Em alguma dessas atividades sobre educação popular, escutei uma história que nunca mais me saiu da cabeça. Quando os negros escravizados chegavam da África aos portos brasileiros, era-lhes aplicada uma tremenda surra, a “surra quebra espinhela”. Logo pensei: mas por que? Isso é economicamente contraproducente. A escravidão foi (e infelizmente ainda é) um grande negócio. Não faz sentido, numa leitura apenas econômica, submeter um produto (o ser humano escravizado) à deterioração dias antes de colocá-lo à venda. Caso alguém não resistisse e viesse a falecer, aumentaria as perdas que já eram enormes durante a travessia do Atlântico. Então, por que a surra? E de onde vem esse nome?
A surra tinha como objetivo forçar o ser humano escravizado a curvar os ombros para frente, abaixando o pescoço. Ele era ensinado, assim, a nunca ficar com o corpo ereto e, jamais olhar seu dono e senhor olho no olho, como um igual. Ecos dessa prática são conhecidos até hoje, quando encontramos pessoas que, ao nos mirar, o fazem de baixo pra cima; quando ouvimos o comentário em algum adulto que, diante de uma criança teimosa, afirma ser preciso “dobrar esse menino”; ou nos sintomas de doenças popularmente conhecidos como o mal da espinhela caída.
Mas há gente que, mesmo sob surra, insiste em levantar a cabeça e exigir, na ponta da baioneta, a liberdade. Aqui, retomaremos três situações latino-americanas, a haitiana, a cubana e a venezuelana.
A colônia francesa de São Domingos era marcada pelo latifúndio monocultor de açúcar através da mão de obra escravizada. Diferente do Brasil, trata-se de um território pequeno (a rigor, meia ilha no Caribe), onde experiências como os quilombos eram duramente reprimidas. Sem espaço para a construção de enclaves de resistência, a luta pela liberdade do povo (segundo Gorender, havia meio milhão de escravos negros para 30 mil brancos) passava, assim, pela conquista do poder do Estado.
A Revolução Francesa, em 1789, propagandeou que todos os homens são iguais em direitos, influenciando os mestiços nas colônias. A revolução haitiana, em 1791, teve início com a exortação, por um sacerdote vodu, para que escravizados e recém-libertos se rebelassem contra a própria escravidão e pela expulsão do colonialismo francês por meio da destruição de engenhos e da tomada de edifícios administrativos, chegando a controlar parte do território. Os franceses tentaram dividir a rebelião, quebrando a coesão entre escravizados e libertos, mas não conseguiram.
Levada a cabo pelo general negro Toussaint L’Ouverture, que comandou meio milhão de homens usando táticas de guerra convencional e não-convencional, o movimento também construiu uma política de alianças inicialmente com os jacobinos, e posteriormente com as potências europeias que disputavam com a França, influenciando a política escravagista em todas as colônias francesas. O líder foi assassinado, sua cabeça exposta em praça pública, mas a mobilização não refluiu até a conquista da independência, em 1804, de Dessalines sobre o “invencível” Napoleão Bonaparte.
O Haiti foi a primeira vitória anticolonial na América Latina, e a única levada a cabo com êxito por escravizados que conquistaram, simultaneamente, a liberdade e o poder, daí ter se tornado conhecido como primeira república negra do mundo. A nação de negros livres influenciou a luta contra a escravidão no mundo, mas a rebeldia custou caro, e o país foi submetido ao isolamento diplomático, boicote econômico, intervenções militares, camufladas ou não como humanitárias.
Manter a espinhela de pé é inspirador, mas exigente…
Bem pertinho, quase 150 anos depois, outra ilha caribenha incendiou o mundo. O comandante Fidel Castro liderou um grupo de rebeldes que expulsou o ditador Fulgêncio Batista do poder em Cuba, no ano de 1959. Embora fosse independente juridicamente, Cuba era governada por militares e latifundiários do açúcar, além de mafiosos ligados à distribuição e drogas, jogos e prostituição. Durante cinco anos, o movimento guerrilheiro libertou, território por território, cada palmo de terra da ilhota. São pródigas as batalhas desse período. Em Santa Clara, Che e 340 homens venceram um batalhão com 3,9 mil soldados, bem equipados e com tanques de guerra.
O Movimento 26 de Julho adotava uma doutrina político-militar, e os guerrilheiros estavam subordinados à luta política geral da revolução cubana, contando com amplo apoio popular. Esse mesmo povo em armas, depois da revolução, compôs o Exército oficial e as unidades de defesa territorial, fundamentais para conter as muitas tentativas de invasão dos EUA, como a da Baía dos Porcos, em 1961.
A revolução influenciou toda a América Latina, inspirando movimentos como as FARC (Colômbia), Montoneros (Argentina), Tupamaros (Uruguai), Araguaia (Brasil), Sandinismo (Nicarágua). Foi também decisiva na África do Sul, Angola, Congo e Vietnã. De lá pra cá, a vitória militar tornou-se uma imensa vitória moral sobre os EUA, notadamente por meio da solidariedade médica. Mas o “mau exemplo” foi punido, e a Ilha segue até hoje vítima de intenso embargo econômico.
Manter a espinhela de pé é inspirador, mas exigente…
Chegamos, por fim, à última revolução do nosso continente, a bolivariana. Essa, só pegando mesmo na mão do Tom Zé, pois veio explicando pra confundir, e confundindo pra esclarecer. Um militar, Hugo Chávez Frias, tenta uma insurreição militar e fracassa. A derrota militar é convertida em uma vitória política, com Chávez chegando ao governo pela via eleitoral em 1999, e depois quase levando um golpe militar, em 2002. Posteriormente, reduziu o poder da corporação fardada, criando uma força miliciana e reformando as polícias. Chávez toma medidas jurídico-institucionais, propondo uma Constituinte, a partir da qual a Venezuela deixa de ser uma democracia liberal, enquanto a ciência política discute como as democracias morrem, como salvá-la, e outros títulos de livros vendáveis, sempre pautada pelo “modelo” estadunidense – o mesmo no qual o/a próximo/a presidente/a pode ser eleito/a com 6% dos votos de 6 estados.
A Venezuela segue confundindo e esclarecendo inclusive parte da esquerda, que, buscando uma aliança operário-camponesa, ou burguesa-nacional, tem que se haver com um sujeito revolucionário cívico-militar, e com uma revolução socialista que, a todo momento, fala em pátria, honra, Deus e família. Pra terminar, uma revolução cujo comandante indicou seu sucessor – o atual presidente reeleito Maduro – ainda em vida, ao invés de esperar o partido se fragmentar em infindáveis lutas internas.
A revolução tem seus pés fincados em um duplo movimento. De um lado, tenta mudar a estrutura produtiva do país, dependente do petróleo, e aprendeu a duras penas que não existe país soberano incapaz de alimentar o próprio povo. De outro, tenta mudar a estrutura institucional, fortalecendo as comunas e a democracia participativa. “Ah, mas Maduro quer fechar o regime”. Impossível. Na Venezuela, vota-se até pra decidir se um cachorro enorme pode, ou não, continuar sendo criado numa ocupação urbana cheia de crianças. Ambos os pés são internacionalistas, e a Venezuela conta com a solidariedade de povos rebeldes, notadamente o cubano, e presta solidariedade, especialmente através da ALBA.
A revolução decretou um inimigo principal: o imperialismo, e paga caro por isso. O repertório é diversificado: golpes militares, diretamente; atuação de forças paramilitares, através da fronteira com a Colômbia; sequestro das suas reservas econômicas, e mesmo de empresas no exterior; embargo econômico, inclusive para produtos essenciais, como os de saúde; sabotagem de empresas estratégicas, como as petrolíferas; autoproclamação de presidentes que vivem em Miami, como Guaidó; protestos violentos nas ruas, as guarimbas; tentativa de infiltração e quebra de coesão das Forças Armadas; tentativas de assassinatos de autoridades públicas, inclusive do atual presidente Maduro; ataques cibernéticos e ampla profusão de fake news… Uma lista infindável, com consequências diretas sobre a vida do povo e sobre o regime político.
A pergunta que cabe às esquerdas mundiais responderem sobre a Venezuela é: por que, mesmo assim, a revolução bolivariana não é interrompida?
Manter a espinhela de pé é inspirador, mas exigente…