Habitamos feudos digitais? – Morozov e a crítica do tecnofeudalismo
Tese do tecnofeudalismo ignora dimensão geopolítica das disputas das Big Techs, mais mistificando do que elucidando nossos impasses atuais
Em um texto de 2022 publicado pela New Left Review, Evgeny Morozov apresenta sua crítica ao que chama de “Razão Tecnofeudal”, argumentando que a popularidade atual de termos como neofeudalismo ou tecnofeudalismo, apesar de responderem a um déficit político e comunicacional nas esquerdas apelando a certo imaginário e potencial memético, atestam na verdade certa fragilidade intelectual da esquerda, na medida em que suas ferramentas teóricas não parecem capazes de produzir mobilização sem utilizarem-se de uma linguagem moral sobre corrupção e perversão (do mercado, do Estado, das relações entre público e privado, etc).
Propondo uma mudança na máxima de Fredric Jameson – “é mais fácil imaginar o fim do mundo, do que o fim do capitalismo” (frequentemente também creditada a Mark Fisher) –, Morozov sugere que, para o enquadramento tecnofeudal, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo. Elaborando sobre as concepções de feudalismo em disputa, ele propõe uma dicotomia entre teorias marxistas e não-marxistas (frequentemente liberais) do feudalismo como diferença entre, respectivamente, definições que partem ou de sua lógica econômica, ou de sua dinâmica sócio-política.

O dono do X, Tesla e SpaceX e conselheiro-sênior da Casa Branca, Elon Musk, durante encontro do presidente dos EUA, Donald Trump, com seu gabinete.
(Foto: The White House / Flickr)
Para simplificarmos, podemos dizer que sua dicotomia organiza-se da seguinte maneira: em uma compreensão marxista, a ênfase econômica desde os meios de produção demonstra que estes pertenciam aos camponeses, porém a apropriação de seu excedente produtivo, enquanto vassalos, era feita por meios extra-econômicos (dominação, por coerção e violência, diretas); enquanto, visto pelo prisma sócio-político, o feudalismo revela-se um sistema onde o poder privado (por legitimações e justificativas religiosas e culturais) governava supremo e indomável, sendo assim frequentemente contrastado não com o capitalismo, mas com o Estado burguês, coisa pública conferindo regulamentação, seguridade e imposição das leis. Assim, para marxistas, o sujeito feudal opõe-se ao sujeito proletário enquanto, para não-marxistas, opõe-se ao sujeito universal de direitos, o citoyen do Estado moderno burguês.
Morozov, ao apontar precursores da razão tecnofeudal, vai até a notória obra de Jurgen Habermas, A Transformação da Esfera Pública (1962) onde, para nomear o processo em que configurações pré-modernas re-emergem, com as estruturas privadas de poder que passam a tomar o complexo publicitário e a indústria cultural, encontra-se o termo refeudalização da esfera pública – indicando assim a “dinâmica em zigue-zague da modernidade.”
Em nosso século, alguns autores recuperaram o termo, como é o caso de Sighard Neckel, para quem o desenvolvimento do neoliberalismo resgatou formas sociais pré-modernas (vide pauperização do trabalho e novas oligarquias), levando à emergência de um “capitalismo moderno sem estruturas burguesas”, uma “pré-condição cultural para sua marcha triunfante” contemporânea. A modernidade neoliberal seria então paradoxal, o que faz Neckel juntar-se a outros sociólogos alemães questionando concepções teleológicas da modernização. Já Alain Supiot, teórico francês do direito, apresenta a refeudalização movida por duas forças: neoliberalização e digitalização – afirmando que os “conceitos jurídicos do feudalismo fornecem excelentes ferramentas para analisar as mudanças institucionais que ocorrem sob a noção acrítica de ‘globalização’.” Assim, o neoliberalismo seria um processo de submissão do Estado à utilidade e maximização de desempenho, tomando o espaço (do Estado burguês “original”) antes fora dos limites de contratos privados.
Morozov menciona então o imbróglio marxista da década de 1950 sobre a passagem do feudalismo para o capitalismo, passando depois por considerações sobre Brenner, Wallerstein e Harvey – onde a definição de acumulação primitiva entra em disputa, com os dois primeiros, e posteriormente a relação entre exploração e expropriação que torna-se improdutivamente relativizada – até, enfim, as multitudes do ‘capitalismo-cognitivo’ de teóricos franceses e italianos, inspirados pelo operaísmo de Negri e adjacentes. Para o autor, há uma semelhança entre estes últimos e os teóricos do tecnofeudalismo na medida em que compartilham a pressuposição de que “algo na natureza da informação e das redes de dados leva a economia digital na direção da lógica feudal de rentismo e expropriação, ao invés da lógica capitalista de lucro e exploração” – algo que parece passar pelas relações de poder peculiares instituídas pela digitalização, além da crescente disputa por direitos de propriedade intelectual.
Sem poupar críticas, Morozov demonstra como tanto o eixo “cognitivista” de interpretação do capitalismo quanto a hipótese tecnofeudal falham em compreender a dinâmica contemporânea do capital, assim como acontece com o “capitalismo de vigilância” teorizado por Shoshana: se os italianos precisam de conceitos improvisados, como o de “trabalho digital gratuito” [free digital labour] para explicar “como empresas não-rentistas e com pouca mão de obra conseguem lucros capitalistas atraindo mais-valor produzido em outros lugares”, Zuboff parece não compreender que a principal força motriz dos lucros exorbitantes das Bigtechs não se resume à “experiência humana congelada em dados” expropriados por aparelhos digitais.
Com influências em D. Harvey e sua teoria da ‘acumulação por espoliação’, Zuboff parece concentrar-se exageradamente na dimensão extrativista de dados do capitalismo digital, encontrando o extrativismo em todos os lugares, de tal maneira que a dimensão não-extrativista própria ao capitalismo torna-se normalizada. Morozov emprega o termo “usuarismo” [user-ism] para nomear a posição de Zuboff, preocupada apenas com a relação consumidor-usuário e plataformas digitais, que parecem não estabelecer nada além de uma vigilância extrativista com o mesmo, mas o que é próprio do capitalismo (lucro e exploração, por exemplo) é perdido de vista.
Realmente parece existir uma dificuldade em compreender tanto a digitalização da economia quanto a economia da digitalização. Ao insistirem em encontrar no processo de digitalização contemporâneo algo análogo à renda (não da terra, mas do espaço digital e de estruturas abstratas protegidas por patentes), à espoliação (de dados), à relações pré-modernas com estruturas de poder privadas controlando o espaço (digital) “público”, parecem ignorar como as dinâmicas do capital dão forma à própria digitalização. Relembrando o volume 3 do Capital, Morozov argumenta que Marx já vislumbrava empresas capitalistas completamente automatizadas, capazes de se apropriar do mais-valor derivado de outro lugar – outra linha de produção – não como renda, mas enquanto lucro.
Todo o debate sobre desinvestimento em produção, rentismo, capital improdutivo, financeirização, é incompleto ou equivocado quando se ignora que já em Marx também encontram-se as projeções de submissão do capital industrial pelo capital de financiamento, com sua dimensão fictícia e seu potencial especulativo, assim como a socialização do capital – o capital social de empresas – como superação do capital privado dentro dos limites do próprio capitalismo, como Eleutério Prado relembra.
Se é o caso de ainda estarmos vivendo sob o capitalismo, com suas especificidades contemporâneas, desdobrado sob a primazia do capital de financiamento sobre o capital industrial, isso implica que é o primeiro que dá as coordenadas para o processo de digitalização “realmente existente”. Por mais que as Big Techs sejam anunciadas como feudos digitais, o efeito ainda recente da IA chinesa DeepSeek em Wall Street evidenciou como a economia e capital digital encontram-se conectadas pelo capital fictício e pela especulação – existem mais coisas entre D-M-D’ (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) e D-D’ (Dinheiro-Dinheiro) do que supõe o pensamento tecnofeudal.
Além disso, o caso compõe também uma disputa e tensionamento geopolítico de mercado (mas não só), que aponta para outra lacuna no enquadramento teórico do neo/tecnofeudalismo, assim como ocorre com o capitalismo cognitivo ou de vigilância: a função e o papel do Estado. Com disputas políticas ou econômicas e ameaças à hegemonia tecnológica do capital digital, testemunhamos os gigantes das Big Techs estadunidenses alinhando-se com as políticas de Donald Trump e participando diretamente do governo de Estado. Além disso, como nos lembra Morozov, o Estado dos EUA teve importância subnotificada na emergência do Vale do Silício como hegemonia tecno-econômica global – o que, por sua vez, remete à conexão íntima entre economia política da digitalização e economia política da guerra.[1]
A digitalização coloca em questão uma nova e acelerada dinâmica onde superação tecnológica em processamento, por exemplo com o caso de computadores quânticos, pode tornar-se uma crise diplomática global, na medida em que colocaria a segurança digital de empresas e Estados inteiros em cheque. O enredo de tecno-lordes em uma distopia sci-fi feudalizada exclui de cena a geopolítica, palco fundamental que informa as próprias disputas no campo econômico da digitalização, na medida em que subestima o papel dos Estados (e da guerra) para as condições de possibilidade do processo de digitalização. Esses problemas não são pouco relevantes. Deveríamos nos questionar em que medida é politicamente útil e teoricamente coerente deslocarmos o enquadramento para uma concepção que parece mais mistificar do que elucidar os impasses atuais.
(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos — sendo o mais recente uma Introdução a Lacan pelo estruturalismo e a teoria social.