos nossos).
Peço que guardem essas palavras, sobre a intenção não agressiva, generosa e pacifista do estudo em análise. Voltaremos a abordá-la. Feita essa ressalva política, o sociólogo baiano começa a debater o conceito de patologia aplicado às ciências sociais. Trata como esse conceito aparece com maior frequência em adeptos do biologicismo ou dos organismos, tem tendência para abordagens ahistóricas e forte acento conservador – “a saúde da sociedade equivaleria, para diversos organicistas, a um estado de que só se beneficiam os que integram a classe dominante” (RAMOS, 2023, p. 227).
Contudo, Émile Durkheim, para o sociólogo baiano, avança na compreensão das patologias sociais, ao destacar seu caráter histórico, fugir do esquematismo e naturalismo e colocar em tela critérios objetivos para definir a dinâmica normal/patológico. Nas palavras de Guerreiro Ramos, “Durkheim considerava, portanto, o critério do normal como algo a ser induzido das condições particulares de cada sociedade e segundo os seus limites faseológicos” (RAMOS, 2023, p. 228). Depois de citar largamente o autor de As regras do método sociológico, destacando que sua concepção de patologia social não se confunde com abordagens naturalistas/organicistas/biologicistas, busca “aplicar” o conceito exposto de patologia social às condições brasileiras. É necessário fazer uma longa citação para retratar com fidelidade o pensamento do autor:
“Nas condições iniciais da formação do nosso país, a desvalorização estética da cor negra, ou melhor, a associação dessa cor ao feio e ao degradante afigurava-se normal, na medida em que não havia, praticamente, pessoas pigmentadas senão em posições inferiores. Para que a minoria colonizadora mantivesse e consolidasse uma dominação sobre as populações de cor, teria de promover no meio brasileiro, por meio de uma inculcação dogmática, uma comunidade linguística, religiosa, de valores estéticos e de costumes. Só assim, diria Gumplowicz, poderia apoiar sua autoridade em sólidos pilares, o que sempre constitui, para todo poder, um valioso elemento de conservação, uma efetiva garantia de duração (…) Para garantir a espoliação, a minoria dominante de origem europeia recorria não somente à força, à violência, mas a um sistema de pseudojustificações, de estereótipos, ou a processos de domesticação psicológica. A afirmação dogmática da excelência da brancura ou a degradação estética da cor negra era um dos suportes psicológicos da espoliação. Esse mesmo fato, porém, passou a ser patológico em situações diversas, como as de hoje, em que o processo de miscigenação e de capilaridade social absorveu, na massa das pessoas pigmentadas, larga margem dos que podiam proclamar-se brancos outrora, e em que não há mais, entre nós, coincidência de raça e de classe” (RAMOS, 2023, p. 230-231 – grifos nossos).
O raciocínio do autor é cristalino. No período do Brasil colônia, a negativação do ser negro tinha fundamento econômico e papel central no sisema de dominação. Era um componente esperado e normal da dinâmica social estabelecida. Contudo, no Brasil de 1955, tal dinâmica de dominância da brancura é patológica, pois sem fundamento em uma espoliação econômica e na reprodução de um sistema de dominação de uma minoria branca contra uma maioria negra/mestiça. Afinal, com a miscigenação e a mobilidade social, não existindo mais coincidência entre raça e classe no Brasil, torna-se inexistente uma maioria negra/mestiça, essencialmente trabalhadora, a ser explorada por uma minoria branca, burguesa e dominante – a relação entre raça e classe no Brasil constitui o fundamento, o argumento central, para sustentar a teoria da patologia social.
A estética social alienada, positivadora da brancura, é patológica, pois desligada das estruturas objetivas da sociedade brasileira, um complexo social sem função e papel na reprodução social. Cumpre destacar, também, que o autor afirma sem debater ou tentar provar a não coincidência entre raça e classe no Brasil – o que, em bom português, significa que teríamos pessoas negras em todas as classes e frações de classe: inclusive, é claro, uma burguesia negra.
A pergunta que se impõe frente a essa afirmação é porque permanece então essa negativação do ser negro na sociedade brasileira, dado seu completo desligamento das estruturas e dinâmicas da nossa formação social. Vejamos a resposta do sociólogo. Para Guerreiro Ramos, “na sociedade brasileira, em larga escala, o ethos, a norma, ainda dominantes, são remanescentes de fases ultrapassadas de nossa evolução econômico-social, e se destinam a ser superados em consequência do aparecimento de novos fatores objetivos que estão já condicionando a vida do país” (RAMOS, 2023, p. 233).
Ou seja, a persistência da negatividade do ser negro é uma remisciência do passado, uma continuidade de um ethos social de outras estruturas econômicas, sociais e políticas já superadas. Justamente por isso que o autor fala em patologia, dado que esse ethos, essa positivação da brancura, é uma espécie de corpo estranho, uma ideia fora do lugar, algo descolado do dinamismo contemporâneo da formação social brasileira. Essa patologia aparece com maior força no “Norte e Nordeste” do Brasil, como pode ser visto a seguir:
“Essa patologia consiste em que, no Brasil, principalmente naquelas regiões [Norte e Nordeste], as pessoas de pigmentação mais clara tendem a manifestar, em sua autoavaliação estética, um protesto contra si próprias, contra a sua condição étnica objetiva. E é esse desequilíbrio na autoestimação, verdadeiramente coletivo no Brasil, que considero patológico. Na verdade, afeta a brasileiros escuros e claros, mas, para obter alguns resultados terapêuticos, considerei, aqui, especialmente, os brasileiros claros” (RAMOS, 2023, p. 233).
Para comprovar que “o brasileiro considera vexatório a sua condição racial”, o sociólogo cita longamente um documento do IBGE sobre as dificuldades de recenseamento da composição étnico-racial do povo brasileiro. O documento citado mostra, dentre outras coisas, que há uma negação a considerar-se negro e, ao mesmo tempo, em regiões com maior predominância de brancos, uma tendência a enquadrar mulatos ou mestiços como negros (hoje chamados, pelo próprio IBGE, de pardos). Após a longa citação do documento (quase três páginas), o autor tira a seguinte conclusão: “melhor flagrante não poderia obter da perturbação psicológica do brasileiro em sua autoavaliação estética. Todos aqueles informes mostram o sentimento de inferioridade que lhe suscita a sua verdadeira condição étnica” (RAMOS, 2023, p. 236 – grifos nossos).
Grifamos a palavra perturbação psicológica pois ela ilustra como, primeiro, o autor defende que a inferiorização do negro é fruto de remisciências de normas e ethos de épocas passadas ainda não superadas e, depois, sublinha a dimensão psicológica na consciência dos brasileiros. Então, além de uma norma ultrapassada, descolada do dinamismo da formação social brasileira, temos uma psicologia coletiva também sem fundamento na economia, política, relações de classe etc.
Na continuidade do argumento, depois de destacar diferenças regionais na configuração étnico-racial, Guerreiro Ramos abre uma frente de debate que hoje pode parecer estranha, mas que na época fazia sentido. O sociólogo diz: “grifo a palavra ‘branco’, pois que o nosso branco é, do ponto de vista antropológico, um mestiço, sendo, entre nós, pequena minoria o branco não portador de sangue preto”. O autor continua o argumento destacando que é no Norte e Nordeste onde são mais nítidos “os traços da patologia social do ‘branco’ brasileiro”, pois são regiões com maior porcentagem de negros e mestiços no Brasil (RAMOS, 2023, p. 237-238). O sociólogo conclui a reflexão sobre esse ponto dizendo que os resultados do censo, ao considerar a porcentagem de brancos na população, seriam bem menores se “apenas se considerasse branca a pessoa não portadora de sangue preto. O branco puro em tais regiões é excepcional, enquanto o branco aparente é ali minoria” (RAMOS, 2023, p. 238).
Falamos que, para a época, esse debate fazia sentido. É necessário explicar o porquê. Ficando restrito apenas ao século XX, nas primeiras quatro décadas deste século, a eugenia, a ideia de uma superioridade biológica do branco cientificamente provada, não era uma ideia restrita à Alemanha Nazista. Era uma ideologia de alcance global que justificava o colonialismo em África, Ásia e outras regiões do mundo, tendo ampla aceitação interna na Europa Ocidental, América Latina, Estados Unidos e afins.
A noção de raça era apresentada como um elemento primariamente biológico-genético e dessa dimensão se derivam as diferenças sociais, culturais, comportamentais, de psicologia etc. Domenico Losurdo, em incontáveis obras, mostra como a eugenia era muito bem aceita dos dois lados do Oceano Atlântico e a produção de racismo científico dos Estados Unidos foi uma influência para o nazismo (e vários países do mundo). Um trecho para ilustrar alguns aspectos desse debate é o seguinte:
“O fato é que, muito antes do advento do Terceiro Reich, os Estados Unidos da white supremacy são um modelo para aqueles que almejam a adoção, também na Alemanha e no Império Austro-Húngaro, de uma política racial e eugênica. Passemos outra vez a palavra ao vice-cônsul de Chicago: ‘Em nenhum lugar se fala e se escreve tanto sobre raça e superioridade ou inferioridade racial quanto nos Estados Unidos’. Sim: ‘O sonho de Galton, para quem a higiene racial se tornaria a religião do futuro, começa a se tornar realidade na América. Ela conquista o ‘Novo Mundo’ em marcha triunfal; até agora, nenhuma doutrina pode se vangloriar de algo semelhante’. A difusão impetuosa da higiene racial tende a produzir resultados que vão muito além dos Estados Unidos. Estamos diante de um movimento de extraordinária importância, que tem como objetivo e está conseguindo ‘criar uma raça nova, ideal, capaz de dominar o mundo’. A Europa não deve ficar de fora: ‘as aspirações da América de enobrecer a raça são, em si e por si, dignas de serem imitadas’” (LOSURDO, 2020, p. 103)[1].
Na Segunda Guerra Mundial, entre seus grandes protagonistas, o único país que não defendia políticas de eugenia e, antes o contrário, as combatia e criminalizava, era a União Soviética. Mas em todos os demais protagonistas, sejam no âmbito interno, como Estados Unidos e Alemanha Nazista, ou externo, nas colônias, como França, Inglaterra e Japão, noções de superioridade racial biológicas gozavam de ampla legitimidade e circulação. Com a vitória da União Soviética sobre o nazismo e o novo mundo que emerge do pós-Segunda Guerra Mundial, as ideias de superioridade racial biológica são descartadas como de uma hora para outra.
Em 1940, defender que existem raças superiores e inferiores, povos que são geneticamente predestinados para dominar e outros para ser dominados, era algo normal. Em 1946, isso seria considerado uma aberração e sintoma de simpatias com o nazismo e o fascismo recém-derrotados. O caso brasileiro é sintomático. Grandes pensadores do país das décadas de 1910, 20, 30 e 40 defendiam teses de branqueamento da população e a superioridade biológica dos brancos. Na década de 1950, quando Guerreiro Ramos tinha participação ativa no debate público, essa ideologia simplesmente perdeu espaço.
Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, foi a principal liderança política de um regime que tinha várias ideias de branqueamento e eugenia. O Getúlio Vargas do pós-Segunda Guerra simplesmente não tocava mais no tema e sua grande obra organizativa, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático (PSD), fundados em 1945, não tinham nada no seu programa defendendo o racismo científico. Quando o sociólogo baiano escreve seu ensaio, portanto, ainda era confuso e pouco delineado como a ideia de raças sobreviveria ao descrédito geral da eugenia e do racismo científico – e para muitos também não era claro que raça, no Brasil, tendia a deslocar-se completamente do aspecto sanguíneo, isto é, a origem e ancestralidade do indivíduo, e focar-se no fenótipo e quantidade de melanina na pele.
Vale dizer também que nos Estados Unidos a noção de raça continuou conectada ao genótipo. Alguém, mesmo de pele branca, mas com pais ou avós negros, com cabelo não liso e com traços faciais remetendo a ancestrais negros, não será considerado branco nesse país. No Brasil, a dinâmica é diferente. Não importa a origem; importa, como elemento fundamental, a cor da pele. E claro que em 1955 – como é até os dias atuais –, os Estados Unidos eram tomados como padrão de análise de relações étnico-raciais.
Na continuidade do ensaio, o sociólogo cita vários exemplos de pensadores – jornalistas, escritores, sociólogos etc. – “mestiços” ou negros que recusavam com afetação serem indicados como não-brancos, e como buscam contribuir também com os estereótipos negativadores do ser negro. A intenção do autor é destacar como essa patologia social não atinge apenas os “não letrados”, sendo um fenômeno geral no Brasil. Depois dessa ampla digressão sobre os exemplos da patologia social do “branco”, retoma os aspectos de formulação teórica. Diz que “na atual fase de desenvolvimento econômico-social do Brasil, não existem mais suportes concretos que permitam à nossa minoria de ‘brancos’ sustentar suas atitudes arianizantes” (RAMOS, 2023, p. 245 – grifos nossos). Depois do trecho citado acima, o autor desenvolve o argumento dessa forma:
“De um lado, verifica-se que desaparecem, desde há muito, do país as situações estruturais que confinavam a massa pigmentada nos estratos inferiores da escala econômica; e, de outro, observar-se que a massa pigmentada, preponderante desde o início de nossa formação, absorveu, pela miscigenação e pela capilaridade social, grande parte do contigente branco, que, inicialmente, podia considerar-se isentos de sangue negro. O que, nos dias de hoje, resta de brancos puros em nosso meio é uma conta relativamente pequena. O Brasil é, pois, do ponto de vista étnico, um país de mestiços. Os fatos da realidade étnica no Brasil, eles mesmos, estão iluminando a consciência do mestiço brasileiro e o levam a perceber a artificialidade, em nosso meio, da ideologia da brancura. O ideal de brancura, tal como ilustramos anteriormente, nas condições atuais é uma sobrevivência que embaraça o processo de maturidade psicológica do brasileiro, e, além disso, contribui para enfraquecer a integração social dos elementos constitutivos da sociedade nacional” (RAMOS, 2023, p. 246 – grifos nossos).
Sumarizando os argumentos do autor: a) a população negra não está mais confinada a condição de classe trabalhadora, tendo pessoas negras em todos os estratos da sociedade; b) a miscigenação, a partir da dimensão sanguínea, reduziu o número de “brancos puros” no Brasil e isso combate os impactos de uma ideologia da brancura; c) o Brasil, na maioria do seu povo, é um país mestiço, logo, não faz sentido lógico-racional a idealização do branco como padrão por excelência de positividade; d) a ideologia da brancura é uma sobrevivência do passado e atrapalha a integração social da nação.
O ponto a), como falamos várias vezes, é uma afirmação nunca demonstrada ou provada. O autor, nesta temática, apresenta uma absoluta falta de rigor teórico e científico. É um artigo de fé. O ponto b), como vimos, é uma confusão aceitável para época. O ponto c) tem como pressuposto a não existência de estruturas de dominação que possibilitem uma minoria branca dominar uma maioria não-branca – ponto também não demonstrado e que tem como fundamento o argumento do ponto a. O argumento d) é uma novidade na forma tão aberta e direta de exposição. O nacionalista Guerreiro Ramos está preocupado com o racismo – ideologia da brancura – pelos seus efeitos na fragmentação do tecido nacional.
Justamente por tal preocupação, o autor segue o ensaio citando Adam Smith e sua teoria dos sentimentos morais quando aborda a necessidade da consciência da similitude como elemento integrador e coesionador de um grupo humano. O sociólogo dedica vários parágrafos para debater como falta no Brasil o sentimento de “semelhança física e de semelhança intelectual” do seu povo, enfraquecendo nossa capacidade de afirmação histórica e como esse problema é fruto da “formação colonial da sociedade brasileira” que tem “dificultado o desenvolvimento entre os brasileiros desse sentimento” (RAMOS, 2023, p. 248).
Em sequência, para provar essa falta de unidade nacional, de “consciência de similitude”, compara os “estudos sobre o negro”, como o I Congresso Afro-brasileiro de 1934 (organizado com protagonismo de Gilberto Freyre) com a propaganda nazista contra os judeus! Toda a página 249 e começo da 250 são dedicadas a enumerar essa semelhança. Contudo, depois dessa grave denúncia, comparando o debate brasileiro sobre o negro com a propaganda antissemita do nazismo, o autor encaminha as seguintes conclusões:
“É óbvio que o desaparecimento dos aspectos descritos da patologia social do ‘branco’ brasileiro não ocorrerá como consequência de mero trabalho de reeducação e esclarecimento. Esse trabalho, decerto, é necessário e, além disso, de efeitos positivos, nisso que suscetível de liberar muitas pessoas do que se chamou protesto racial. Mas são os fatos mesmo que, em última análise, propiciarão o desaparecimento daquela anormalidade de nossa psicologia coletiva. Esse problema envolve uma questão de articulação de gerações. É natural que os caracteres daquela patologia se mostrem mais vivos nas gerações mais velhas, que receberam, de gerações outras que alçancaram a plena vigência do regime escravo, uma definição pejorativa social do negro e do mulato. As gerações mais moças, entretanto, se mostram mais acessíveis a admitir os novos critérios de avaliação que os fatos estão impondo. A partir de certa idade – observa um estudioso de questões geracionais, François Mentré – o homem não muda, o indivíduo se torna estável e vive sobre o capital intelectual e moral que comanda sua atividade. Daí o caráter polêmico que o tema das relações de raça assume nos dias de hoje, entre nós. Ele reflete uma tensão entre gerações que elaboram os ingredientes de sua memória coletiva dentro de ‘quadros’ sociais diversos (…) Muitos brasileiros ainda vivos descendem de avós que possuíram escravos, enquanto outros não. Tais circunstâncias importam necessariamente na formação psicológica de cada um. A tradição da brancura que ainda sobrevive, entre nós, terá de ser ultrapassada por outra tradição, tradição a que estamos assistindo nascer e que representa novas condições objetivas da vida brasileira (…) Nos dias de hoje, a idealização da brancura, na sociedade brasileira, é sintoma de escassa integração social de seus elementos, é sintoma de que a consciência da espécie entre os que compõem mal chegou a instituir-se. Esse, porém, é um processo social normal que não poderá ser definitivamente obstaculizado. Apenas uma situação colonial temporária tem embaraçado esse processo (…) foi uma minoria de “brancos” letrados que criou esse ‘problema’, adotando critérios de trabalho intelectual não induzidos de suas circunstâncias naturais diretas” (RAMOS, 2023, p. 250-251).
Essa é a conclusão teórica central do ensaio de Guerreiro Ramos. Os fatos mesmos, por si só, vão resolver a questão das reminiscências do passado e da disfuncionalidade psicológica do povo brasileiro. Basta um avanço geracional, superando a memória de outros tempos e uma interpretação sociológica e antropológica correta, adotando critérios de trabalho intelectual induzidos da realidade brasileira, e pronto: o problema racial brasileiro está resolvido! O sociólogo vai mais longe e diz que essa posição de “autenticidade étnica” não se “inclina para legitimação de nenhum romantismo culturológico, de nenhum retorno às formas primitivas de convivência e de cultura” e, muito menos, “implica um processo de desestruturação, no caso, da desocidentalização da sociedade brasileira”, afinal, é perfeitamente possível avançar nesse processo “dentro das pautas nas quais tem transcorrido a evolução do país” (RAMOS, 2023, p. 252).
Agora podemos fazer uma reflexão sistemática sobre esse ensaio. Ele é o último “grande escrito” que Guerreiro dedica ao tema das relações raciais no Brasil. Depois dele, na coletânea Negro Sou, temos o texto de crítica a Gilberto Freyre (relacionado com a questão racial) e partes de outros livros incluídos na coletânea por escolha do seu organizador, Muryatan Barbosa, mas que não versam diretamente sobre o racismo no Brasil. A Patologia social do “branco” brasileiro é a palavra final do sociólogo baiano sobre a questão racial nas condições brasileiras. Nunca mais voltou ao tema para corrigir, rever ou aprofundar aspectos desse ensaio.
Ao contrário, quase 30 anos depois da publicação deste texto em análise, em entrevista para Alzira Alves de Abreu e Lucia Lippi Oliveira em 1981, Guerreiro disse: “o estudo sobre o negro… Eu sou o sujeito que disse a coisa mais lúcida sobre o negro. Você leu o que eu escrevi sobre o negro? Não? Então, você não conhece nada. Você precisa ler a última parte da Introdução, que é a coisa mais lúcida que há. Até então, a sociologia do negro no Brasil eram sujeitos que falavam no problema do negro no Brasil” e em outro momento da entrevista, o pensador diz “Mas você tem que ler a última parte da Introdução Crítica, Alzira, senão você não se salva. Essa parte sobre o negro brasileiro é muito importante” (OLIVEIRA, 1995, p. 171-172-173).
Esses trechos acima são parte do já clássico livro A sociologia do Guerreiro de Lucia Lippi Oliveira, publicado em 1995 pela editora da UFRJ. Ao final do livro, encontramos uma longa entrevista de Guerreiro Ramos dada poucos meses antes de morrer. Nessa entrevista, conseguimos saber o que o autor pensa do seu ensaio de 1955. O autor não faz afirmações sobre desatualizações ou erros. Ao contrário, diz que é “a coisa mais lúcida que há”. Na entrevista, quando fala de Introdução Crítica, refere-se ao seu livro Introdução crítica à sociologia brasileira. Esse livro foi publicado em 1957 e consta nele, na terceira parte, intitulada Documentos de uma Sociologia Militante, o Patologia social do “branco” brasileiro, O negro desde dentro e Política de relações de raças no Brasil. Como o livro foi publicado em 1957, Guerreiro Ramos teve quase dois anos para modificar as falhas e problemas do seu ensaio sobre a patologia do branco brasileiro antes de publicar em livro. Não o fez. Por quê? Antes de debater isso, vamos às falhas e erros.
Sendo repetitivo, é importante pontuar a total falta de rigor teórico e científico do autor na polêmica sobre a relação entre raça e classe no Brasil. O sociólogo baiano trata o tema com desleixo, argumentação precária, ausência de dados, sem historicidade e sem o mínimo de trato categorial. Guerreiro Ramos é quase sempre descrito como um pensador erudito, qualificado, refinado. Essas qualidades são verdadeiras, mas não para as palavras que escreveu sobre raça e classe no Brasil.
Nessa temática, o autor transita de uma vulgaridade para outra. Primeiro, bem ao gosto de um “marxismo” eurocêntrico, afirmava não existir problema racial no Brasil, apenas desigualdades de classes, dado a maioria dos negros compor “as classes de mais baixo nível econômico”. O autor falou isso em 1946, como mostramos no segundo escrito desta coluna. Pouquíssimos anos depois, menos de uma década, a coincidência entre raça e classe desapareceu. Agora transitamos de um economicismo tosco para uma abordagem sobre raça antimaterialista e que nega, porque sim, sem argumentos, uma fundamentação econômica da dominação racial nas condições brasileiras.
Poderíamos especular muito sobre a explicação para essa ausência absoluta de qualidade na reflexão. Porém, mais útil agora é pontuar seus efeitos. A partir dessa proposição guerreiriana, fica bloqueada qualquer crítica ao racismo a partir da crítica da economia política e das relações de produção vigentes no Brasil. Não existe, portanto, luta de classes combinada de alguma forma com a questão racial. Mas, para negar por completo toda abordagem marxista e radical sobre as relações raciais no Brasil, era necessário também eliminar toda formulação sobre dominação presente na negativação do negro. Como vimos no segundo escrito desta coluna, no texto Senhores e escravos no Brasil, de 1950, o autor falava de uma “estrutura de dominação do branco”.
Em 1955, a questão racial como um problema de apenas superestrutura não tem conexão com dominação. É apenas uma questão psicológica, cultural, de ethos, normas do passado ainda não superadas, mas em desencontro com as condições objetivas do país. Bastava esperar a objetividade se impor, explicar a verdade e superar o colonialismo cultural nos estudos das ciências sociais. Toda complexidade, riqueza de ideias e insight do autor vai sumindo para forjar uma explicação circular, esquemática e pobre.
Perceba que nenhum dos aspectos do ensaio O problema do negro na sociologia brasileira ganhou maiores desenvolvimentos em textos posteriores. O que o sociólogo fez foi pegar algumas ideias já contidas nesse escrito e em outros, empacotar e formalizar no conceito de patologia social, buscar explicar a persistência desta patologia extemporânea às condições brasileiras e só. Ao mesmo tempo, ao contrário de O problema…, que mesmo que confusamente tinha uma orientação de ação antirracista, o escrito em análise tem como grande conclusão a tese de que não podemos e nem devemos fazer ação política contra o racismo.
Vale lembrar uma reflexão importante. O grande historiador Joel Rufino dos Santos, na reimpressão do Introdução Crítica à Sociologia Brasileira, publicado pela Editora da UFRJ em 1995, escreve um texto intitulado O negro como lugar. Nesse escrito, além de uma visão panorâmica sobre a obra do pensador baiano e sua época histórica, Rufino busca teorizar sobre qual foi a grande contribuição de Guerreiro para pensar as relações etnico-raciais no país. Para Rufino, essa contribuição foi descobrir que “o negro ele próprio é um lugar de onde descrever o Brasil” e diz em conclusão que “penso ser essa ideia – o negro como lugar – a mais original contribuição de Guerreiro Ramos à compreensão do dilema nacional” (RUFINO, 1995, p. 28). Rufino, portanto, refere-se fundamentalmente ao ensaio O problema do negro na sociedade brasileira.
Em verdade, bem ao gosto das modas acadêmicas atuais, o ensaio de Guerreiro Ramos não tem nada de novo na substância, mas anuncia com pompa e circunstâncias a formalização de um novo conceito. Se, como escrevi no texto anterior da coluna, o “otimismo” com o desenvolvimento econômico do Brasil era compreensível, na formalização do seu conceito, Guerreiro Ramos cria um Brasil Negro imaginário, fantástico e fantasioso onde a população negra não estava mais essencialmente confinada às classes trabalhadoras (especialmente os setores mais explorados) e sujeita à formas particulares de dominação política, jurídica e ideológica. É irônico pensar que três anos depois do lançamento do livro Introdução Crítica à sociologia brasileira, Carolina Maria de Jesus publica o seu hoje célebre Quarto de Despejo: diário de uma favelada (usamos a edição da Editora Ática). Diz a escritora em uma passagem:
“Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. E o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos […] Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair.[…] Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 2014, p.30-32)
Esse trecho descreve a vida típica de uma trabalhadora negra excluída de um emprego industrial estável e instrução formal significativa. O caráter típico dessa descrição pode ser constatado conferindo os dados do censo do IBGE de 1950. Como aponta Lélia González, trabalhando os dados do censo, a maioria das mulheres negras atingia no máximo o segundo ano primário ou fundamental, sendo dominante o analfabetismo; 10% estava na agricultura e/ou indústria (com predominância da indústria têxtil) e 90% estavam concentradas no setor de serviços pessoais (empregadas domésticas, lavadeiras, babás, cozinheiras etc.)[2]. Vale lembrar que em 1950, ano do censo, ou 1955, ano do lançamento do escrito em análise, empregadas domésticas não estavam incluídas na CLT. Trata-se de uma realidade que não comparecia nos textos de Guerreiro Ramos. Neste momento, é preciso sair um pouco da textualidade do sociólogo baiano e abordar uma polêmica contemporânea.
É moda em certos ciclos da esquerda brasileira usar a palavra “identitarismo”. Existe um longo debate sobre o significado dessa palavra. No geral, quando não usada com objetivos abertamente racistas, a palavra tende a ser tomada como sinônimo de correntes liberais ou reacionárias da “luta” antirracista que resumem sua ação política na dimensão de afirmação da identidade e em demandas parciais por políticas públicas – “inclusão” – frente o Estado burguês e o mercado privado.
Ainda neste debate desqualificado e impreciso, normalmente o “identitarismo” é debitado de uma ação planejada do imperialismo estadunidense para exportar sua agenda política de “hiper fragmentação” e “guerra cultural”, enquadrando o debate brasileiro sobre a questão racial nos termos estadunidenses. A consequência dessa ação do imperialismo, especialmente via ONGs, alvo principal das denúncias dos “anti-identitários” é, na visão desses “críticos”, secundarizar ou apagar a luta de classes e o debate de classe nos “movimentos identitários”; acabar com toda reflexão sobre economia política e produção da riqueza; reduzir o racismo a uma dimensão cultural, subjetividade e de identidade; inocentar o capitalismo pelo racismo, colocando a responsabilidade em ecos não superados da escravidão colonial; e, por fim, ter como centro de ação a noção de representatividade, buscando espaços no Estado burguês e no mercado capitalista e não sua transformação estrutural ou superação.
Um dos mais histéricos e histriônicos “críticos” do “identitarismo” é o acadêmico Nildo Ouriques. Embora nunca tenha escrito nada sobre o tema – o professor da UFSC tem o hábito de xingar tudo e todos, mas parece incapaz de defender suas ideias e teses no papel! –, Ouriques está sempre nas redes sociais praguejando contra “o identitarismo” e o culpando por boa parte dos males da esquerda brasileira. Ao mesmo tempo, o acadêmico é um constante divulgador da obra de Alberto Guerreiro Ramos, afirmando – também, é claro, sem nunca escrever algo de fôlego para sustentar esta proclama – que o baiano foi o maior sociólogo do nosso país.
Pois bem, além do visceral antimarxismo de Guerreiro Ramos – na já citada entrevista de 1981, ele diz que acha “ que o marxismo é a maior desgraça na história do pensamento brasileiro” (OLIVEIRA, 1995, p. 168) –, vários elementos do que hoje é chamado de forma imprecisa de “identitarismo” estão presentes na obra de Guerreiro Ramos. Aliás, como suprema ironia, enquanto lutadores contra o identitarismo como Nildo Ouriques atacam dia sim e dia não Abdias do Nascimento, esquecem que quando o tema é a questão racial no Brasil, há mais convergências que divergências entre Guerreiro Ramos e Abdias.
Mas Guerreiro Ramos, ao contrário de várias figuras do debate contemporâneo, não pode ser acusado de alguém pautado pelo debate estadunidense. Ao contrário, o nosso sociólogo foi o maior defensor de uma sociologia brasileira, fincada na realidade nacional, radicalmente contra o transplante de ideias, conceitos e problemas dos países centrais do imperialismo. E mesmo assim, o pensador nacionalista chega a várias conclusões símiles de organizações e pensadores liberais/garveístas do movimento negro brasileiro e estadunidense – quem quiser um debate sério e qualificado sobre o chamado identitarismo, pode conferir o livro de Asad Haider, Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje (Editora Veneta, 2019).
A razão para essa similitude de conclusão podemos encontrar, como apontamos desde o problema escrito dessa série, no horizonte de classe do sociólogo baiano. Pensando desde uma mirada de classe média, o autor queria a máxima união nacional para o objetivo do desenvolvimento. Quando passa quase todo ensaio dando juras de intenções “generosas e pacifistas”, sem nenhum intento “agressivo”, o autor busca encontrar uma maneira de afirmar o negro como povo, como nação, parte da construção nacional, sem precisar destruir ou reconstruir radicalmente nada.
Um Negro-Brasil totalmente afastado de uma crítica da economia política e do sistema de dominação no enfrentamento ao racismo. O bloqueio de uma política antirracista proletária, conectado a partir das mediações necessárias à emancipação das classes assalariadas e à destruição da dominação racial. Uma política antirracista no e a partir do desenvolvimento capitalista, guardada toda diversidade de linguagem política, fontes teóricas, táticas e formas organizativas, tende sempre a evitar chegar em um lugar perigoso: a crítica da economia política e a estratégia revolucionária!
Para fugir desse lugar perigoso, Guerreiro se refugia no lugar da nação. Edison Bariani Junior, no seu já citado Guerreiro Ramos e a redenção sociológica (Editora Unesp, 2011), diz que “a conquista da reivindicação do negro como povo (brasileiro) não o elevava à condição de igual e o mito da comunidade nacional exibia suas fissuras e contradições não só no terreno dos interesses antagônicos da estrutura de classes, mas a cor continuava a ser um estigma dentro das próprias classes sociais” (BARIANI, 2011, p. 121).
É uma conclusão lógica do projeto político de Guerreiro Ramos chegar a uma teoria da “patologia social”. Oras, é uma patologia, um problema geral, de todos, da nação. Sim, afeta alguns indivíduos em particular, mas não deixa de ser um problema de todos, um corpo estranho no ser nacional que pretende ser saudável (desenvolvido). Não se trata de dominação, exploração, algo funcional para reprodução da estrutura de classes ou quaisquer outras conclusões que teriam como consequência necessária destruir aquele tecido nacional para construir outro. A recusa não argumentada e desqualificada da relação entre raça e classe também tem sentido lógico nesta estrutura de projeto político.
Guerreiro, em O problema nacional do Brasil (Editora Saga, 1960), faz uma tipologia do nacionalismo. Um dos tipos de nacionalismo que identifica é o nacionalismo de cátedra e assim descreve as características da classe que o expressa por excelência: “grosso modo, a pequena burguesia está condenada, pela sua situação que vive, a não ter posições firmes (…) os professores e intelectuais, elementos tipicamente pequeno burgueses, não escapam a essa psicologia. Mas, além disso, incorrem habitualmente numa visão predominantemente intelectualista dos acontecimentos, que os leva a acreditar de modo exagerado na eficácia das palavras. Tendem, por isso, nos momentos em que são incertos os resultados das decisões, a adotar processos conciliatórios ou a substituir por soluções verbais as verdadeiras soluções de natureza objetiva e prática” (RAMOS, 1960, p. 251 – grifos nossos). A análise do grande sociólogo sobre a questão racial no Brasil é um antirracismo de cátedra!
Adiantando reflexões do próximo escrito desta coluna, assevero que quem deseja retomar a obra do sociólogo nacionalista hoje deve agarrar o fio interrompido de O problema do negro na sociologia brasileira e desenvolver toda a potencialidade contida naquele ensaio e não reconhecida pelo próprio autor. Antes de concluir a crítica, é necessário tocar em um ponto.
O pensador do ISEB foi atacado em vários momentos da sua vida como “racista”, “preto racista”, “racista contra brancos” e reduzido à condição de mulato e negro, negando-se assim suas capacidades como sociólogo e pensador. Guerreiro cita irritado, na entrevista de 1981, como o inquérito da ditadura empresarial-militar o classificava de “mulato metido a sociólogo”. É possível alguém argumentar que a forma de exposição das ideias de Guerreiro Ramos no debate sobre as relações raciais no Brasil era uma tática de autoproteção, uma contenção de forma e conteúdo para evitar mais ataques deste tipo. É uma interpretação possível. Acho bastante lícito especular o quanto da formulação teórica do autor é uma resposta – consciente ou não – a uma pressão permanente para reduzi-lo à condição de negro em chave racista: portanto, um não-pensador, um não-sociólogo, um adversário da unidade nacional que queria “revanche” ou um “racismo contra brancos” etc.
Ao mesmo tempo, esse tipo de especulação chama-nos a uma reflexão interessante. Guerreiro Ramos passou boa parte da sua vida brigando. Brigou com Carlos Lacerda, com o PCB, com setores do trabalhismo, com seus antigos companheiros de ISEB, com Gilberto Freyre, com a sociologia paulista, com Florestan Fernandes, com os liberais e uma infinidade de outros adversários. Reclamou muito dos prejuízos pessoais e perseguições que supostamente sofria. O prefácio de Mito e verdade da revolução brasileira é praticamente um rosário de denúncias e reclamações sobre os supostos ataques que sofria dos comunistas do PCB.
Se o pensador baiano conseguia enfrentar tudo isso, é curioso imaginar que os efeitos do racismo modularam conscientemente ou não sua produção teórica sobre a questão racial para fugir do estigma de “preto racista”. Se essa especulação tiver um traço de verdade, podemos dizer que a vida de Guerreiro Ramos desmente a teoria de Guerreiro Ramos. Chegaríamos à conclusão de que o racismo, longe de ser apenas uma reminiscência não superada de épocas passadas, disfuncionalidade psicológica e efeito de transplantação teórico-metodológica, era um complexo social estruturante e poderoso no enquadramento coletivo e individual, ao ponto de constranger e impor autocensura a um dos sociólogos mais importantes e prestigiados do Brasil até o golpe empresarial-militar de 1964.
Guerreiro Ramos contra Gilberto Freyre
O último escrito relevante da coletânea Negro Sou é, como falamos, a crítica a Gilberto Freyre. O texto chama-se Gilberto Freyre ou a obsolência, de 1956. Guerreiro Ramos começa seu ensaio afirmando que a publicação de Casa-Grande & Senzala tornou Freyre um pensador aclamado e elogiado e o nosso “mais festejado sociólogo oficial” (RAMOS, 2023, p. 263). Passando a exposição de toda fama e prestígio do sociólogo pernambucano, começa uma explicação dos porquês desta aclamação.
O sociólogo nacionalista começa sua análise a partir da origem de classe de Freyre. O pernambucano veio de uma família abastada e teve condições de bacharelar-se e fazer vários cursos nos Estados Unidos e viajar por vários países da Europa. Essa possibilidade permitiu ao autor “um conhecimento direto das correntes de pensamento, no domínio da literatura e das ciências sociais, que, nos anos de sua juventude e maturidade, poucos dos seus patrícios poderiam obter” (RAMOS, 2023, p. 264).
Sem negar as qualidades intelectuais de Freyre, Guerreiro Ramos destaca que os recursos financeiros da família Freyre possibilitaram-no adquirir uma “bagagem de conhecimento” que superava de “modo geral” os seus “companheiros de geração” (RAMOS, 2023, p. 264). Dotado desses conhecimentos assimilados na Europa e EUA, o pernambucano lança Casa Grande & Senzala, que pela “primeira vez estudava uma época histórica do Brasil (a época colonial) à luz de categorias sociológicas e antropológicas pouco versadas ou inteiramente ignoradas em nosso meio. Acrescente-se ainda que aquela obra, além de abundante erudição que exibia, era escrita num estilo vivo e agradável, que a tornava ao alcance do leitor comum” (RAMOS, 2023, p. 265).
Na sequência desta avaliação da grande obra de Freyre, o sociólogo baiano afirma que este teve mais sucesso social que méritos científicos, dado que no período de publicação do aclamado livro o Brasil não tinha ainda uma crítica científica consolidada. Tal crítica científica, desenvolvida posteriormente, considera, segundo Guerreiro Ramos, a obra freyreana com “reticências e restrições” e “só os literatos o consideram sociólogo; os sociólogos o consideram literato” (RAMOS, 2023, p. 265). Ao mesmo tempo, contudo, o sociólogo baiano afirma que existe sim um mérito científico na obra do mais festejado sociólogo oficial. Diz:“Gilberto Freyre que, vulgarizando os antropólogos norte-americanos e ingleses, principalmente Franz Boas […], desfez um equívoco muito comum entre os estudiosos da formação no Brasil – o equívoco que consistia na identificação da raça com a cultura. Nesse ponto, sua obra teve um caráter libertador, nisto que contribui para eliminar o complexo de inferioridade das chamadas elites de nosso país que, de modo geral, consideravam oprobriosa a preponderância do elemento negro na formação do novo povo” (RAMOS, 2023, p. 265-266).
Feitas essas considerações, começa uma crítica sistemática. Aponta dois problemas centrais na obra freyreana: o impressionismo e o esteticismo (RAMOS, 2023, p. 266). Falando do primeiro aspecto, Guerreiro Ramos pontua como o pensador pernambucano foi incapaz de formular um sistema explicativo e olhar o Brasil como “fato social total”, pontuando também seu gosto pelo bizarro, pitoresco, por anedotas e conclusões apressadas. Para o período do Brasil colonial, Guerreiro afirma, por exemplo, que Freyre “jamais conseguiu ver o que é essencial na formação da sociedade brasileira. Sem dúvida, o que é básico para explicá-la é verificar que sobretudo na época colonial ela é condicionada por fatores exógenos” (RAMOS, 2023, p. 267).
O sociólogo nacionalista indica como a incapacidade de pensar o Brasil como totalidade não era apenas um erro de análise histórica na obra freyreana, mas se refletia também nas considerações do pernambucano sobre o Brasil de 1956. Freyre – segundo Guerreiro Ramos – condenava a “industrialização do Brasil, como um processo mórbido. Não compreende que essa industrialização é o modo histórico necessário pela qual o nosso país se ajusta às condições atuais do mundo” (RAMOS, 2023, p. 269).
Em sequência, Guerreiro Ramos passa a criticar o esteticismo na obra freyreana. Diz que o pernambucano pensava o Brasil em termos “estáticos” e procurando constâncias nas relações sociais. A partir deste prisma, pensa o negro, por exemplo, como um “um tema curioso”, “material etnográfico. Não é sujeito: é objeto” (RAMOS, 2023, p. 269). Cita como outro exemplo do esteticismo o elogio dos mucambos pernambucanos, “tipos miseráveis de morada da população pobre do Recife (Pernambuco) construídos sobre terrenos pantanosos” (RAMOS, 2023, p. 269).
Ainda no âmbito da crítica ao esteticismo, mas já abordando a questão da lusotropicologia freyreana, Guerreiro Ramos destaca como o pensador pernambucano olhava a colonização não como reflexo de condições históricas e econômico-sociais, mas sim das “qualidades de temperamento ou do caráter deste ou daquele povo colonizador” e praticava, objetivamente, uma “espécie de apologia do colonizador português” (RAMOS, 2023, p. 270). Essa apologia da colonização portuguesa reflete-se não apenas para a história passada do Brasil, como, na época, para voltar-se contra as iniciativas de libertação nacional de países africanos colonizados por Portugal. Gilberto Freyre desenvolve uma apologia oficialista – camuflada de teoria – do fascismo salazarista e do colonialismo português.
Por fim, após uma dura crítica à ideologia da lusotropicologia, Guerreiro Ramos termina sua avaliação da obra freyreana com palavras firmes. Vale fazer uma longa citação para captar toda essência da crítica:
“Ele [Gilberto Freyre] encarna no Brasil de hoje o tipo de pseudo-cientista, do intelectual domesticado por ideologias camufladas de ciência, como a antropologia cultural, que nos chegam aqui com o timbre de universidades europeias e norte-americanas. Brasileiro de nascimento, seu ideal é o lusitanismo: o progresso de seu país lhe parece manifestação mórbida, um desvio de sua vocação lusa. Expatriou-se, portanto, dentro do seu próprio país. No Brasil, vive um estreito círculo de intelectuais ociosos. Chama-se a si mesmo o solitário de Apipucos, nome de um subúrbio da cidade do Recife onde reside, entregue aos devaneios impressionantes e sonhando com a salvação do Brasil pela lusitanização” (RAMOS, 2023, p. 272-73).
Guerreiro Ramos foi esquecido. Embora estejamos vivendo um momento de redescobrir a obra do grande sociólogo baiano, ele não é um autor hegemônico ou retratado como um clássico nas ciências sociais brasileiras. Gilberto Freyre segue como o nosso mais prestigiado sociólogo oficial. Com todos os problemas e limites que devemos criticar sem meias palavras na sociologia nacionalista do pensador baiano, falamos de um pensador/ator político comprometido com a soberania nacional, a superação da dependência e do subdesenolvimento, com a elevação material e cultural do povo trabalhador brasileiro e a afirmação do Brasil na geopolítica do mundo imperialista.
Gilberto Freyre, ao contrário, um pena amestrada da classe dominante, dedicou sua vida e sua ação política a manter o Brasil como é: uma máquina gigantesca de produzir riquezas para poucos (internamente e para fora), destruir a vida e os sonhos das maiorias e apresentar as nossas misérias e lutas pela sobrevivência como um belo, idílico e doce traço cultural e da nossa personalidade nacional. O pernambuco apoiou o golpe empresarial-militar de 1964, o fascismo salazarista e foi contra a descolonização afro-asiática e, a despeito de tudo isso, segue celebrado e aclamado.
Como sabemos, o projeto nacionalista e popular defendido por Guerreiro Ramos foi derrotado em 1964. Essa derrota delineia, também, os marcos de compreensão da história das ciências sociais brasileiras. O pernambucano que adocicava o período da escravidão, o atraso e a miséria brasileira virou um dos pais da teoria social do Brasil. O baiano que queria um país soberano com autodeterminação econômica, cultural e política para o povo brasileiro sumiu nas esquinas da história. Esse confronto de 1956 segue atual. No próximo escrito desta coluna, concluiremos com uma reflexão sobre o atual e o anacrônico na obra de Guerreiro Ramos. Até a próxima!