Em um texto de 2022 publicado pela New Left Review, Evgeny Morozov apresenta sua crítica ao que chama de “Razão Tecnofeudal”, argumentando que a popularidade atual de termos como neofeudalismo ou tecnofeudalismo, apesar de responderem a um déficit político e comunicacional nas esquerdas apelando a certo imaginário e potencial memético, atestam na verdade certa fragilidade intelectual da esquerda, na medida em que suas ferramentas teóricas não parecem capazes de produzir mobilização sem utilizarem-se de uma linguagem moral sobre corrupção e perversão (do mercado, do Estado, das relações entre público e privado, etc).
Propondo uma mudança na máxima de Fredric Jameson – “é mais fácil imaginar o fim do mundo, do que o fim do capitalismo” (frequentemente também creditada a Mark Fisher) –, Morozov sugere que, para o enquadramento tecnofeudal, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo. Elaborando sobre as concepções de feudalismo em disputa, ele propõe uma dicotomia entre teorias marxistas e não-marxistas (frequentemente liberais) do feudalismo como diferença entre, respectivamente, definições que partem ou de sua lógica econômica, ou de sua dinâmica sócio-política.

(Foto: The White House / Flickr)
Para simplificarmos, podemos dizer que sua dicotomia organiza-se da seguinte maneira: em uma compreensão marxista, a ênfase econômica desde os meios de produção demonstra que estes pertenciam aos camponeses, porém a apropriação de seu excedente produtivo, enquanto vassalos, era feita por meios extra-econômicos (dominação, por coerção e violência, diretas); enquanto, visto pelo prisma sócio-político, o feudalismo revela-se um sistema onde o poder privado (por legitimações e justificativas religiosas e culturais) governava supremo e indomável, sendo assim frequentemente contrastado não com o capitalismo, mas com o Estado burguês, coisa pública conferindo regulamentação, seguridade e imposição das leis. Assim, para marxistas, o sujeito feudal opõe-se ao sujeito proletário enquanto, para não-marxistas, opõe-se ao sujeito universal de direitos, o citoyen do Estado moderno burguês.
Morozov, ao apontar precursores da razão tecnofeudal, vai até a notória obra de Jurgen Habermas, A Transformação da Esfera Pública (1962) onde, para nomear o processo em que configurações pré-modernas re-emergem, com as estruturas privadas de poder que passam a tomar o complexo publicitário e a indústria cultural, encontra-se o termo refeudalização da esfera pública – indicando assim a “dinâmica em zigue-zague da modernidade.”
Em nosso século, alguns autores recuperaram o termo, como é o caso de Sighard Neckel, para quem o desenvolvimento do neoliberalismo resgatou formas sociais pré-modernas (vide pauperização do trabalho e novas oligarquias), levando à emergência de um “capitalismo moderno sem estruturas burguesas”, uma “pré-condição cultural para sua marcha triunfante” contemporânea. A modernidade neoliberal seria então paradoxal, o que faz Neckel juntar-se a outros sociólogos alemães questionando concepções teleológicas da modernização. Já Alain Supiot, teórico francês do direito, apresenta a refeudalização movida por duas forças: neoliberalização e digitalização – afirmando que os “conceitos jurídicos do feudalismo fornecem excelentes ferramentas para analisar as mudanças institucionais que ocorrem sob a noção acrítica de ‘globalização’.” Assim, o neoliberalismo seria um processo de submissão do Estado à utilidade e maximização de desempenho, tomando o espaço (do Estado burguês “original”) antes fora dos limites de contratos privados.
Morozov menciona então o imbróglio marxista da década de 1950 sobre a passagem do feudalismo para o capitalismo, passando depois por considerações sobre Brenner, Wallerstein e Harvey – onde a definição de acumulação primitiva entra em disputa, com os dois primeiros, e posteriormente a relação entre exploração e expropriação que torna-se improdutivamente relativizada – até, enfim, as multitudes do ‘capitalismo-cognitivo’ de teóricos franceses e italianos, inspirados pelo operaísmo de Negri e adjacentes. Para o autor, há uma semelhança entre estes últimos e os teóricos do tecnofeudalismo na medida em que compartilham a pressuposição de que “algo na natureza da informação e das redes de dados leva a economia digital na direção da lógica feudal de rentismo e expropriação, ao invés da lógica capitalista de lucro e exploração” – algo que parece passar pelas relações de poder peculiares instituídas pela digitalização, além da crescente disputa por direitos de propriedade intelectual.
Sem poupar críticas, Morozov demonstra como tanto o eixo “cognitivista” de interpretação do capitalismo quanto a hipótese tecnofeudal falham em compreender a dinâmica contemporânea do capital, assim como acontece com o “capitalismo de vigilância” teorizado por Shoshana: se os italianos precisam de conceitos improvisados, como o de “trabalho digital gratuito” [free digital labour] para explicar “como empresas não-rentistas e com pouca mão de obra conseguem lucros capitalistas atraindo mais-valor produzido em outros lugares”, Zuboff parece não compreender que a principal força motriz dos lucros exorbitantes das Bigtechs não se resume à “experiência humana congelada em dados” expropriados por aparelhos digitais.
Com influências em D. Harvey e sua teoria da ‘acumulação por espoliação’, Zuboff parece concentrar-se exageradamente na dimensão extrativista de dados do capitalismo digital, encontrando o extrativismo em todos os lugares, de tal maneira que a dimensão não-extrativista própria ao capitalismo torna-se normalizada. Morozov emprega o termo “usuarismo” [user-ism] para nomear a posição de Zuboff, preocupada apenas com a relação consumidor-usuário e plataformas digitais, que parecem não estabelecer nada além de uma vigilância extrativista com o mesmo, mas o que é próprio do capitalismo (lucro e exploração, por exemplo) é perdido de vista.
Realmente parece existir uma dificuldade em compreender tanto a digitalização da economia quanto a economia da digitalização. Ao insistirem em encontrar no processo de digitalização contemporâneo algo análogo à renda (não da terra, mas do espaço digital e de estruturas abstratas protegidas por patentes), à espoliação (de dados), à relações pré-modernas com estruturas de poder privadas controlando o espaço (digital) “público”, parecem ignorar como as dinâmicas do capital dão forma à própria digitalização. Relembrando o volume 3 do Capital, Morozov argumenta que Marx já vislumbrava empresas capitalistas completamente automatizadas, capazes de se apropriar do mais-valor derivado de outro lugar – outra linha de produção – não como renda, mas enquanto lucro.
Todo o debate sobre desinvestimento em produção, rentismo, capital improdutivo, financeirização, é incompleto ou equivocado quando se ignora que já em Marx também encontram-se as projeções de submissão do capital industrial pelo capital de financiamento, com sua dimensão fictícia e seu potencial especulativo, assim como a socialização do capital – o capital social de empresas – como superação do capital privado dentro dos limites do próprio capitalismo, como Eleutério Prado relembra.
Se é o caso de ainda estarmos vivendo sob o capitalismo, com suas especificidades contemporâneas, desdobrado sob a primazia do capital de financiamento sobre o capital industrial, isso implica que é o primeiro que dá as coordenadas para o processo de digitalização “realmente existente”. Por mais que as Big Techs sejam anunciadas como feudos digitais, o efeito ainda recente da IA chinesa DeepSeek em Wall Street evidenciou como a economia e capital digital encontram-se conectadas pelo capital fictício e pela especulação – existem mais coisas entre D-M-D’ (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) e D-D’ (Dinheiro-Dinheiro) do que supõe o pensamento tecnofeudal.
Além disso, o caso compõe também uma disputa e tensionamento geopolítico de mercado (mas não só), que aponta para outra lacuna no enquadramento teórico do neo/tecnofeudalismo, assim como ocorre com o capitalismo cognitivo ou de vigilância: a função e o papel do Estado. Com disputas políticas ou econômicas e ameaças à hegemonia tecnológica do capital digital, testemunhamos os gigantes das Big Techs estadunidenses alinhando-se com as políticas de Donald Trump e participando diretamente do governo de Estado. Além disso, como nos lembra Morozov, o Estado dos EUA teve importância subnotificada na emergência do Vale do Silício como hegemonia tecno-econômica global – o que, por sua vez, remete à conexão íntima entre economia política da digitalização e economia política da guerra.[1]
A digitalização coloca em questão uma nova e acelerada dinâmica onde superação tecnológica em processamento, por exemplo com o caso de computadores quânticos, pode tornar-se uma crise diplomática global, na medida em que colocaria a segurança digital de empresas e Estados inteiros em cheque. O enredo de tecno-lordes em uma distopia sci-fi feudalizada exclui de cena a geopolítica, palco fundamental que informa as próprias disputas no campo econômico da digitalização, na medida em que subestima o papel dos Estados (e da guerra) para as condições de possibilidade do processo de digitalização. Esses problemas não são pouco relevantes. Deveríamos nos questionar em que medida é politicamente útil e teoricamente coerente deslocarmos o enquadramento para uma concepção que parece mais mistificar do que elucidar os impasses atuais.
(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos — sendo o mais recente uma Introdução a Lacan pelo estruturalismo e a teoria social.